Francis X. Maier |
Cerca de 60% dos americanos acredita na existência do
Inferno. Para o benefício dos que não acreditam, temos assistido a uma réplica bem
fiel nas nossas ruas desde 25 de Maio, quando um polícia assassinou George
Floyd. Se o Inferno é uma imagem demasiado forte, pense antes na República de
Weimar. Mas Inferno é mais próximo da verdade.
As pessoas tendem a pensar no Inferno como um lago de
fogo, graças às Escrituras, ou então como nove círculos descendentes de
tormenta, graças a Dante. Mas eu suspeito que o Inferno é ao mesmo tempo mais
prosaico e mais aterrador. É mais próximo da resposta obtida por Fausto quando
perguntou ao demónio Mefistófeles como é que conseguia sair do inferno, uma vez
que tinha sido condenado. “Mas isto é o inferno”, respondeu o demónio, “eu não
saí”.
Tal como o amor é a energia que alimenta o Ceu, a fúria –
com todos os seus afluentes de confusão, desespero, frustração e conflito –
irradia o inferno. Os condenados não podem escapar porque não podem escapar a
si mesmos. O inferno tem a forma que eles próprios fizeram.
Mas o que é que isso tem a ver com os últimos dias (e
noites) a que assistimos na América?
Henri de Lubac notou certa vez que, nos tempos modernos,
o ódio pelos hereges diminuiu. Mas isso não se deve, disse ele, ao facto de os
nossos corações se terem tornado mais caridosos. Simplesmente transferimos os
nossos interesses e os nossos ódios para a política. A nossa verdadeira paixão
hoje é o poder e a eliminação de tudo o que esteja entre nós e o seu exercício.
A revolta na América causada pela morte de George Floyd
tem raízes profundas e legítimas. O racismo é um dos pecados primordiais da
nossa nação. Os seus resíduos continuam a envenenar a nossa vida pública. Muitos
dos motins a que assistimos ao longo da última semana resultam de uma explosão
de fúria por causa de mais uma dose desse veneno. As frustrações acumuladas por
causa da quarentena da Pandemia, receios de saúde e problemas por causa do
desemprego ajudaram a alimentar o caos nas ruas. Mas os motins também
provocaram uma violência sistémica e um ódio político que não víamos há
décadas.
Ao longo da vida da geração “boomer” houve uma altura em
que a maioria dos americanos acreditavam que eram corresponsáveis pelo Governo
da nação. A maioria conhecia as ideias básicas da Fundação. É verdade que a
política americana sempre teve um lado feio e toda a gente que viveu os tempos
conturbados dos anos 1960 sabe que a unidade nacional não passa de uma ilusão.
Mas apesar das diferenças, a maioria dos americanos
sentia que tinha alguma responsabilidade partilhada pelo curso do país. E
muitos ainda acreditam. Mas à medida que os anos passam, esse acto de fé parece
ter cada vez menos bases factuais. Eramos uma república. Agora, pelo menos em
termos substanciais, somos um império.
Mudanças económicas e demográficas, sentenças judiciais e
guerras estrangeiras ao longo dos últimos 50 anos transformaram a realidade americana.
As nossas instituições públicas e estruturas legais dão ares de perdurar, mas
não são imortais. Para sobreviver têm de ser alimentadas por confiança popular,
um espírito de compromisso e uma sensação partilhada de propósito nacional que
vá para além do “e o que é que eu ganho com isso?”
Uma cultura consumista – que é o que temos – é excelente para
saciar os apetites pessoais, mas não consegue promover ou suster nada para além
do eu. Essa fraqueza congénita começa por esvaziar de vida uma política de
solidariedade e depois substitui-a por tribalismo e uma guerra hobbesiana de
tudo contra todos. Esse ambiente de conflito total, a toda a hora, é um bom
retrato do Inferno.
Seria fácil culpar a actual falta de nível da nossa
política em Donald Trump, na sua tendência para o insulto desnecessário, os
seus tweets beligerantes e o seu estilo pessoal agressivo. Muitos querem fazer
isso mesmo e certamente ele merece alguma da responsabilidade. Mas ele é um
sintoma e não a causa.
Líderes democratas como Pelosi, Schumer, Schiff e outros
também fizeram mais do que a sua parte para alimentar o tom tóxico e extremista
do nosso ambiente político. Sem um sentimento partilhado de obrigação para Deus
ou um poder superior que nos responsabilize pelas nossas acções – algo a que hoje
apenas se presta homenagem com a boca na nossa vida pública – a política não
passa de um mecanismo para alcançar o poder e a guerra travada nesse sentido.
E a intensidade do espírito de conflito em D.C. desce
para a população, levando a incontáveis tabuletas a dizer “O Ódio Não Tem Lugar
Aqui” nos jardins, alguns dos quais são sinceros, mas outros que apenas
mascaram as suas próprias sementes de amargura, fingindo virtudes.
É fácil sentirmo-nos demasiado pequenos diante da dimensão
dos problemas que temos de enfrentar. A questão é, o que fazer? Posso oferecer
duas ideias.
A primeira vem novamente de De Lubac. Ele escreveu que “Eu
não preciso de conquistar o mundo, mesmo para Cristo: Tenho de salvar a minha
alma. É disso que me devo lembrar sempre, contra a tentação de sucesso no
apostolado. E assim me guardarei contra meios impuros. Não é nossa missão fazer
triunfar a verdade, mas testemunhá-la.”
A segunda é da Primeira Epístola de São Pedro: “Deixem,
portanto, toda a espécie de maldade, toda a mentira, fingimento, invejas e
murmurações … Comportem-se como pessoas livres e não usem a liberdade como uma
desculpa para fazerem o mal, mas para servirem a Deus. Respeitem toda a gente,
amem os irmãos na fé, tenham temor a Deus” e, sim, até “respeitem o rei”,
independentemente de quem ele seja. (1 Pedro, 2, 1-18)
Não é uma mensagem muito satisfatória. Temos vontade de
justificar os bons e punir os maus, tenham eles a forma que tiverem. Mas
fazemo-lo, ironicamente, através da forma que construímos e assumimos para nós
mesmos. As nações mudam quando nós mudamos. E destas, a segunda é a tarefa mais
difícil.
Francis X. Maier é pesquisador em Estudos Católicos na Ethics
and Public Policy Center.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Quarta-feira, 3 de Junho de
2020)
© 2020
The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de
reprodução contacte:info@frinstitute.org
The Catholic Thing é um fórum de opinião católica
inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus
autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.
No comments:
Post a Comment