Monday 28 April 2014

Divorciados, recasados e comunhão

 [Nota: A seguir a este texto escrevi um novo, com as conclusões da discussão que decorreu a este propósito. Aconselho a sua leitura também]

Este ano não há nada a fazer, o tema do casamento, das segundas uniões e do acesso aos sacramentos para pessoas em uniões irregulares não vai acalmar.

Em Outubro do ano passado o Papa convocou um sínodo para a Família, que vai inevitavelmente abordar estes temas, entre outros. Foi feito um inquérito aos fiéis, o que conduziu logo a uma maior atenção mediática e maior discussão nas redes sociais.

Desde essa altura temos assistido, a meu ver tristemente, a uma guerrilha pública entre cardeais, com uns e outros a apresentar os seus argumentos procurando marcar terreno. Pior, nalgumas dioceses vemos mesmo uma antecipação ao sínodo, procurando dessa forma condicionar as suas conclusões.

Até agora, tanto quanto vi, toda a discussão se tem centrado na indissolubilidade do casamento. Mas será a única abordagem? E se víssemos a questão pela perspectiva do acesso à comunhão?

Hoje em dia estamos habituados à ideia de que todos podem comungar, todos os dias se quiserem. Mas nem sempre foi assim. Antigamente a comunhão, para os leigos, era uma coisa rara. Comungava-se na Páscoa, e eventualmente numa ou noutra celebração importante. E para isso era necessário ter-se confessado imediatamente antes.

Aliás, tudo isto apenas é possível porque se verificaram mudanças no entendimento do acesso à confissão. Antigamente a pessoa confessava-se uma vez, de preferência à beira da morte. Mais tarde, por iniciativa de monges irlandeses, nasceu o hábito da confissão frequente.

E se os bispos chegarem à conclusão que, da mesma maneira que se mudou a prática em relação à comunhão frequente, era agora possível dar mais este passo e admitir à comunhão pessoas que anteriormente estariam excluídas? Se em vez de se encarar a Eucaristia como o coroar de um “Estado de Graça”, se encarar como um auxílio também para quem falhou mas quer continuar a caminhar e não desistir de crescer na proximidade com Deus?

Há um grande obstáculo a este raciocínio. “Portanto, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será culpado de pecar contra o corpo e o sangue do Senhor. Examine-se cada um a si mesmo e então coma do pão e beba do cálice. Pois quem come e bebe sem discernir o corpo do Senhor come e bebe para sua própria condenação”, diz São Paulo numa epístola aos Coríntios.

Contudo quem, se não a Igreja, tem a legitimidade para determinar quem é digno ou indigno? No tempo de São Paulo, provavelmente uma pessoa a viver em estado de adultério seria considerada indigna de comungar, mas na mesma medida, digo eu, seria considerada indigna sequer de ir à missa, de estar à mesa do Senhor.

Se a Igreja já disse várias vezes que os divorciados e recasados podem e devem estar integrados na vida da Igreja, que devem estar à mesa do Senhor, então não os pode admitir à comunhão? Faz sentido convidá-los para se sentarem à mesa mas não comer?

Pessoalmente, penso que este pode ser um caminho que dá aos milhões de pessoas que aguardam uma resposta da Igreja o sinal de esperança que não os desilude, sem no entanto abdicar da ideia da indissolubilidade do casamento, que é fundamental.

Este texto é uma mera reflexão. Não é uma reivindicação, nem quero colocar no lugar dos bispos. Eles que reúnam, que discutam, que decidam, é isso que esperamos deles!

12 comments:

  1. Só Deus tem a ver com os pecados de cada um.
    Mas os pecados públicos, que causam escândalo, não podem ser promovidos ou aceites. A pessoa sim, deve ser aceite e promovida!
    Se for permitido a comunhão a quem viva em adultério, porque não permitir a todos os outros que vivam noutro pecado grave?
    “Muitos casamentos não são bons; eles não agradam à Nosso Senhor e não são de Deus.” Nossa Senhora em Fátima

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  2. Como toda a gente sabe, esta questão é muito complicada. Uma das razões (entre outras, certamente) é a de saber como será possível estar em comunhão com Cristo no âmbito dum sacramento (a Eucaristia), recusando(?), quebrando (?) essa mesma união no âmbito de outro sacramento (o Matrimónio). Haverá outras formas mais elegantes e rigorosas de a colocar, mas parece-me que dita desta forma ou de outra melhor, esta questão será uma das que o Sínodo e os teólogos poderão enfrentar se abordarem o assunto de boa fé e em espírito de verdade.

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  3. Gostaria mais, embora não domine o assunto, que a solução do problema passasse pela aproximação ortodoxa: a autorização de um segundo casamento pela igreja, aceite em determinadas condições. Era uma forma de conciliar a consciência individual e a colectiva, porque o segundo casamento seria "sancionado" pela Igreja.
    O comentário do/da "anónimo/a" acima deixa-me alguns cabelos em pé. Só a expressão adultério é, já de si, desagradável e pejorativa demais para algumas situação de segundas relações por abandono de um dos cônjuges. Mas acabo, de forma ínvia, por dar-lhe razão: "muitos casamentos não são bons, não agradam a Nosso Senhor e não são de Deus." Muitos destes são primeiros casamentos...

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  4. Ninguém a não ser a própria pessoa sabe a relação que tem com o Pai, Deus de Amor e as suas intenções. A meu ver a "mais valia" que a comunhão do Corpo e (demasiadas poucas vezes) do Sangue dá é uma força suplementar e auxilio para enfrentar as dificuldades e aqueles aspectos em que sou mais fraco e débil. A questão do adultério é relativa. Não concebo uma Igreja ou um Deus que prefira uma vida infeliz por causa de um matrimónio que falhou a uma vida feliz com outra pessoa ao lado. Quais são então os recasados que poderão comungar? Repito o que disse no principio: cada pessoa é a única capaz de avaliar a sua relação com Deus. Mais ninguem o é. E isto aplica-se a todos os aspectos da vida: sou um pai/mãe presente ou ausente? Cumpro as minhas responsabilidades profissionais? Sou bom irmão, amigo, filho...? AMO O PRÓXIMO COMO A MIM MESMO? Eu não o faço a 100%. Por isso comungo para que Deus me ajude....

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  5. Filipe,
    Achei muito interessante a tua reflexão. Acho que os argumentos que utilizaste são pertinentíssimos. Deixaram-me a pensar! Mas este é um tema, de facto, bastante complicado, como explicaste muito bem. Não sei se a Igreja estará preparada para uma mudança destas no acesso à comunhão, não só pela questão do Estado de Graça e pelas palavras de São Paulo mas sobretudo porque não parece haver fundamento sólido para alteração do magistério a este respeito. Quando a confissão e a comunhão passaram a ser mais frequentes (uma história que esteve profundamente ligada às práticas que se seguiram ao Concílio de Trento e à própria acção da Companhia de Jesus), isso partiu de uma iniciativa da Igreja. Todos os crentes estavam na mesma situação. Tal como a confissão, a comunhão era pouco frequente (não se comungava em todas as Páscoas; tal como na confissão, por vezes só se comungava uma vez por ano, também na altura de morte), mas a prática era uniforme. Quando a confissão e a comunhão passaram a ser mais frequentes, todos católicos mudaram as suas práticas. É uma história ligeiramente diferente, porque não é uma história de uma minoria que, de repente, passou a ter acesso mais frequente à confissão e à comunhão - a prática era universal e, quando mudou, continuou a ser universal. A Igreja Católica percebeu que era importante a confissão e a comunhão frequente, e por isso é que a prática se alterou. Acho complicado que agora, por causa de uma situação que se tem agravado nos últimos anos, as regras/prática mudem para incluir uma minoria. O convite que Deus nos faz é um convite pessoal. Um convite que pode implicar escolhas difíceis como por exemplo entre recasar ou procurar seguir os ensinamentos da Igreja a este respeito. Mas não deixa de ser uma escolha pessoal e, por isso, é bastante complicado permitir a comunhão àqueles que escolheram livremente um determinado caminho (e que se mantém na mesma direcção). Se a Igreja considera que os recasados vivem em pecado, e que situação é uma situação permanente, então como é que lhes pode ser dada a absolvição ou a comunhão? O que te parece?
    Abraço,
    Francisco

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    1. O que é que me parece? Olha... parece-me que felizmente não sou eu que tenho de tomar estas decisões.

      Mas assim de repente, pensemos na primeira grande decisão tomada por um concílio, o de Jerusalém, logo no início da Igreja! Claro que não é uma situação idêntica, mas aí o que se passou foi uma decisão para integrar o que na altura era uma minoria, os gentios, que assim ficaram dispensados de serem circuncidados e de terem de respeitar as regras alimentares judaicas.

      Repito, sei que não é paralelo. Aqui há, por mais que se queira disfarçar a coisa, uma situação irregular. Na altura foi mais uma questão de choque cultural. O que quero dizer é que não me faz confusão a Igreja alterar normas para integrar minorias, sobretudo quando não estamos a falar de cinco ou seis casos...

      Mas principalmente, obrigado pelo teu comentário que torna o post muito mais interessante.

      Estava francamente à espera que tanto aqui como no Facebook a conversa "degenerasse" e se transformasse numa guerrinha. Felizmente não tem sido o caso! Obrigado a todos.

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    2. Sobre o tema devo lembrar que há pessoas como por ex. o Marqês de Grigñon que casou pela Igreja com uma francesa e teve dois filhos (casamento anulado)...depois casou pela Igreja com a ex do Julio Yglésias e tev uma filha (casamento anulado mas...só para ele)...voltou a casar pela Igreja com Fátima de la Cierva (com quem, penso, também teve filhos e de quem se encontra divorciado!!!

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  6. Obrigado pela tua resposta Filipe. É um paralelismo muito interessante. Apesar de não ser uma situação idêntica, tem pontos muito semelhantes, como mostraste. Acho que o exemplo histórico que deste pode abrir horizontes, de facto. Estou muito interessado em seguir, de perto, os próximos passos.
    Também me descansa saber que não seremos nós a tomar estas decisões.
    Abraço,
    Francisco

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  7. A pergunta a fazer é: porque querem comungar?
    Temos todos o direito de ser feliz, mas a forma de o ser pode ser diferente daquela que idealizamos.

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  8. Este é um assunto que não consigo conternar e por esta razão tento lêr todos os argumentos para entender e convencer-me

    1º Confessar pressupõe que estou arrependida(o), e portanto tento pelo menos mudificar a minha vida. Como pode isto acontecer se não quero ou não posso modificar este meu estado?

    2º Então qual o valor da confissão? porque nos confessamos?

    3º Porque é o próprio Jesus nos Evangelhos nos diz que o adulterio é mau?

    Além razões teologicas que não domino, calculo que uma das muitas razões será porque alterará completamente uma sociedade se não vejamos:

    Que acontece por eu querer ser feliz e deixar para trás o meu conjugue e filhos infelizes? Onde está a caridade?

    Qual a forma de olhar de futuros noivos para o seu casamento? Se não der certo não faz mal, sigo para outra?

    Qual o exemplo que dou às nossas crianças em relação ao casamento?

    Como queremos responsabilizar os jovens para atitudes serias e colaboradoras
    de um mundo melhor?


    Quando rezo a única oração que Jesus nos ensinou "O Pai Nosso" fala SEJA FEITA A VOSSA VONTADE, penso que a Vontade de Deus se transforma mais na NOSSA VONTADE.

    Todo este tema é deveras complicado.
    Que o Espirito Santo esteja presente no sinodo do Bispos, é o que desejo sinceramente
    Constança







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  9. Constança,
    Peço-lhe que releia o que escrevi, para ver que em lado nenhum proponho que se ponha em causa a indissolubilidade do casamento. Portanto não defendo que o adultério deixe de ser mau e não acredito que seja por se admitir, eventualmente, pessoas em uniões ilegítimas à eucaristia que os nossos jovens passarão a casar-se irresponsavelmente.

    Só para que fique claro.
    De resto, obrigado!
    Filipe

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