Douglas Kries |
A sua mãe enviuvou antes de ele nascer e os Bolsheviks
confiscaram-lhe as terras de família. Mudou-se para Rostov, em busca de
emprego, mas grande parte da vida inicial de Solzhenitsyn foi passada a
partilhar a sua pobreza. Contudo, nascer na Rússia em 1918 significava pertencer
à primeira geração da gloriosa revolução comunista e as escolas marxistas
ensinavam ao jovem Solzhenitsyn que os princípios do comunismo em breve
conduziriam ao estabelecimento de uma época da História da humanidade
totalmente nova e livre do mal.
Quando irrompeu a Segunda Guerra Mundial, Solzhenitsyn
saiu da universidade em Rostov para servir nas Forças Armadas soviéticas. Em
1945 foi detido por comentários numa carta privada para um amigo que foram
considerados críticas de Stalin. Foi condenado a oito anos no sistema dos
campos soviéticos; mais tarde foi libertado para um exílio perpétuo no
Cazaquistão. Foi então que começou a escrever, sobretudo recorrendo às 12 mil
linhas de poesia que tinha composto em segredo nos campos, e memorizado.
Em 1962, Solzhenitsyn pôde regressar à Rússia, mas não se
atreveu a publicar ou sequer a submeter os seus manuscritos aos editores. Sob a
liderança de Krushchev começaram a surgir sinais de um degelo cultural e
Solzhenitsyn arriscou enviar – de forma anónima – um longo conto sobre um único
dia na vida de um prisioneiro dos campos para um jornal literário chamado Novy
Mir. O editor do jornal reconheceu imediatamente o valor da história e levou-a
directamente a Krushschev, que autorizou a publicação de “Um dia na vida de
Ivan Denisovich”.
A aceitação foi incrível. Uma testemunha escreve: “só o
facto de passear por Moscovo naqueles tempos era entusiasmante, havia multidões
de pessoas em cada quiosque, todos a pedir o mesmo jornal esgotado. Nunca me
esquecerei de um homem que não se conseguia lembrar do nome do jornal e pedia
‘aquele, sabe, aquele em que está publicada toda a verdade’. E a dona do
quiosque percebeu imediatamente do que é que estava a falar”.
A identidade do autor foi rapidamente conhecida e chegaram
centenas de cartas de antigos presos que, como Solzhenitsyn, tinham desafiado
as probabilidades e sobrevivido. Solzhenitsyn teve a ideia de usar as suas
histórias e memórias para escrever uma obra mais aprofundada sobre os campos.
Mas o “degelo” cultural rapidamente se transformou num “congelamento” e a
polícia secreta soviética começou a persegui-lo incessantemente.
Ainda assim, sentia o dever moral de escrever aquilo que
eventualmente viria a ser conhecido como “O Arquipélago Gulag”. Solzhenitsyn teve
de trabalhar em segredo e ia passando partes do seu enorme manuscrito de uma
secretária clandestina para outra, por forma a preservá-lo. Eventualmente foi
contrabandeado para fora do país e publicado em França. Daí foi rapidamente
traduzido para várias línguas e o mundo inteiro aprendeu a verdade sobre a
enormidade dos crimes soviéticos.
É fácil olhar para Solzhenitsyn apenas como o autor de
uma poderosa exposição política. Contudo, esse ponto de vista passa por cima do
verdadeiro poder e significância da sua escrita, porque ele não se limitou a
dizer-nos o quão terrível era o sistema de campos da União Soviética, mas
explicou porque é que era tão terrivelmente errado.
Durante o tempo que passou no arquipélago, Solzhenitsyn
tinha vindo lenta, mas firmemente, a rejeitar o marxismo da sua juventude e
abraçado a fé cristã. Esta conversão, todavia, não foi alcançada sem um enorme
sofrimento pessoal e um grau ainda maior de reflexão pessoal.
O marxismo afirma que há grupos e classes de seres
humanos que são bons e outros que são maus. Para se aperfeiçoar, a humanidade
deve isolar e eliminar as pessoas más. Solzhenitsyn viria a perceber que, pelo
contrário, a linha que separa o bem do mal vive dentro de cada coração humano
individual.
A posição marxista argumenta, por isso, que a humanidade
seria aperfeiçoada através do inevitável progresso da história do mundo. Mas se
a linha divisória está dentro de cada coração humano, então só é possível uma
melhoria limitada nesta vida, na mesma medida em que é possível alguma
degeneração. A posição marxista deve ser rejeitada, por isso, porque ignora a
realidade do pecado original.
Mais, a consciência cristã obriga os seres humanos a
tentar justificar os seus atos e persegue-os, ou chega mesmo a devorá-los, se
tal justificação não puder ser encontrada. Os marxistas, porém, forneciam os
seus adeptos não uma consciência, mas uma ideologia que justificava atos
malévolos em nome de um fim inatingível. Esta justificação ideológica levava os
marxistas para além dos limites normais da maldade e tonou possível que a
destruição de milhões não fosse vista como aberrante ou impensável, mas sim
como necessária e aceitável.
O marxismo não compreendeu a origem do mal nem percebeu o
que fazer com os seus efeitos, isto é, o sofrimento. Solzhenitsyn veio a
perceber que embora não existisse correlação entre aquilo de que ele, e outros
presos políticos, eram acusados e aquilo a que foram sujeitados, os cristãos no
arquipélago – ou pelo menos os melhores de entre eles – aprendiam a tornar o
sofrimento redentor. Isto é, sabiam como tornar o seu sofrimento uma penitência
contínua, que radicava numa confissão contínua.
A partir daí podiam alcançar a ascensão espiritual
através daquilo a que Solzhenitsyn apelidava “autolimitação”. Mais tarde ele
viria a avisar o Ocidente – na sua palestra em Harvard e no discurso de
aceitação do Prémio Nobel – que o “mundo livre” estava a abraçar a sua própria
escravidão materialista. Esse processo está hoje muito mais avançado do que
estava durante a vida de Solzhenitsyn.
Esta autolimitação assemelha-se muito à autolimitação de
Cristo, que não procurou equiparar-se ao ilimitado, mas limitou-se de livre
vontade e se tornou homem, aceitando a forma humana e o sofrimento humano,
oferecendo-nos assim a divina misericórdia.
Há aqui uma lição importante para nós, porque estas
verdades profundas que Solzhenitsyn revelou devem governar todos os regimes, e
todas as vidas.
Douglas Kries é professor de filosofia na Universidade
Gonzaga, em Spokane, Washington. É co-autor, com Brian Clayton, de Two Wings: Integrating Faith and Reason (Ignatius Press, 2018).
(Publicado pela primeira vez na terça-feira, 11 de Dezembro
de 2018 em The Catholic Thing)
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