Stephen P. White |
Às
vezes a Igreja lida melhor com os pecadores do que com aqueles que foram
feridos e magoados pelo pecado.
Se
passar tempo suficiente a estudar a crise dos abusos na Igreja Católica – ou seja,
se ler muitos artigos antigos e ouvir muitos testemunhos de vítimas – começam a
emergir padrões. Alguns desses padrões deixam-nos perplexos, outros
enfurecem-nos: alegações que não foram levadas a sério; uma tendência para
subestimar o trauma causado pelo abuso infantil; um instinto fortíssimo para
proteger a reputação e os bens da instituição, mesmo que isso signifique
prejudicar as vítimas e deixar outros expostos ao risco; a vontade de confiar
em peritos que davam maus conselhos, sobretudo quanto à segurança de colocar abusadores
“reabilitados” de novo no ministério.
Tal
como muitas das vítimas de abusos sabem, muitas vezes a Igreja tem sido mais
solícita para com os padres – mesmo quando são abusadores confessos – do que
com as suas vítimas. Durante décadas o normal era o padre abusador – salvo em
casos de laicização ou cadeia – poder esperar que a sua diocese ou ordem
religiosa o enviasse para receber tratamento, terapia e – dependendo do tipo de
ofensas cometidas – reabilitação. Resumindo, o homem até podia ser retirado do
ministério, ou ver o seu ministério restringido, mas as suas necessidades
físicas, mentais e espirituais seriam asseguradas de todas as formas possíveis.
Já o seu acusador tinha apenas o direito a comunicar com um advogado.
É
verdade que isto começou a mudar há muito tempo. Desde 2002 as dioceses têm
sido muito mais eficazes no que diz respeito a oferecer serviços de
aconselhamento e terapia àqueles que se apresentaram como vítimas de abusos. A
Carta de Dallas diz de forma muito clara que “A primeira obrigação da Igreja
para com as vítimas é de cura e reconciliação”. Todas as dioceses nos Estados
Unidos devem ter um Coordenador de Assistência às Vítimas para garantir que
estas não se perdem no meio da máquina burocrática que é posta em marcha quando
são feitas alegações de abusos.
A
Igreja está a aprender a tratar as vítimas como pessoas que foram magoadas, e
não apenas como fontes de prejuízo. Muitas dioceses estão a abraçar um modelo
de interação menos conflituosa com aqueles que foram abusados.
Na
Primavera passada o Papa Francisco disse explicitamente que as autoridades da
Igreja têm de tratar os que foram magoados com “dignidade e respeito” e que
estes devem ser alvo de “acolhimento, escuta e acompanhamento, inclusive através
de serviços específicos; assistência espiritual; assistência médica,
terapêutica e psicológica de acordo com o caso específico.”
Ouvimos
falar frequentemente da necessidade de dar prioridade às vítimas, ou de
garantir que a Igreja as está a escutar. Penso que para a maioria dos católicos
isto é uma evidência. De tal forma é evidente que por vezes a repetição destes
chavões – em determinadas alturas e por determinadas pessoas – parece uma
tentativa de distrair de outros assuntos importantes ou embaraçosos. Há alturas
em que “temos de pensar nas vítimas” parece o equivalente eclesiástico de “circular,
aqui não há nada para ver”.
Dar
prioridade às vítimas pode ser fácil e óbvio em abstrato, mas na realidade pode
ser bastante difícil. Ainda que fosse possível eliminar os obstáculos
institucionais que ainda estão no caminho da relação entre a Igreja e as
vítimas – como o clericalismo persistente, a inércia burocrática, a autoproteção
eclesiástica, etc., – há verdadeiras barreiras que permanecem.
Para
começar, é muito mais fácil à Igreja condescender (no melhor sentido da
palavra) com pecadores – até abusadores – do que encontrar-se com os que
sofreram às mãos da Igreja. Não é só uma questão de psicologia. A Igreja tem
muita experiência a lidar com pecadores. As Escrituras estão cheias de parábolas
e de exemplos dados diretamente por Cristo: o Bom Pastor, o filho pródigo, a
samaritana no poço, a mulher adúltera, o chamamento de Zaqueu, a ordem para
perdoar 70x7.
Temos
todo um sacramento dedicado ao perdão dos pecados e à reconciliação do pecador
com Cristo e com o Seu Corpo. Mas em cada um destes casos é a Igreja que
perdoa, a Igreja é que é o veículo da misericórdia, a Igreja que se comporta
como Cristo. Jesus nunca teve de pedir perdão.
E
depois há o facto incontornável de que alguém que experimentou um trauma severo
é, por via do mesmo trauma, colocado à parte. Pense no soldado que volta para
casa depois dos horrores da guerra, dos pais que precisam de recompor a vida depois
de sepultar uma criança. Frequentemente aqueles que não tiveram de ultrapassar
provas terríveis como estas têm dificuldade em perceber como interagir com quem
teve.
Não
adianta nada fingir que o trauma não aconteceu, nem podemos fingir que
compreendemos a profundidade do que viveram. Não lhes podemos explicar o que
aconteceu, nem porquê. Não os podemos consertar.
Para
muitos, tudo o que podemos oferecer é uma palavra desajeitada de empatia – uma palavra
que, se tudo correr bem, não pior a situação – seguida de silêncio.
O
trauma pode abrir um fosso social entre o que o experimentou e os que não. Não
é fácil reduzir esse fosso, mesmo para aqueles que têm a boa vontade e o desejo
de o fazer. No caso das vítimas do abuso, o trauma pode criar um tabu. Não falo
de um tabu de repugnância, mas de reverência e temor isoladores.
A
Igreja deve continuar a aprender a escutar as vítimas – fazer-se presente para
as vítimas e ter paciência com as vítimas – e isso não é fácil, porque até a
nossa solicitude para com eles pode ser isoladora.
As
feridas imerecidas dos inocentes podem ser incompreensíveis para nós. São um obstáculo,
um sinal de contradição. Nesta época de Quaresma, enquanto contemplamos a Cruz,
vale a pena pensar no que o pecado tem feito ao Corpo de Cristo. Olhemos para
aquele que trespassámos. Conseguimos reconhecer a face do nosso Salvador?
Conseguimos reconhecer a sua face nas feridas de outras faces?
Não
é fácil, mas temos de tentar.
Stephen P. White é investigador em
Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic
Thing na Quinta-feira, 12 de Março de 2020)
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