Transcrição integral da entrevista ao padre José Patrício, a
propósito do relatório que a ONU publicou esta quarta-feira, muito crítica da
forma como a Igreja tem lidado com casos de abusos sexuais de menores.
O padre José Patrício, da diocese de Lamego, é especialista
em direito canónico e tem acompanhado de perto todo este problema há muitos anos.
Que comentário lhe merece este
relatório das Nações Unidas?
É preciso em primeiro lugar integrar o relatório nas circunstâncias
em que é emitido. Comos e sabe a Santa Sé faz parte da Comissão para os
Direitos da Criança, que é o órgão de controlo e monitorização de uma convenção
assinada em 1989, sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral da ONU em 20
de Novembro de 1989 e entrou em vigor a 2 de Setembro de 1990.
Actualmente fazem parte 193 países. A Santa Sé foi das
primeiríssimas a adoptar esta convenção.
Esta Comissão não é um tribunal, é uma comissão de estudo e
de controlo, que recebe relatórios periódicos dos estados membros e que depois
ao analisar o texto da convenção e a legislação interna dos estados, faz
considerações.
No mesmo dia em que saiu este relatório sobre a Santa Sé
saíram relatórios sobre vários estados, incluindo
Portugal, que é ainda mais extenso que o da Santa Sé, em termos de
recomendações. Em relação ao Vaticano isto é um instrumento normal, dentro de
um tratado a que a Santa Sé aderiu livremente.
Por isso são recomendações normais para este tipo de
comissão, e não são nem mais nem menos graves que recomendações feitas a outros
estados membro.
Tem de ficar claro, e para a Igreja isto é claríssimo, que
um só abuso sexual de menor por parte de um clérigo ou membro da igreja é algo
que não devia acontecer nunca. A Igreja, neste domínio, está a fazer todos os
esforços do ponto de vista jurídico e pastoral, de cuidados a ter, para evitar
que ocorram abusos cometidos por membros da Igreja. Não conheço nenhum estado
nem nenhuma organização que em tão poucos anos tenha promulgado tanta
legislação e tenha percorrido um caminho tão longo, em tão pouco tempo, para a
protecção das crianças.
Este relatório analisa apenas e só um conjunto muito
reduzido de situações ou de passos dados pela Santa Sé e deixa de lado muitos
outros, dados também, que vão no sentido de proteger os menores e evitar os
abusos, para que a Igreja seja um lugar seguro, pacífico, para todas as
crianças.
Não tem em conta sequer aquele que foi o contributo da Santa
Sé dentro da comissão. No passado dia 16 de Janeiro, o Monsenhor Silvano Tomasi,
representante da Santa Sé na ONU, teve uma intervenção junto desta comissão, em
que forneceu um conjunto de dados, de passos que foram dados, de informações,
dos quais o relatório não faz sequer menção, o que é estranho. Parece que o
relatório estava feito antes de ser ouvida a Santa Sé em relação a um tema tão
importante como este.
Dá-se a entender que a Santa Sé é a única organização que
não tem uma legislação adequada à protecção das crianças. Pelo contrário a Santa
Sé é das instituições que mais se tem esforçado para que isso aconteça e este
relatório não corresponde à verdade dos factos, é preciso dizer isso com toda a
clareza.
Há influência ideológica
neste relatório?
Quando a Santa Sé, em 1990, ratifica a convenção, que dá
origem a esta comissão, deixou muito claro que, e passo a citar: “Ao aceder a
esta convenção deseja renovar a sua expressão de uma constante preocupação pelo
bem-estar das crianças e das suas famílias. Mas considerando a sua singular natureza
e a sua posição, ao comprometer-se com esta convenção, não prescinde de
qualquer modo da sua missão específica na qual a sua dimensão religiosa e moral
têm um aspecto primordial.”
Delegação da Santa Sé que falou à comissão em Janeiro |
Isto foi o que a Santa Sé disse à ONU em 1990. Esta
convenção, nos últimos anos, tem derivado para um conjunto de posições ideológicas
que são cada vez mais incompatíveis com a doutrina cristã, com valores
não-negociáveis. A Santa Sé não pode não defender aquilo que Jesus nos deixou
como missão, pregar o Evangelho a todas as criaturas, na verdade. E portanto,
para não faltar ao mandato de Cristo de pregar a verdade, de pregar o valor da
vida nascente desde a concepção até à morte natural, a Santa Sé nestes foros,
ao defender as suas posições, tem uma grande vantagem porque está a tratar à
luz do direito internacional, temas que são importantíssimos para a vida da
Igreja, de todos os países e de qualquer pessoa.
Mas corre sempre o risco de haver pessoas, instituições e
ONGs que tenham uma ideologia contrária à religião católica e que tentem impor
essa ideologia à Igreja. Devo dizer que no caso concreto desta comissão, como
no caso concreto da posição da Santa Sé nas Nações Unidas, estas comissões
olham para a Igreja e não sabem muito bem, por vezes, expressar o que querem
dizer. Isto porque a Santa Sé não é um estado como outro qualquer. Para já não
é membro pleno, é apenas observador. Em segundo lugar tem uma dupla dimensão,
territorial, que é o Estado do Vaticano, mas também é o Governo central da
Igreja Católica, espalhada por todo o mundo.
Enquanto que num Estado as leis de um país referem-se àquele
país, e portanto no caso de Portugal temos uma constituição e depois temos um
conjunto de leis promulgadas pelo Governo e é fácil recomendar alterações
específicas à legislação, quando estas comissões olham para a Igreja vão ao
direito canónico.
Mas a legislação da Igreja não está expressa só no Código de
Direito Canónico. Está expresso no direito canónico, que vale para a Igreja
Latina, está expressa no código dos cânones das Igreja orientais, que valem
para as igrejas orientais, mas depois há um conjunto de normativas que não está
em nenhum dos códigos e que são consideradas normas especiais ou estatutárias, que
também fazem lei, regulam a conduta dos cristãos e da hierarquia e que neste
caso não foram tidas minimamente em consideração.
Por exemplo, está a ser renovado todo o livro VI do código
de Direito Canónico de 1983, que se refere ao direito penal, para precisamente
transpor para a ordem fundamental da Igreja normas que neste momento têm um
valor só de normas especiais e por isso do ponto de vista jurídico não são tão
fortes como o direito canónico, mas têm a mesma validade.
Há de facto uma visão ideológica muito diferente entre a
Igreja e este relatório das Nações Unidas e essa ideologia é um confronto do
qual a Igreja não se pode dispensar. É preciso estar lá, debater as nossas
ideias e continuar a explicar a posição da Santa Sé, mesmo que não sejamos
ouvidos, que não concordem connosco, e mesmo que nos venham dizer que temos de
mudar coisas que à partida sabemos que não vamos mudar, porque são coisas que
não depende de nós, dependem daquilo que Jesus nos deixou.
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