Em todo o lado estamos a ver sinais da cultura “woke”,
numa sociedade cada vez mais dominada por pessoas brancas que se atropelam umas
às outras para mostrar que são mais “woke” que todas as outras e muito menos
tolerantes de tudo o que não consideram “woke” e “impuro”. Trata-se do
equivalente das tentativas na era vitoriana de mostrar que eram mais “cultos”
que os outros, com as suas demonstrações grandiosas de justa indignação contra
qualquer tipo de comportamento que lhes parecesse insuficientemente culto.
Nestas circunstâncias, o livro “Regras para Radicais” de
Saul Alinsky, tornou-se o manual preferido para o envolvimento político, em vez
da Constituição ou dos Fundadores. Mas a obra “O Poder dos Sem Poder”, de
Vaclav Havel, devia ser leitura obrigatória para todos os que desejam defender,
contra forças aparentemente inultrapassáveis, aquilo que se tornou o movimento
contra-cultural mais ameaçador nos Estados Unidos: o Cristianismo.
Havel descreveu a vida na Europa de Leste comunista dos
anos 70 como “pós-totalitária”, não porque o sistema não era totalitário, mas
porque a forma como esse totalitarismo era exercido na sociedade era
radicalmente diferente do totalitarismo de ditadores como Hitler e Mao. O
biógrafo John Keane descreveu a definição de Havel de um mundo pós-totalitário
da seguinte forma:
“Dentro do sistema cada indivíduo está preso por uma
espessa rede dos instrumentos do Governo… legitimados por uma por uma ideologia
flexível mas englobante, uma ‘religião secularizada’… torna-se assim necessário
ver, segundo Havel, que as relações de poder… podem ser descritas da melhor
forma como labirintos de influência, repressão, medo e autocensura que engole
toda a gente, deixando-os em silêncio, estultificados e marcados por prejuízos indesejados
dos poderosos.”
O exemplo mais Famoso de Havel é do merceeiro que expõe
um cartaz na janela da sua loja a dizer “Trabalhadores do mundo, uni-vos!”. Não
o faz porque está particularmente interessado nos trabalhadores do mundo, mas
porque não o fazer seria um sinal de desobediência inadmissível à ideologia
dominante da sociedade.
Aqueles que lhe impõem essa obediência, recusando tolerar
qualquer falha em expor o requerido sinal de submissão, não estão mais preocupados
com os “trabalhadores do mundo” do que o merceeiro. Mas denunciá-lo-ão e puni-lo-ão
para mostrar que continuam a aderir fielmente à ideologia dominante, ainda que
o merceeiro seja precisamente um dos trabalhadores com quem alegam estar preocupados.
O merceeiro teria vergonha de colocar um cartaz a dizer: “Eu,
merceeiro XY, vivo aqui e sei o que devo fazer. Comporto-me da forma que é
esperada. Podem contar comigo e não têm nada a apontar-me. Sou obediente e, por
isso, tenho o direito a ser deixado em paz”. A exposição do esperado “Trabalhadores
do mundo, uni-vos”, permite ao merceeiro esconder a sua cobardia atrás de uma
fachada de preocupação desinteressada. “Mas a verdade é que os trabalhadores do
mundo estão a ser oprimidos”, dirá ele. E isso é incontestável. Mas não é por
isso que ele colocou o cartaz. O cartaz é um sinal da sua submissão, não das suas
convicções pessoais.
Vaclav Havel |
“A ideologia é uma forma ilusória de se relacionar com o
mundo”, escreve Havel. “Oferece ao ser humano a ilusão de uma identidade, de
dignidade e de moralidade, ao mesmo tempo que torna mais fácil dissociar-se delas.
Enquanto repositório de algo supra-pessoal e objetiva, permite às pessoas
enganarem as suas consciências e esconder as suas verdadeiras posições e o seu
inglório modus vivendi, tanto do mundo como de si mesmos… É um véu atrás
do qual os homens podem esconder a sua própria existência decaída, a sua trivialização
e a sua adaptação ao status quo. É uma desculpa que todos podem usar,
desde o merceeiro, que disfarça o seu medo de perder o emprego com um alegado
interesse pela unificação dos proletários do mundo, até ao mais alto
funcionário, cujo interesse em permanecer no poder pode ser escondido em frases
sobre o serviço às classes operárias.” É um “mundo das aparências”, escreve
Havel, “a tentar passar-se por realidade”.
“O sistema pós-totalitário toca todos os aspectos da vida
das pessoas, mas fá-lo com luvas ideológicas. É por isso que a vida nesse sistema
está de tal forma permeada por hipocrisia e mentira: ao governo por burocracia
chama-se governo popular… a total degradação do indivíduo é apresentada como a
sua máxima libertação; à privação de informação chama-se disponibilização; ao
uso do poder para manipular chama-se o controlo popular do poder e o uso
arbitrário do poder é descrito como a observação do código legal; chama-se
desenvolvimento cultural à repressão da cultura; a expansão de influência
imperial é apresentada como apoio pelos oprimidos; a falta de liberdade de
expressão torna-se a mais elevada forma de liberdade; as eleições fraudulentas
tornam-se a mais alta forma de democracia; a proibição do pensamento independente
torna-se a mais científica das mundivisões.”
Havel argumentou que a restauração de uma sociedade livre
apenas podia ser alcançada pela recusa de dar crédito a slogans vazios e a
rituais sem sentido – ao recusar tornar-se parte da mentira que oprime os
outros sem dar liberdade a ninguém. Havel descreveu isto como “vivendo na
verdade”. E esse, afirmou, é o poder mais importante que ainda resta aos sem-poder.
Contudo, a “verdade” só por si raramente chega. A “verdade”
deve ser defendida através da coragem e da disponibilidade para servir os outros
e sacrificar-se. É quase certo que o merceeiro perderá a sua loja caso se
recuse a exibir o cartaz. E depois? Alguém virá defendê-lo? Apoiá-lo e talvez
contratá-lo? Ou ficarão em silêncio para que não lhes seja lançado também o
olhar duro da suspeita?
Aqueles que proclamam a “verdade aos poderosos” devem ter
a credibilidade que vem de servir os outros na verdade. Quando as pessoas não
podem negar que o merceeiro se preocupa com os trabalhadores, torna-se mais
difícil tirar-lhe a mercearia. Não deixarão de o fazer. Mas quando o fizerem
isso revelará o sistema por aquilo que é: um frágil véu de mentiras. A escolha
é nossa: Cuidar dos outros na verdade, ou colocar cartazes da vossa submissão
às narrativas que oprimem sem libertar.
Randall Smith é professor de teologia na Universidade de
St. Thomas, Houston.
(Publicado pela primeira vez em The
Catholic Thing na quarta-feira, 17 de Junho de 2020)
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