Wednesday, 18 March 2020

Abusos Sexuais: Trauma e Tabu

Stephen P. White

Às vezes a Igreja lida melhor com os pecadores do que com aqueles que foram feridos e magoados pelo pecado.

Se passar tempo suficiente a estudar a crise dos abusos na Igreja Católica – ou seja, se ler muitos artigos antigos e ouvir muitos testemunhos de vítimas – começam a emergir padrões. Alguns desses padrões deixam-nos perplexos, outros enfurecem-nos: alegações que não foram levadas a sério; uma tendência para subestimar o trauma causado pelo abuso infantil; um instinto fortíssimo para proteger a reputação e os bens da instituição, mesmo que isso signifique prejudicar as vítimas e deixar outros expostos ao risco; a vontade de confiar em peritos que davam maus conselhos, sobretudo quanto à segurança de colocar abusadores “reabilitados” de novo no ministério.

Tal como muitas das vítimas de abusos sabem, muitas vezes a Igreja tem sido mais solícita para com os padres – mesmo quando são abusadores confessos – do que com as suas vítimas. Durante décadas o normal era o padre abusador – salvo em casos de laicização ou cadeia – poder esperar que a sua diocese ou ordem religiosa o enviasse para receber tratamento, terapia e – dependendo do tipo de ofensas cometidas – reabilitação. Resumindo, o homem até podia ser retirado do ministério, ou ver o seu ministério restringido, mas as suas necessidades físicas, mentais e espirituais seriam asseguradas de todas as formas possíveis. Já o seu acusador tinha apenas o direito a comunicar com um advogado.

É verdade que isto começou a mudar há muito tempo. Desde 2002 as dioceses têm sido muito mais eficazes no que diz respeito a oferecer serviços de aconselhamento e terapia àqueles que se apresentaram como vítimas de abusos. A Carta de Dallas diz de forma muito clara que “A primeira obrigação da Igreja para com as vítimas é de cura e reconciliação”. Todas as dioceses nos Estados Unidos devem ter um Coordenador de Assistência às Vítimas para garantir que estas não se perdem no meio da máquina burocrática que é posta em marcha quando são feitas alegações de abusos.

A Igreja está a aprender a tratar as vítimas como pessoas que foram magoadas, e não apenas como fontes de prejuízo. Muitas dioceses estão a abraçar um modelo de interação menos conflituosa com aqueles que foram abusados.

Na Primavera passada o Papa Francisco disse explicitamente que as autoridades da Igreja têm de tratar os que foram magoados com “dignidade e respeito” e que estes devem ser alvo de “acolhimento, escuta e acompanhamento, inclusive através de serviços específicos; assistência espiritual; assistência médica, terapêutica e psicológica de acordo com o caso específico.”

Ouvimos falar frequentemente da necessidade de dar prioridade às vítimas, ou de garantir que a Igreja as está a escutar. Penso que para a maioria dos católicos isto é uma evidência. De tal forma é evidente que por vezes a repetição destes chavões – em determinadas alturas e por determinadas pessoas – parece uma tentativa de distrair de outros assuntos importantes ou embaraçosos. Há alturas em que “temos de pensar nas vítimas” parece o equivalente eclesiástico de “circular, aqui não há nada para ver”.

Dar prioridade às vítimas pode ser fácil e óbvio em abstrato, mas na realidade pode ser bastante difícil. Ainda que fosse possível eliminar os obstáculos institucionais que ainda estão no caminho da relação entre a Igreja e as vítimas – como o clericalismo persistente, a inércia burocrática, a autoproteção eclesiástica, etc., – há verdadeiras barreiras que permanecem.

Para começar, é muito mais fácil à Igreja condescender (no melhor sentido da palavra) com pecadores – até abusadores – do que encontrar-se com os que sofreram às mãos da Igreja. Não é só uma questão de psicologia. A Igreja tem muita experiência a lidar com pecadores. As Escrituras estão cheias de parábolas e de exemplos dados diretamente por Cristo: o Bom Pastor, o filho pródigo, a samaritana no poço, a mulher adúltera, o chamamento de Zaqueu, a ordem para perdoar 70x7.

Temos todo um sacramento dedicado ao perdão dos pecados e à reconciliação do pecador com Cristo e com o Seu Corpo. Mas em cada um destes casos é a Igreja que perdoa, a Igreja é que é o veículo da misericórdia, a Igreja que se comporta como Cristo. Jesus nunca teve de pedir perdão.

E depois há o facto incontornável de que alguém que experimentou um trauma severo é, por via do mesmo trauma, colocado à parte. Pense no soldado que volta para casa depois dos horrores da guerra, dos pais que precisam de recompor a vida depois de sepultar uma criança. Frequentemente aqueles que não tiveram de ultrapassar provas terríveis como estas têm dificuldade em perceber como interagir com quem teve.

Não adianta nada fingir que o trauma não aconteceu, nem podemos fingir que compreendemos a profundidade do que viveram. Não lhes podemos explicar o que aconteceu, nem porquê. Não os podemos consertar.

Para muitos, tudo o que podemos oferecer é uma palavra desajeitada de empatia – uma palavra que, se tudo correr bem, não pior a situação – seguida de silêncio.

O trauma pode abrir um fosso social entre o que o experimentou e os que não. Não é fácil reduzir esse fosso, mesmo para aqueles que têm a boa vontade e o desejo de o fazer. No caso das vítimas do abuso, o trauma pode criar um tabu. Não falo de um tabu de repugnância, mas de reverência e temor isoladores.

A Igreja deve continuar a aprender a escutar as vítimas – fazer-se presente para as vítimas e ter paciência com as vítimas – e isso não é fácil, porque até a nossa solicitude para com eles pode ser isoladora.

As feridas imerecidas dos inocentes podem ser incompreensíveis para nós. São um obstáculo, um sinal de contradição. Nesta época de Quaresma, enquanto contemplamos a Cruz, vale a pena pensar no que o pecado tem feito ao Corpo de Cristo. Olhemos para aquele que trespassámos. Conseguimos reconhecer a face do nosso Salvador? Conseguimos reconhecer a sua face nas feridas de outras faces?

Não é fácil, mas temos de tentar.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Quinta-feira, 12 de Março de 2020)

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