Randall Smith |
Tinha acabado de tirar os olhos de uma das caras quando
vislumbrei a outra. A primeira era a cara de um pobre senhor camponês (“Estudo
para o Retrato de um Velho”) pintado pelo grande artista norueguês Edvard Munch
quase duas décadas antes do seu trabalho mais famoso, “O Grito”.
Tive o privilégio de estar a visitar a fantástica
exposição sobre Munch e Van Gogh no Museu Van Gogh em Amesterdão com a minha
mulher e um grande amigo. Uma das coisas que ressalta logo sobre os primeiros
trabalhos de ambos estes grandes artistas é o seu interesse pelas vidas e caras
de simples camponeses, como aquele que tinha acabado de ver.
Estudo para o retrato de um velho |
Mas quando me voltei do quadro do pobre camponês os meus
olhos não repousaram sobre a famosa cara angustiada de “O Grito” – isso ficaria
para mais tarde. Em vez disso vi uma cara ainda mais espantosa, tendo em conta
onde me encontrava. Era a cara pura e simples de um adolescente com trissomia
XXI, a observar aquelas pinturas com admiração e espanto, tal como nós, num
país onde muitas pessoas teriam partido do princípio que ele simplesmente não
tinha suficiente “qualidade de vida” para existir.
Diante de mim, a poucos quilómetros da casa onde Anne
Frank se escondeu dos seus algozes por ser considerada “geneticamente impura”,
estava um jovem cuja alegada “impureza genética” tem levado ao extermínio
daqueles que partilham da sua condição.
Todos sabemos que as crianças com trissomia XXI têm
aquela cara distintiva. É mais fácil de identificar do que o judaísmo. Quantas
das pessoas artisticamente sensíveis que passeavam por aquele museu holandês,
agiriam com base no desejo de não ter olhar para aquela cara ou outras como
ela? Cerca de 92% das crianças com trissomia XXI são actualmente abortadas. Há
quem diga que, ao ritmo actual, a Dinamarca, por exemplo, poderá ver a sua
última criança com trissomia XXI até ao ano 2030.
O que é que estes estetas holandeses estariam a pensar
quando viam esta simples cara entre eles? O que é que os terá preparado para
esta visão numa nação que há muito perdeu a sua ligação a uma cultura que
interessa – uma cultura que costumava valorizar de forma especial, na sua maior
arte, as vidas dos pobres e desapossados?
"genéticamente impura?" |
Mas aquilo que mais me interessava naquele momento era o
que estaria a passar pela cabeça do meu amigo, uma vez que ambos vimos o rapaz
ao mesmo tempo. É que o meu amigo tem um filho com trissomia XXI e, como
qualquer pai, eu sabia que ele seria ainda mais sensível a tudo isto e
protectivo desta criança. Ele teria reparado naqueles olhares desconfortáveis e
condenatórios milhares de vezes e sabia que naquele instante só queria gritar.
O Munch descreveu da seguinte forma a inspiração para “O
Grito”:
Estava a caminhar
na rua com dois amigos – o sol estava a pôr-se – de repente o céu ficou cor de
sangue. Parei, sentindo-me exausto, e encostei-me à cerca. Havia sangue e
línguas de fogo por cima do fjord azul e preto e da cidade. Os meus amigos
continuaram a andar e eu fiquei ali a tremer de ansiedade – e senti um grito
infinito a passar pela natureza.
O desenho original e as subsequentes pinturas que Munch produziu
com base nele são geralmente interpretados como representações da angústia e da
ansiedade do mundo moderno, despido de todas as suas amarras à fé e à tradição.
Houve uma altura em que as pessoas pensavam que podiam
substituir a “religião” com a espiritualidade das artes. Pensar-se-ia que o
holocausto tinha acabado com essa tolice. Havia grandes obras de arte expostas
no Rijksmuseum em Amesterdão, a uns meros 15 minutos a pé de onde a Anne Frank
e a sua família estavam escondidos num anexo secreto durante os anos escuros da
Segunda Guerra Mundial. E agora damos por nós novamente a defender as vidas dos
“geneticamente impuros” contra as selvajarias da elite bárbara que se apresenta
como grande guardiã da cultura.
Quem não conhece a história está condenado a repeti-la. E
demasiadas vezes até aqueles que conhecem a história recusam-se a deixar que
ela sirva de aviso ou de juízo. “Afinal de contas, não somos nazis”, dizem as
pessoas, como se não fosse expectável que as nossas aspirações fossem um bocadinho
mais altas que isso.
Quando começarmos a ver “grandes artistas” a procurar
novamente a face de Cristo nas caras dos pobres e nas caras das crianças com
trissomia XXI em vez de gastar toda a energia na sua libido sexual, teremos uma
cultura a que vale a pena prestar novamente atenção. Até lá será mais da mesma
masturbação artística auto-indulgente.
O Grito, de Edvard Munch leiloado por 120 milhões |
Uma cultura deve ser julgada com base no valor que dá aos
membros mais fracos da sua sociedade e da forma como cuida deles, e não no
valor que gasta nas suas pinturas e nos seus museus. A nossa é uma cultura em
que a versão de pastel sobre madeira de 1895 deste quadro foi vendido no
Sotheby’s de Londres no dia 2 de Maio de 2012 por um recorde de 120 milhões de
dólares. Mas é também aquela em que 92% das crianças com trissomia XXI são
abortadas. Não, não somos nazis. Mas daqui a 100 anos nenhuma pessoa decente
olhará para o nosso tempo com um sentido de orgulho.
Se o Papa Francisco está a pensar montar um “hospital de
campanha” no meio de uma batalha furiosa, então não precisa de ir mais longe do
que os campos da morte da Europa e da América. É tão inútil perguntar a uma
cultura seriamente ferida se tem as compensações de carbono em ordem como é
perguntar a um ferido grave no campo de batalha se tem problemas de colesterol.
Protejam primeiro as nossas crianças. Depois podemos falar de tudo o resto.
Randall Smith é professor de teologia na Universidade de
St. Thomas, Houston.
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Texto poderoso!
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