Randall Smith |
Em 1986 o Papa João Paulo II organizou o Dia Mundial da
Paz, em Assis, para o qual convidou 160 líderes religiosos, incluindo judeus, budistas,
sikhs, hindus, jains, zoroastrianos e membros religiões tradicionais africanas.
Alguns católicos ficaram escandalizados. Mais tarde, João Paulo viria a
publicar as encíclicas Centesimus Annus (1991), Veritatis Splendor (1993); Evangelium Vitae (1995); e Fides et Ratio (1998). Pergunto: Se um católico tivesse
ficado enfurecido pelo encontro de oração de Assis, ele ou ela continua a ser
obrigado a oferecer aos ensinamentos destas encíclicas a “submissão religiosa
de intelecto e vontade”?
Em 1929 Pio XI assinou o Tratado de Latrão com o Governo
fascista de Benito Mussolini, que reconheceu o Vaticano como Estado
independente e garantiu à Igreja o apoio financeiro do seu Governo. Muitas
pessoas – na altura e desde então – criticaram esta decisão, não só por ter
sido um pacto celebrado com fascistas, mas também porque Pio tinha cedido a sua
autoridade tradicional sobre os Estados Pontifícios. Esses católicos que
acreditam que a decisão de Pio foi um erro são obrigados pelos ensinamentos do Quadragesimo anno, Quas primas, ou Divini Redemptoris?
Em 1633 o Papa Urbano VIII recusou determinantemente a
decisão de membros do seu próprio tribunal da inquisição, de que Galileu devia
ser perdoado pelo “erro” de publicar o seu “Diálogo sobre os dois
principais sistemas do mundo”. Urbano, que tinha sido um patrono e defensor de
Galileu, estaria ofendido pelo facto de este ter colocado um dos seus
argumentos na boca da sua personagem “Simplício” (o simplório). A decisão do
Papa de colocar Galileu em prisão domiciliária teve repercussões negativas para
a Igreja até hoje. Esta decisão torna tudo o resto que ele ensinou, sobre fé e
moral, inútil?
Há que fazer algumas distinções. A Igreja defende que os
papas podem, em determinadas circunstâncias e quando o pretendem
explicitamente, pronunciar-se de forma infalível sobre questões de fé e de
moral. Em toda a história da Igreja há talvez oito proclamações que encaixam
nesses requisitos. A maioria dos ensinamentos dos papas acarretam autoridade,
mas não infalíveis, pedindo não o “assentimento da fé”, como fazem os
infalíveis, mas “a submissão religiosa de intelecto e de vontade”.
Pode, então, ser lícito a um católico fiel discordar de
um ensinamento com autoridade mas não infalível de um Papa? Sim, pode. Se a
pessoa tiver investigado diligentemente o ensinamento em questão e se, depois
de séria reflexão e oração, sentir que é necessário proceder a uma correcção
fraterna, então poderá expressar publicamente o seu desacordo desde que: A) As
suas razões forem sérias e bem fundamentadas; B) a discordância não impugnar ou
questionar a autoridade da Igreja para ensinar e C) se a natureza da dissensão
não for tal que dá origem a escândalo.
Já várias vezes pensei que estas regras servem igualmente
para qualquer outra situação em que estamos em desacordo com alguém. Devemos
ter boas razões por detrás da nossa posição; devemos fazer todos os esforços
para não impugnar a integridade ou as boas intenções do nosso interlocutor; e
devemos argumentar de forma a não criar escândalo. Raramente conquistamos os
outros (incluindo os meros observadores) adoptando uma atitude agressiva.
Normalmente só se consegue dar má imagem do nosso lado.
Estamos conversados, portanto, quanto a ensinamentos
do Papa.
João Paulo II no encontro de Assis |
E sobre as acções do Papa? Será que em conjunto
com o dom da infalibilidade, os Papas têm também o dom da impecabilidade?
Um carisma especial que os impede de cometer qualquer erro?
A Igreja nunca defendeu tal coisa. Muito pelo contrário,
aqueles que mais acerrimamente defenderam a infalibilidade sempre fizeram
questão de a distinguir de impecabilidade precisamente porque A) é claro que vários
Papas cometeram pecados graves e, B) é uma questão de fé acreditar que todos
os papas são pecadores, tal como qualquer um de nós, necessitados da Graça
salvífica de Deus, conquistada através da morte e ressurreição de Cristo. Não
adoramos o homem; respeitamos o seu cargo e temos fé nas promessas de Cristo de
estar com a Sua Igreja até ao fim dos tempos e de enviar o seu Espírito Santo
para a guiar e proteger.
Há anos alguém me disse que o Papa João Paulo II não dava
comunhão na mão, o que provava que estava a condenar essa prática. Eu sugeri
que se o Papa quisesse comunicar tal mensagem, então tinha diversos canais
oficiais pelos quais o podia fazer. Existe uma espécie de idolatria papal que,
a longo prazo, não é útil. Que diria hoje esse meu amigo? Se continua a
confundir as acções pessoais do Papa com ensinamentos oficiais, então deve
estar confuso – e zangado.
Observar cada acto do Papa para discernir o seu
significado político é o tipo de tolice que levou certas pessoas a condenar
Cristo por comer com prostitutas e cobradores de impostos. Dizia-se que tais
actos “causavam escândalo”, “semeavam discórdia” e “revelavam apoio aos
inimigos da Igreja”. Talvez, talvez não. “O tempo dirá onde se encontra a
sabedoria”.
Alguns papas cometeram grandes erros. Mas todos os papas
cometem alguns erros, afinal de contas, são humanos. Se anda à procura
de perfeição e impecabilidade, está à procura de uma Igreja que não existe, uma
promessa vazia do Pai das Mentiras, e não aquela que foi fundada por Cristo.
Ficar confuso ou desapontado com um papa é coisa que não
falta na história da Igreja. Mas os católicos que imaginam que eles é que têm a
autoridade para estabelecer a fasquia canónica pela qual o ensinamento deste ou
de qualquer outro papado pode ser julgado estão simplesmente a demonstrar que
afinal de contas sempre foram protestantes e que a sua visão da autoridade é a
mesma que caracteriza em demasia a política americana, a ideia de que a função
da autoridade é fazer o que eu mando e esmagar os meus
opositores.
A Igreja nem sempre foi bem servida pelos seus papas. Mas
por outro lado, sempre esteve bem pior nas alturas em que cedeu às vozes
moralistas da multidão – especialmente quando clamam “crucifica-o”.
Randall Smith é professor de teologia na Universidade de
St. Thomas, Houston.
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