Anthony Esolen |
“Quando Beowulf parte para matar o dragão que tem estado
a devastar os campos”, dizia eu aos meus alunos caloiros, há dias, “todos os
seus seguidores juram que o acompanharão na batalha. Mas quando a situação
aperta, desaparecem. Apenas um deles, Wiglaf, é leal e ajuda Beowulf,
mortalmente ferido, a matar o dragão. Não indo ao ponto de dizer que Beowulf é
uma figura semelhante Cristológica, o que claramente não é o caso”, continuei,
“parece-me seguro dizer que o poeta está a evocar Cristo no Calvário”.
Até aqui, tudo bem. Toda a gente sabe que Jesus foi
crucificado. Então perguntei, casualmente: “Qual dos apóstolos foi fiel ao
ponto de ficar junto a Jesus quando o pregaram na cruz?”. Silêncio
envergonhado. Dei-lhes umas pistas. “Aparece em praticamente todas as
representações artísticas da Crucifixão. Normalmente é representado como um
jovem sem barba, porque segundo a tradição ele era o mais novo dos apóstolos”.
Nada. “Jesus falou directamente com ele a partir da Cruz”.
Então cinco dos alunos tentaram adivinhar.
“Pedro?”
“Judas?”
“Simão?”
“Tomás?”
“Paulo?”
As tentativas revelaram mais que o silêncio, e foram mais
desencorajadoras.
Dezasseis caloiros universitários, a maioria católicos de
uma forma ou de outra, e nem um deles recordava a passagem “mulher, eis o teu
filho”.
Ocorreu-me que se tivessem diante do quadro da Crucifixão
no santuário da igreja que frequentei quando era criança, em Archbald,
Pensilvânia, não seriam capazes de o “ler”. Isso é verdadeiramente bizarro,
quando paramos para pensar no que motiva a arte religiosa.
Porque só pintamos uma cena das Escrituras, ou esculpimos
em pedra, ou fundimos em vitrais, se pudermos contar que outros cristãos a vão
reconhecer. Fazemos parte de uma história partilhada do mundo e a nossa arte
fornece aos fiéis uma experiência partilhada, ou uma visão comum de algum
momento ou incidente histórico.
O Regresso do Filho Pródigo, de Rembrandt, tem pouco ou
nenhum significado se não conhecermos a parábola. Não compreenderemos porque é
que o jovem está de joelhos, nem por que razão tem os sapatos desfeitos ou
porque é que os que observam estão trajados com mantos reais.
Em certo sentido estamos perante uma verdadeira inversão.
Os analfabetos da Idade Média, quando os livros eram raros e caros e, por isso,
havia pouca ou nenhuma razão para que um agricultor ou um moleiro soubessem
ler, estavam, ainda assim, imersos em histórias. Os quadros e os vitrais eram
simultaneamente uma expressão da fé e um elemento de instrução da mesma.
Essa expressão e instrução abrangiam ainda a riqueza de
orações e de hinos que as pessoas ouviam e conheciam de cor. Quando se inventou
a imprensa, os livros tornaram-se mais acessíveis, dando às pessoas comuns uma
razão prática para aprender a ler. Todos os salmos, as orações da missa e a
liturgia das horas, para além de incontáveis orações, hinos e relatos das vidas
dos santos, estavam de repente ao alcance.
Mas tudo isso é passado. Os nossos jovens sabem ler, mais
ou menos – as nossas escolas abandonaram em larga medida tanto a poesia em
geral como a literatura inglesa escrita antes de ontem à tarde.
Mas no que diz respeito às histórias da Escritura e da
fé, não estão em melhor posição que os índios pagãos, olhando deslumbrados para
os símbolos estranhos que comunicavam com o sacerdote a partir do seu livro.
Aliás, em certo sentido estão ainda em pior situação. Os Huron e os Iroquois
tinham séculos de histórias poéticas imemoriais para os ajudar a compreender o
mundo. Os nossos pobres sub-pagãos têm apenas o Homer Simpson e o Han Solo.
Que fico claro que não estou a sugerir que eu, na idade
deles, estava em muito melhor posição. Certo, conhecia os Evangelhos de trás
para a frente, bem como as principais histórias do Antigo Testamento. Mas para
além disso, também eu sofria de analfabetismo religioso.
Durante seis anos frequentei a escola de São Tomás de
Aquino e não aprendi nada sobre São Tomás de Aquino. Assistia frequentemente à
missa naquela igreja, mas era incapaz de reconhecer Santo Inácio e São
Francisco Xavier nos vitrais. O guarda-roupa na sacristia tinha gravado nas
portas um pelicano medieval com as suas crias, com uma frase do hino
eucarístico de São Tomás, mas eu não fazia ideia do que se tratava. Ninguém falava
do assunto. O elo histórico tinha sido quebrado.
Permitam-me fazer então o diagnóstico, da forma mais crua
que posso. Não há catequese que compense esta lacuna. Se a sua imaginação for
formada pelo entretenimento de massas – se o Spock lhe for mais familiar do que
Abraão e Moisés, se consegue cantarolar o último sucesso da Madonna, mas não
consegue identificar as palavras de Jesus sobre os lírios do campo – então é
como um pagão que acaba de ser baptizado, mas que ainda só tem uma ideia vaga
do que significa ser cristão.
Não admira que os antigos vikings, acabados de
evangelizar, pensassem que podiam continuar a pilhar como tinham feito. Da
mesma maneira não nos deve surpreender que os novos pagãos, praticamente sem
evangelização, pensem que podem continuar a matar crianças no ventre, ou
caminhar alegremente rumo a Sodoma.
C.S. Lewis, influenciado por antigos filósofos e poetas,
dizia que a cabeça governa a barriga através do peito. Pois o peito é o reino
da arte imaginativa, que nos inspira com contos de valor e de santidade, ou que
então degrada com contos de hedonismo, cinismo, ateísmo e depravação.
Temos de evangelizar a imaginação. Jesus ensinou através
de histórias. Isso não nos devia dizer alguma coisa?
Anthony Esolen é tradutor, autor e professor no
Providence College. Os
seus mais recentes livros são: Reflections on the Christian
Life:How Our Story Is God’s Story e Ten Ways to
Destroy the Imagination of Your Child.
(Publicado pela primeira vez na segunda-feira, 30 de Janeiro
de 2017 em The Catholic Thing)
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