Transcrição integral da entrevista feita ao Sheikh David
Munir, imã da Mesquita Central de Lisboa. A reportagem, com vídeo, está aqui.
Faz um ano que
foram raptadas centenas e raparigas de uma escola na Nigéria, por um grupo que
diz agir em nome do Islão. Enquanto clérigo muçulmano, como é que isto o faz
sentir?
Com muita tristeza, com muita mágoa, muita dor.
O facto de qualquer acção de agressividade ser feita, por
qualquer pessoa, já é triste. Quando é feita em nome de uma religião que
transmite a paz e quer uma boa convivência entre as pessoas e entre os povos,
muito mais nos entristece.
Infelizmente já se passou um ano e ainda elas continuam
nas mãos deles e parece que a comunidade internacional parou, não se consegue
fazer nada, por isso esta outra tristeza, outro lamento, que fala-se muito e
faz-se quase nada.
Este ano tem sido
particularmente complicado em termos de terrorismo por parte de grupos
islamitas. Tivemos o rapto das crianças, a ascensão do Estado Islâmico, os
ataques ao Charlie Hebdo, mais recentemente o ataque do al-Shabab à
Universidade no Quénia... Tem sido difícil para a comunidade muçulmana gerir o
impacto destes actos?
Nós tentamos esclarecer as pessoas sobre o que é o Islão
e o que infelizmente algumas pessoas fazem em nome do Islão. Não tem sido
fácil, porque as pessoas, infelizmente, algumas já têm, uma ideia fixa, só vêem
de uma forma e não têm abertura suficiente para ouvir uma outra voz e perceber
as verdades. Mas por outro lado há pessoas que conseguem distinguir e
simpatizam connosco, podemos dizer assim. Não tem sido fácil. É um a seguir ao
outro... Tentamos esclarecer as pessoas e vamos continuar a fazê-lo,
independentemente de as pessoas gostarem ou não, de criticarem ou não, vamos
continuar a fazê-lo e a dizer a verdade, porque quem esconde a verdade é mais
criminoso que aquele que comete o próprio crime.
O Sheikh David
Munir e a direcção da comunidade Islâmica têm sido firmes na condenação do
terrorismo e sabemos que outros líderes islâmicos também. Mas mesmo assim,
continuamos a ouvir apelos para que altas figuras do mundo islâmico condenem
inequivocamente estes actos. Há falta de firmeza por parte destas figuras, ou
as suas vozes não nos chegam?
Acho que a segunda hipótese será mais provável,
manifestam-se e nós é que não sabemos.
Muitas vezes quando recebemos informação por mail, que
houve encontros ou manifestações a condenar estes ataques, nem sequer ouvimos
falar disso porque a nossa comunicação social não está muito interessada.
Aliás, a nossa comunicação social está mais interessada em divulgar estragos e
crimes do que encontros positivos.
Mesmo na nossa sociedade, a seguir aos ataques fizemos um
encontro inter-religioso na mesquita, na sinagoga e numa Igreja Católica, e só
um dos três ou quatro canais de televisão que temos é que fez a cobertura. As
outras todas não se interessaram, paralisaram. É claro que esses encontros têm
de ser divulgados também, para as pessoas terem a noção e a consciência de que
nem toda a gente concorda com o que é feito em nome da religião. Há muita gente
que não concorda e muita gente que condena e muita gente que se manifesta
publicamente. Mas há pouca cobertura desses eventos.
Sempre que há um
ataque destes as objectivas viram-se para si e para outros líderes islâmicos
para pedir uma reacção. Mas pode-se argumentar que esse facto em si revela que
as pessoas associam de alguma maneira os actos à comunidade muçulmana em geral.
Isso preocupa-o?
Há um dizer do profeta que diz: “Todas as acções dependem
das intenções”. Quem faz as perguntas são jornalistas e muitas das vezes fazem,
sabendo a minha resposta, mas é mais para esclarecer as pessoas que nos estão a
ouvir ou a ver, para enfatizar que o Islão condena, que os muçulmanos
portugueses condenam, muitos outros também condenam.
Aqui depende da intenção, de como é colocada a questão.
Eu costumo responder aos jornalistas "o que é que acha que é a minha
opinião?" E dizem, "sabemos que o senhor condena", e eu digo que
é essa a minha resposta.
Porque as pessoas têm de estar esclarecidas daquilo que é
o Islão. E muitas das vezes, quando algum acto é feito em nome do Islão a
pessoa consegue distinguir. Pode-se dizer que é feito em nome da religião
islâmica, mas não tem nada a ver com o Islão e só pode distinguir quem nos
conhece, quem não conhece pensará que somos todos iguais e muitas das vezes as pessoas
colocam-nos no mesmo saco.
Maajid Nawaz |
Recentemente
entrevistei o Maajid Nawaz, um ex-islamita, ligado ao Hizb ut-Tahrir, que
actualmente, apesar de continuar a identificar-se como muçulmano, faz campanha
contra o islamismo. Ele argumenta que é um erro, e contraproducente, dizer-se
que movimentos como o Estado Islâmico, e outros, nada têm a ver com o Islão.
Qual é a sua opinião?
Eu conheço Maajid Nawaz e já estive com ele em diversos
encontros.
Num dos encontros, quando falei da nossa comunidade
portuguesa, porque ele vive em Inglaterra, quando falei sobre a nossa
comunidade ele disse: "Aqui está um bom exemplo de integração, e nós
precisamos de si". E convidou-me várias vezes para participar em eventos,
para esclarecer as pessoas. Só que não é esclarecendo as pessoas que se resolve
o problema. O problema das outras comunidades islâmicas no ocidente, mais
concretamente na Europa, o problema que é colocado de integração, convivência e
ajustes de cultura, não faz parte da nossa agenda na comunidade portuguesa.
Nós não perguntamos aos muçulmanos se estão ou não
integrados, nem sequer é colocado. Não está na nossa agenda. Então porque é que
está na agenda das outras comunidades? Porque desde o início, quando essas
comunidades começaram a crescer, foram-se criando guetos, e temos vários casos
em vários países da Europa. Aqui não temos, felizmente, porque se tivéssemos,
provavelmente iríamos ter mais ou menos os mesmos problemas de base.
Agora, é claro que eles, ao utilizarem o nome do Islão,
onde é que vão buscar? Qual é a fonte? O Alcorão fala sobre a guerra, como
defesa e não como ataque, e muitas vezes eles retiram o trecho do contexto,
porque muitos dos versículos foram falados para aquele momento, naquela altura,
era uma resposta para uma questão imediata naquela altura. E nós não podemos
esquecer que os muçulmanos tiveram de enfrentar muitas dificuldades para se
manterem firmes na sua crença e na sua posição.
Em relação ao Hizb ut-Tahrir, lembro-me que há muitos
anos vieram dois elementos ao nosso país. Quando eles vieram, conversaram
comigo, muito antes da Al-Qaeda, do Estado Islâmico, dos atentados do 11
Setembro, vieram sondar quantos muçulmanos há, o que achavam, porque o termo
"califado" é um termo que hoje é muito deturpado. Quando nós falamos
do califado estamos a falar da justiça, estamos a falar de igualdade,
tolerância, boa convivência com os outros povos. Não é aquilo que vimos quase
todos os dias.
Esses dois membros perguntaram o que é que eu achava e eu
disse que sim, se tivéssemos um califa justo, honesto, sincero, aberto, porque
não? Quem seria a pessoa ideal? Quem? Os países islâmicos estão como estão,
portanto acho que teoricamente é muito bom, mas na prática, disse-lhes na
altura, é um trabalho muito longo. Vai ser quem? Um político? Um religioso? Tem
de ser uma pessoa do oriente, do ocidente?
Mas depois quando eles perceberam que aqui não havia
muitas probabilidades de conseguirem adeptos... Quando ele me disse que era
membro do Hizb Ut-Tahrir fez-se um click. Quando vieram dois muçulmanos de
Inglaterra, de origem bangladeshi, provavelmente já nascidos em Inglaterra, mas
cujos pais tinham vindo do Bangladesh e que estavam com essa preocupação...
Claro que comecei a aprofundar e conhecer melhor o Hizb ut-Tahrir mas estava
longe de imaginar que a ideia que eles têm do califado, nem tudo tem a ver com
o que o Islão transmite.
O Estado Islâmico
aponta para antecedentes na tradição da jurisprudência islâmica para justificar
muitas das suas atrocidades, como por exemplo lançar homossexuais do topo de
prédios, já para não falar de lapidação de adúlteros, cortar as mãos a ladrões
e mesmo escravizar jovens raparigas. Estes antecedentes de facto existem...
Como é que a comunidade muçulmana lida com isso?
Vamos lá ver uma coisa, à partida as pessoas têm de ter
noção que o Alcorão é o código de vida dos muçulmanos. É um código de vida. É
uma constituição, uma referência que os muçulmanos têm.
E acontece que a prática do Alcorão é a Sunna, aquilo que
o profeta disse ou aquilo que o profeta fez. O que vem a seguir, a
jurisprudência, a analogia, vem quando as pessoas tentam interpretar um assunto
que não está mencionado directamente nos hadites nem no Alcorão. Existem quatro
grandes escolas de jurisprudência islâmica, porque muitas das vezes a resposta
que é dada não é exactamente a mesma que se fosse dada há uns anos atrás, e
isto aconteceu mesmo fora do contexto religioso em todas as sociedades.
Por exemplo, antes do 25 de Abril não havia abertura para
as outras confissões, as pessoas estavam mais mentalizadas a haver só uma
confissão, mesmo sabendo da existência das outras confissões. Mas como não
havia abertura, como falamos por exemplo da presença na inauguração de uma
coisa oficial, então a presença do Patriarca, ou a presença de um religioso
católico era importante, hoje já não.
O que acontece é que em algumas narrações, e aí temos de
analisar essas narrações, antes de aplicar qualquer pena há sempre um tempo que
é dado à pessoa, para conversar com a pessoa e a tolerância e o perdão
prevalecem sempre.
Agora, quando falamos daquelas pessoas que fazem só uma
leitura e que fazem uma leitura mais à letra, do que é dito, e se é um grupo de
pessoas com esta forma de agir, então temos uma outra interpretação daquilo que
é dado. Mas nunca podemos esquecer que quando a pessoa tem uma prática que o
Alcorão condena e que o Islão condena, deixa-se muito ao critério da pessoa.
Conversa-se com a pessoa, explica-se à pessoa, faz-se ver a pessoa e deixa-se
muito ao seu critério, não se pode obrigar a implementar seja o que for. Mas
como disse, se vivemos num ambiente onde toda a gente condena, ninguém sabe
como responder, ninguém está preparado para isso, só um grupo é que está
preparado para isso, então temos muitos actos que muitas vezes até o próprio
Islão condena.
Numa das suas
respostas disse que há coisas que estão no Alcorão que são para aquele tempo.
Sendo o Alcorão, segundo acreditam os muçulmanos, a palavra de Deus ditada ao
profeta, portanto não é uma interpretação de uma mensagem, é a palavra textual
de Deus, como é que se distingue o que era para aquela época e o que é para a
eternidade?
Vendo o contexto daquilo que foi revelado.
Por exemplo: “Combater aqueles que vos combaterem, e nesse
combate não pode exagerar” e “Defende-se, mas não pode atacar”. Estamos a falar
em termos de combate de guerra, não como atacar mas sim como defesa.
Há alguns versículos que foram revelados naquele momento,
para aquele tempo e há passagens que falam daquilo que se passou. Estamos a
falar do nascimento de Jesus, de Maria e dos outros profetas e mensageiros,
estão lá, são palavras eternas de Deus mas estão a ensinar aquilo que se passou
concretamente com Abraão, com Moisés, quando Deus disse para ir ter com o Faraó
e ele fez os milagres, estamos a falar do nascimento de Jesus... Faz parte da
crença islâmica acreditar em todos os profetas e mensageiros e na revelação que
eles fizeram. São palavras de Deus, são palavras verdadeiras, mas no contexto
social e económico...
Por exemplo, lembrei-me agora, quando dizemos que uma das
formas que o Islão tem de retribuir o que fez e não devia ter feito, é libertar
um escravo. Mas hoje não há escravatura. Não há, como havia na altura. Se não
tem escravos, então dá de comer aos mais necessitados. Ok, mas eu não tenho
possibilidades de dar de comer. Então jejua. Mas eu não posso jejuar porque sou
doente. Então não faz nada. Percebe? Tem fases.
Eu não posso libertar um escravo, porque já não há
escravos. Cada caso é um caso.
Quando falamos em termos do aspecto social, a caridade é
obrigatória, um dos pilares do Islão é a caridade. A quem é que é destinada a caridade?
O Alcorão dá uma lista. Mas se houver alguém fora da lista que seja merecedor?
Também recebe. No entanto, se a pessoa tem alguma dificuldade em dar a caridade
na totalidade, dá aquilo que lhe é possível, já não é considerado obrigatório,
é caridade facultativa.
Quando diz, então,
que há certas coisas que dependem do contexto, obriga a uma leitura subjectiva
que cabe, imagino eu, ao líder espiritual da comunidade. No caso da comunidade
de Lisboa cabe-lhe a si, noutras, aos respectivos imãs. Mas não existe então
uma leitura universal...
Quando falamos da nossa comunidade, cada mesquita tem um
imã e nós nos reunimos quando há um assunto a debater, e fora disso também,
para manter a nossa ligação, digamos assim, constantemente e permanentemente.
Basicamente, há dois tipos de versículos do Alcorão. Há
uns que são considerados mandamentos. Os cinco pilares, as cinco orações; o
jejum é no mês de Ramadão, quer calhe no verão ou no inverno, é o nono mês, tem
de se jejuar naquele mês. A peregrinação é a Meca, e tem de ser no 12º mês.
Portanto aqui falamos dos mandamentos.
Depois temos outros versículos do Alcorão que têm mais de
uma leitura. Muitas das vezes a época, o tempo é que interpreta esse versículo.
Há versículos que dão referências sobre a ciência. Por
exemplo, “A origem da vida é a água”. Isto dito há 1436 anos, no deserto, por
uma pessoa que não sabia ler nem escrever...
O Alcorão diz que tudo o que a terra produz tem macho e
fêmea, até os frutos. Hoje é possível saber se uma fruta que estamos a comer é
macho ou fêmea, desde que levemos para um laboratório. Agora, pergunto, como é
que é possível para uma pessoa que não sabia ler nem escrever, que vivia no
deserto, na Arábia, há 1436 anos, como é que ele soube? Quem é que revelou?
Hoje acredita-se com tanta facilidade que a pessoa que não acredita acaba por
ser considerado ignorante. Mas na altura aquela pessoa que acreditasse era
ignorante, porque não havia meios de interpretar.
Agora, como disse, algumas pessoas conseguem manipular
uma boa parte da comunidade muçulmana ignorante, que conhece as coisas básicas,
mas não conhece muito a teologia, porque aquelas pessoas que conhecem a
teologia, sinceramente, não são facilmente manipuladas. Quem não conhece
teologia, quem está mais preocupado com as virtudes, acaba por cometer muitas
asneiras. Sabe o que diz o Alcorão? “Aquele que sabe e aquele que não sabe são
iguais? Claro que não.”
Sabemos que grande
parte dos grupos jihadistas são de inspiração salafita e que esta é a corrente
propagada a partir da Arábia Saudita. Como vê o papel e a influência da Arábia
Saudita no mundo islâmico?
Primeiro, muita coisa dita sobre o salafismo não é
verdade. Muita coisa é dita, muita coisa é inventada. Na realidade, na prática,
estando com eles, convivendo com eles, não tem nada a ver com muitas das coisas
que nós ouvimos falar. Há um dizer do profeta: “As várias opiniões, na minha
nação, entre as minhas pessoas, é a misericórdia”. Cada um ter a sua opinião,
desde que seja uma opinião válida, desde que seja para o bem-estar da
comunidade, é válida.
Eles têm feito muito trabalho positivo para que as
pessoas possam, no mínimo, praticar o Islão de acordo com as suas
possibilidades. O facto de construir mesquitas, tudo bem, é uma virtude enorme,
mas na manutenção da mesquita, como é que ela deve ser dirigida, como é que tem
de ser visitada, como é que tem de se explicar o Islão, há muita coisa que tem
sido feita que infelizmente não é divulgado, nem sequer é dito.
Eles tentam ajudar as pessoas que precisam mesmo, independentemente
das crenças ou não - estamos a falar dos sauditas - por exemplo, nas duas
mesquitas sagradas de Meca e Medina, tirando o mês do Ramadão, às segundas e
quintas há a tradição de a pessoa jejuar, um jejum facultativo. Então
empresários sauditas, estamos a falar daqueles homens milionários, humildemente
distribuem tâmaras e comida para as pessoas quebrarem o jejum na mesquita. E
concorrem uns com os outros para dar de comer a milhares de pessoas que não
conhecem e que estão lá simplesmente para quebrar o jejum.
Jovens salafitas |
Agora, é claro que, mesmo nas outras escolas, há sempre
aqueles teólogos que dão uma interpretação não diria necessariamente errada,
mas um pouco mais exagerada, mais conservadora, da prática do Islão. É a
tradição do profeta comera com as mãos. Lava as mãos e come com as mãos. Mas
uma pessoa comer com talheres não é cometer um pecado. Era tradição do profeta
sentar-se no chão para comer, mas uma pessoa utilizar a mesa não é pecado. Era
tradição do profeta viajar de cavalo, mas hoje, nas grandes cidades, mesmo
naquelas [salafitas], não se viaja. Temos de saber adaptar-nos.
Claro que quem conhece a teologia está apto para
conversar, dar a sua opinião e discutir. Houve um tempo em que no mundo
islâmico os manuais não eram constantemente revistos, hoje já são mais
revistos, há mais abertura, mais aproximação, mais respeito pelas outras
culturas e pelos outros povos.
A comunidade
Islâmica de Lisboa já aceitou ajuda financeira da Arábia Saudita para ajudar a
construir esta mesquita?
Recebemos de uns empresários, uma coisa particular.
Com essa ajuda
nunca sentiram pressão sobre os vossos ensinamentos?
Nunca. A Mesquita Central de Lisboa e as pessoas sabem,
os nossos irmãos embaixadores de todos os países sabem, é uma mesquita aberta
para todos, não há influência directa nem indirecta de qualquer ideologia ou de
qualquer escola de interpretação do Islão ou de qualquer tipo que não seja
islâmico. A mesquita é de todos.
Esta mesquita é
aberta, é possível visitar. Mas sabemos que há outras mesquitas, não digo
clandestinas, porque não são ilegais, mas digamos, informais, que funcionam em
caves ou em apartamentos emprestados. Não é possível que haja, entre essas
comunidades, uma pessoa ou um grupo com tendência mais radical ou
mal-intencionada, que propositadamente evitariam esta mesquita porque já sabem
que aqui a sua mensagem não seria bem aceite... Tem ideia de casos desses?
Primeiro, como disse e bem, não temos mesquitas
clandestinas. O que acontece é que quando há um grupo de muçulmanos que reside
numa localidade é normal que se preocupem em ter um espaço para fazer as cinco
orações em congregação, em conjunto. Depois pode haver um ou outro que diga que
tem um apartamento do qual não está a usufruir e cede por um espaço de tempo
determinado. Depois há situações em que as pessoas juntam-se para contribuir
para alugar um espaço, fazer umas pequenas obras, mas todas elas estão abertas
a qualquer pessoa que queira assistir.
Agora, essas pessoas também se preocupam em escolher um
líder. Quem é que vai presidir às orações e dar alguma orientação? Há mesquitas
que dizem que não precisam, porque haverá sempre uma pessoa idónea sempre para
presidir à oração, porque não há palestras, não há nada, portanto para as
grandes responsabilidades ou vai à Mesquita Central de Lisboa, ou vai a outras,
mas no entanto poderá haver alguém com essa má intenção de tentar transmitir
essa mensagem mais radical, uma mensagem diferente do que as pessoas estão
habituadas, mas até agora creio, e quero acreditar, que essas pessoas não têm
adeptos ou acabam por não serem ouvidas. Até agora não aconteceu nenhum caso
desses, mas não quer dizer que não venha a acontecer ou que não esteja a
acontecer, de acordo com o conhecimento que temos.
Esse encontro que costumamos ter, entre os diversos imãs
das várias mesquitas, quando há algum encontro convidamos os representantes das
diversas mesquitas, por isso se houvesse algo, com certeza que chegaria aos
ouvidos da comunidade, como se costuma dizer as fofocas chegam sempre mais
depressa. E se isso acontecesse chamaríamos a pessoa e tentávamos explicar
isso.
Houve situações, quando surgiu o filme sobre o profeta, e
esse filme também foi condenado na nossa comunicação social, um grupo quis
fazer uma manifestação pacífica, para tentar dizer que a mensagem do profeta
foi misericórdia, foi tolerância, e a direcção, presidida pelo Dr. Vakil,
chegou à conclusão que não se ia fazer nada.
Ao fazermos uma manifestação, mesmo que seja pacífica,
estamos a chamar a atenção, e aquelas pessoas que não viram vão ver. Por isso
resolveu-se o problema.
Mas nós ficamos magoados quando as pessoas fazem algo
sobre o profeta. Decidiu-se, então, numa sexta-feira próxima ia-se falar sobre
o profeta. Todas as mesquitas falaram sobre a vida do profeta, como é que ele
foi. Foi uma forma de nós reagirmos pacificamente ao que nos magoava.
É interessante e nós muçulmanos apercebemo-nos disso, e
não muçulmanos também, quem está muito ligado aos assuntos das religiões,
quando alguém diz que Deus não existe não há manifestações; Quando alguém diz
que Deus não é um, são muitos, não há manifestações; Quando alguém diz que tudo
é Deus, não há manifestações; Mas quando alguém diz, escreve ou faz algo sobre
o profeta Mohammed, já há manifestações.
Eu costumo dizer, nessas manifestações devemos reagir
como o profeta reagiu. Foi magoado, insultaram-no, incomodaram-no, chamaram-lhe
nomes. Como é que reagiu? Perdoou, ignorou e foi tolerante. Mesmo numa posição
em que ele podia ser vingativo, ele não foi. Este é o exemplo que ainda falta a
alguns muçulmanos.
O presidente do
Egipto disse recentemente que é preciso fazer-se uma reforma do Islão. O que
lhe parece esta frase, e isso seria sequer possível?
Bem, dizer que é preciso fazer uma reforma do Islão é
algo muito vasto e muito complexo. Reformas de quê?
Mais importante é educar os muçulmanos, criar condições,
seja no Egipto, como mencionou, ou em qualquer parte. Concretamente em países
islâmicos, porque estamos a falar do Islão, independentemente, de ser árabe ou
não árabe, porque nem todos os países islâmicos são árabes, enfatizar mais a
educação, muito mais. O acesso à educação. Para eles e para elas.
E depois, tentar equilibrar o aspecto social. É
interessante que um dos pilares básicos do Alcorão é a caridade. Se cada
muçulmano contribuísse com a caridade obrigatória pode crer que muita pobreza
iria acabar.
Muçulmanos de etnia rohingya, alvos de perseguição na Birmânia |
Tem-se falado
muito da perseguição aos cristãos por parte de grupos islâmicos
fundamentalistas em vários países. Contudo, os mesmos muçulmanos falam em casos
de muçulmanos perseguidos e apontam o exemplo dos rohingya, na Birmânia, dos
muçulmanos da Tailândia e na República Centro-Africana, por exemplo, já para
não falar da questão palestiniana. É verdade que a comunidade islâmica global
se sente ameaçada, injustiçada? Se sim, o facto de se falar tanto da
perseguição aos cristãos sem se falar desses casos, pode piorar esse
ressentimento?
Há muçulmanos que mencionam e que dão muito ênfase a essa
situação e os muçulmanos, infelizmente, estão a ser perseguidos. Infelizmente
os cristãos também estão a ser perseguidos, mas não podemos esquecer esta face
da moeda, que há muçulmanos em alguns países que estão a ser perseguidos, estão
a ser massacrados, maltratados, muçulmanas que estão a ser violadas.
Mas isto não quer dizer que, pelo facto de isso estar a
acontecer, nós vamos massacrar, ou torturar outros que são inocentes, que não
têm nada a ver.
As pessoas não deviam misturar as coisas, mas a verdade é
essa, se de um lado, infelizmente, os cristãos estão a ser perseguidos por
muçulmanos, e não deviam, porque o Islão protege as religiões minoritárias, por
outro lado não podemos esquecer que há muçulmanos que estão a ser maltratados,
a serem perseguidos por serem muçulmanos ou por pertencerem a outra etnia ou
por pertencerem a outro povo. Muitas vezes a questão não é sequer religiosa, é
étnica, cultural ou nacional. Mesmo que não fossem muçulmanos seriam perseguidos.
Quando falamos na Índia, por exemplo, é um país em que se
vive bem, em termos de liberdade religiosa. Mas não em toda a Índia. Há
aldeias, para não dizer cidades, em que hindus radicais dificultam a vida aos
muçulmanos.
As suas origens
vêm da Índia, via Moçambique. Tem casos próximos de si de perseguição?
Não.
O pai era do Iémen, a minha mãe era de Moçambique, mas de
origem indiana. As nossas raízes, concretamente dos muçulmanos que estão aqui,
ainda são Moçambique e os que vieram para Portugal e nasceram cá, as suas
raízes acabam por ser portuguesas. Culturalmente o muçulmano português é
português.
Amin Maalouf escreveu um livro, “As identidades
assassinas”, aqueles que emigraram, que vivem anos e anos noutros países. Ele
dá o exemplo dos franceses. Diz que os franceses não o consideram francês, mas
os libaneses não o consideram libanês, por isso ele tem uma identidade
assassina.
Isto é interessante num aspecto social, qual é a nossa
identidade? Acho que o muçulmano preocupa-se mais com a sua identidade
religiosa, sem transgredir a identidade cultural ou de boa cidadania. Por isso
é que volto a dizer o que já tinha dito à Renascença, qualquer muçulmano que viva no ocidente e que não
se sinta bem, tem solução, vai para onde se sentir melhor, onde se possa
adaptar.
Depois, a nova geração é muito globalizada, o acesso à
net, ao conhecimento... Hoje não podemos esconder nada, é tudo possível, tudo
transparente. Isto tudo afecta, tudo o que se passa num local, de imediato todo
o mundo fica a saber e depois é através das redes sociais que, infelizmente,
alguns muçulmanos com pouco conhecimento, e um pouco perturbados... Porque esse
aspecto também é importante, muitos deles estão perturbados e com pouco
conhecimento e com alguma perturbação, facilmente caem nessas teias. Depois
tornam-se radicais, tornam-se terroristas, matam pessoas inocentes.
Mas se for um não-muçulmano que mate 150 pessoas
inocentes, como aconteceu recentemente [no desastre do avião da Germanwings],
ele nunca é considerado terrorista.
Sunitas e xiitas no mundo islâmico |
Olhando para o que
se passa no Médio Oriente, concorda que a raiz do problema está num conflito
entre sunitas e xiitas?
Não.
Não acho que seja um problema entre sunitas e xiitas. O
problema entre sunitas e xiitas pode-se resolver, se eles quiserem e se se
entenderem. O problema do Médio Oriente, mais concretamente, é o problema entre
o Estado de Israel e a Palestina. Se Israel respeitar a Palestina e se a
Palestina respeitar Israel, mas respeitar mesmo, então 50% dos problemas serão
resolvidos.
Como é que o
problema entre Israel e Palestina está a afectar o Iémen, onde vemos uma
intervenção de vários países sunitas e o Irão a apoiar os houthis...
Isso é um reflexo daquilo que se vai passando no Médio
Oriente. Nem temos de ir ao Iémen, vamos ao Iraque...
Precisamente...
Mas como é que esses problemas dependem de Israel?
Estamos a falar do Médio Oriente, geral. Se houver um
entendimento [entre Israel e Palestina] então é uma bola de neve. Atenção que
não sou político nem sequer quero dar palpites.
Há um problema grave entre sunitas e xiitas, não diria
desde o tempo do profeta, mas 50 anos depois, esse problema começa por questões
políticas e não religiosas, mas acontece que quando tentamos falar dos sunitas
e dos xiitas, nunca imaginaríamos que a maioria da população do Iraque, no
tempo do Saddam estava tudo muito calmo... Ninguém se apercebia disso. Agora,
os que estavam no poder querem o poder, os que estão não querem deixar o poder.
Mas o que acontece é que as coisas estão a alastrar-se um pouco, infelizmente.
Agora, eu não acho que seja prioridade, este problema
entre sunitas e xiitas. Pode estar na agenda, mas não como problema
prioritário, porque há países onde há um bom entendimento entre os dois grupos,
portanto isto não seja prioridade, mas sim, pode estar na agenda para que haja
uma boa convivência ou respeito.
Infelizmente as pessoas quando se começam a tornar
radicais ou agressivas, deixam de respeitar o outro. Quando é que a pessoa se
torna radical? Quando deixa de respeitar o outro como ele é, na sua crença, na
sua pessoa, na sua cultura e na sua identidade.
Desde o 11 de
Setembro a violência jihadista tem sido uma constante. Parece que de ano para ano
a situação piora. O Século XXI vai ser assim?
Esperemos que não. Esperemos que seja tudo passageiro e
que acabe de uma forma progressiva, porque isto não ajuda ninguém, nem Boko
Harams, nem um Estado que diz ser um Estado mas não tem nada a ver com o Islão.
O facto de uma pessoa usar uma "jalaba", ter
uma barba comprida e ter um turbante, não significa que seja muçulmano, não
significa que tudo o que faz seja islâmico. Por outro lado, como a população
maioritária do nosso país é cristã, católica, se um cristão católica, com a
Bíblia na mão, cometer um suicídio colectivo, não é cristianismo. Isto
aconteceu no Texas. Não digo que fossem católicos, mas eram de uma seita
cristã, que cometeu um suicídio colectivo com pessoas inocentes. Isto não é
cristianismo, são pessoas que interpretam...
O que ele diz pode ser fonte de enganos mas não pode ser fonte de doutrina. Ele não pode nem quer escrever o que diz no corão e o corão é a única fontes espiritual que os muçus aceitam
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