Michael Pakaluk |
A Ilha de Goreia, elevada a Património Mundial em 1978,
era um centro de tráfego de escravos entre os séculos XV e XIX, sob o domínio
de quatro países europeus: Portugal, Holanda, Inglaterra e França. A ilha é
marcada pelo contraste entre as belas casas coloniais e as escuras masmorras
onde se processavam os escravos. A UNESCO refere-se a ela como a “ilha da
memória” e pretende que permaneça “um símbolo da exploração humana e um
santuário para a reconciliação”.
A “Casa dos Escravos”, com a sua ameaçadora “Porta sem
Regresso”, que se diz ter sido a última coisa que os escravos viam quando
estavam a ser colocados nos barcos para serem enviados para o Novo Mundo, foi
transformada num museu em 1962 e hoje é um importante local de visita de
turistas.
Na década de 90, depois da visita de João Paulo II,
surgiu alguma controvérsia entre historiadores sobre se a Casa dos Escravos
tinha de facto processado escravos – o mais provável é que não – e se Goreia
tinha sido mesmo um importante porto do mercado esclavagista – e certamente não
foi. Em todo o vasto sistema de exploração que foi o negócio dos escravos,
parece que “apenas” 30.000 escravos passaram pela ilha. Não obstante, a UNESCO
fez bem em não alterar a sua avaliação sobre a importância da ilha.
Os breves comentários feitos pelo Presidente Obama (ver
aqui) focam a empatia e a vigilância. Na companhia da Primeira Dama, da sua
filha Malia e da sua sogra, disse que esta visita era importante pois dava-lhe
“a sentir, de forma muito íntima, a incrível desumanidade e dificuldade que as
pessoas enfrentavam antes de embarcarem”, mas que a visita também o recordava
que “temos de permanecer alerta no que toca à defesa dos direitos humanos –
porque eu acredito firmemente que a humanidade é fundamentalmente boa, mas só é
boa quando pessoas boas se levantam em defesa do que está certo. E isto é um
testamento em memória de quando não somos vigilantes na defesa do bem, do que
pode acontecer”. Segundo os arquivos Obama, o Presidente concluiu as suas
declarações – feitas a um público entre os quais estavam o Presidente do
Senegal e o presidente da Câmara de Goreia – com um “Obrigado, malta”.
Não deixamos de apreciar as suas boas intenções, mas nada
disto faz muito sentido. Se a humanidade é fundamentalmente boa, então porque é
que só alguns de nós são “boas pessoas” e porque é que estas boas pessoas só se
levantam “em defesa do que está certo” de forma bastante seletiva? E que tipo
de natureza é esta que, se não estivermos sempre muito alerta, regride a um
estado em que nos matamos e escravizamos? Seja como for, é absurdo dizer que o
sistema de escravatura foi simplesmente uma consequência de pessoas não serem
vigilantes em defesa do que está certo.
João Paulo II começou o seu discurso (que
poder ser lido aqui) em francês, com “C’est un cri!” – “É um grito que
ouço”.
E prosseguiu, dizendo: “Vim aqui escutar o grito de
séculos e de gerações e gerações de negros, de escravos. E sou levado a
considerar que o próprio Jesus Cristo se tornou um escravo, um servo, pode-se
dizer: mas Ele também iluminou a realidade da escravatura. Essa luz chama-se a
presença de Deus, libertação em Deus”.
João Paulo II na Casa dos Escravos |
E depois disse algo extraordinário: Goreia é um local
onde ficamos bem posicionados para pensar sobre a injustiça. A injustiça é “o
drama trágico no seio da civilização que se intitula cristã. O grande filósofo
antigo, Sócrates, disse que aqueles que sofrem a injustiça encontram-se numa condição
melhor do que aqueles que são causa da injustiça”.
Como tantas das declarações de João Paulo II, esta requer
muita reflexão e análise. Estará o santo a criticar a noção de uma civilização
cristã, e a chamar hipócritas aos nossos antecessores? Não. Ele parte do
princípio que as suas declarações de fé são verdadeiras, tão verdadeiras como
podem ser para criaturas como nós. Afinal de contas, foi essa mesma civilização
cristã, esclavagista, que preservou os ensinamentos de Sócrates. Mas estamos
apanhados no meio de algo que nos ultrapassa – daí o drama. Afinal não é assim
tão fácil viver como se acreditássemos verdadeiramente que é melhor ser tratado
de forma injusta do que praticar a injustiça.
Quando aceitamos o ensinamento de Sócrates começamos a
alcançar “o outro lado da realidade da injustiça”, que é invisível e está para
além da empatia. A empatia só lida com sentimentos, prazeres e dores, e por
isso apenas pode compreender o sofrimento da injustiça, e não a sua prática,
como sendo o pior dos males. Mas quando vemos que, ao agir de forma injusta,
estamos a escolher o que é pior para nós, e não o que é melhor, começamos a
perceber que “as raízes deste drama trágico estão em nós, na natureza humana,
no pecado”.
Para reforçar a ideia, João Paulo II actualiza a
escravatura: “Vim aqui para prestar homenagem a todas estas vítimas, vítimas
desconhecidas… Tristemente, a nossa civilização, que se chamou a si mesma, que
se chama a si mesma cristã, regressou novamente no nosso século a esta situação
dos escravos anónimos. Sabemos o que foi feito nos campos de concentração. Eis
o seu modelo”. E sabemos também que noutros locais João Paulo II fez analogias
entre o holocausto contemporâneo do aborto com a escravatura.
Nestes dois discursos vemos duas mundivisões: de um lado,
as “pessoas boas” de entre nós, movidas apenas pela empatia, devem estar em
constante modo de mobilização, para obrigar todos os outros a ser as boas
pessoas que são; no outro, todos estamos envolvidos num drama, como pecado em
cada um de nós, ameaçando derrotar-nos, colocando-nos na dependência da ajuda
de Deus.
Misericórdia e perdão? Apenas têm um papel a desempenhar
na segunda: “Não nos podemos chafurdar na tragédia da nossa civilização, na
nossa fraqueza e no pecado”, concluiu João Paulo II. “Devemos permanecer sempre
fiéis a outro grito: ‘Onde o pecado abundou, superabundou a graça’ [Rom.
5,20]”.
Michael Pakaluk, é um académico associado a Academia
Pontifícia de São Tomás Aquino e professor da Busch School of Business and
Economics, da Catholic University of America. Vive em Hyattsville, com a sua
mulher Catherine e os seus oito filhos.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quarta-feira, 10 de junho de
2020)
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