No sábado o Il
Foglio, o mais importante jornal conservador de Itália, publicou o texto
completo do discurso inaugural do Cardeal Kasper ao Consistório sobre a
Família, que se realizou no Vaticano, uma reunião preparatória para o Sínodo
Extraordinário da Família que terá lugar de 5-19 de Outubro, em Roma. O texto
apenas está disponível em italiano (embora haja passagens
significativas em inglês aqui). O Cardeal, conforme a sua própria
descrição, “colocou questões”, questões altamente controversas, sobre o
tratamento pastoral dos católicos divorciados e recasados, em particular no que
diz respeito à readmissão à comunhão.
O discurso não era para ser secreto, na verdade, era suposto
ter sido publicado em forma de livro, presumivelmente com outro material. Mas
ao aparecer de repente, como apareceu, e com sugestões aparentemente
revolucionárias inspiradas em práticas antigas, é evidente que se vai tornar um
assunto quente para os próximos meses. Alguns comentadores já estão a dizer que
se agora a Igreja não permitir que os divorciados e recasados recebam comunhão,
passaremos por outro período de choque e revolta, semelhante ao que se seguiu à
publicação por Paulo VI do “Humanae Vitae” em 1968, que reafirmou o ensinamento
cristão sobre a contracepção.
Estamos a colocar vários carros à frente de vários bois. O
texto de Kasper é cauteloso, embora pareça apontar numa direcção
revolucionária. Ele reafirma a proibição que Jesus fez ao divórcio, enquanto
explora como lidar com algo que se tornou um difícil problema moderno.
Não há um católico hoje que não conheça alguém que viva em
circunstâncias matrimoniais irregulares. O divórcio, mesmo entre católicos
praticantes, é cada vez mais comum e – dada a loucura sexual e a pressão
económica e cultural das sociedades modernas – nem sempre a culpa é de apenas
um. Essa é uma razão pela qual vários papas – João Paulo II, Bento XVI e agora
Francisco – sugeriram a exploração de soluções pastorais. O porta-voz do
Vaticano, padre Federico Lombardi, já disse que o pensamento de Kasper está em
linha com o do Papa.
Dito isso, contudo, o discurso dá a ideia de estar a fazer
algo que, pelo menos à superfície, é contraditório. Kasper fala da necessidade
de se “alterar o paradigma”, com a Igreja a tornar-se o Bom Samaritano para
aqueles que pedem socorro. Mas na mesma passagem afirma a indissolubilidade do
casamento que “não pode ser abandonado ou desfeito, apelando a uma compreensão
superficial de misericórdia barata”.
Ele compara a nossa situação à do Vaticano II, quando princípios
dogmáticos pareciam impedir certas acções, mas o Concílio “abriu portas”.
Apesar dos sinais de alarme que esta comparação possa despertar nalgumas
pessoas, Kasper oferece, tentativamente, duas possíveis “aberturas”.
A primeira é o que pode ser considerado a “racionalização” e
“personalização” do processo de nulidade. Em vez de passar por um processo
canónico formal, “o bispo poderia confiar a tarefa a um padre com experiência
espiritual e pastoral como um vigário episcopal ou penitenciário”.
Presumivelmente este conheceria melhor as pessoas e a situação, evitando assim
o incómodo de um processo impessoal e desajeitado. Alguns advogados canónicos
já levantaram questões sobre como isto poderia funcionar na prática, mas pelo
menos em teoria não é mais que um ajuste da ideia existente de que em certas
condições a celebração de um casamento possa ser nula.
A “abertura” mais revolucionária, a segunda, sugere, depois
de um período de penitência, “não um segundo casamento, mas sim uma tábua de
salvação através da participação na comunhão”.
Aqui o argumento torna-se mais obscuro e precisa de ser
clarificado. Roberto de Mattei, um historiador que já escreveu para o The
Catholic Thing, respondeu no Il Foglio, no mesmo dia em que apareceu o texto de
Kasper, que o Cardeal não pode anular a história e a doutrina “com uma
revolução descarada na cultura e na prática”.
É difícil dizer se é isso que Kasper está a propor – embora
de Mattei seja uma pessoa inteligente e pareça estar no caminho certo. O
Cardeal acrescenta que o arrependimento em condições certas devia levar à
confissão. Até aqui tudo bem. Mas depois lista cinco condições que poderão
levar ao regresso à Comunhão para uma pessoa nesta situação:
1. se estiver arrependida do falhanço do primeiro casamento
2. se tiver clarificado as obrigações do primeiro casamento,
se estiver definitivamente posto de parte que possa voltar atrás,
3. se não puder abandonar, sem causar danos, as
responsabilidades assumidas pelo novo casamento civil,
4. se, contudo, estiver a fazer tudo ao seu alcance para
viver as possibilidades do segundo casamento com base na fé e a educar as
crianças na fé,
5. se desejar os sacramentos como fonte de força na sua
situação, devemos ou podemos negar-lhe, depois de um período de tempo noutra
direcção, de “metanoia”, o sacramento da penitência e, depois, de comunhão?
O Cardeal Kasper afirma que esta não poderia ser uma solução
massiva, mas apenas aplicada a poucas pessoas em situações indesejáveis, que
verdadeiramente queiram os sacramentos. E assenta as suas propostas em casos
derivados da história antiga da Igreja – os ortodoxos ainda permite o divórcio
e o recasamento – que poderiam ser aplicados cuidadosamente. Alguns académicos
negam que esses casos existissem antes de os padrões se tornarem mais frouxos
nos séculos posteriores do Império Bizantino.
Perguntei a um padre de confiança o que pensava desta linha
de argumentação. Ele respondeu-me com uma perspectiva “pastoral” diferente:
“Enquanto pároco, sinto muito pelas boas pessoas que se
encontraram, ou encontram, em casamentos falhados. Há entre eles algumas
pessoas heróicas e santas – algumas das quais contraíram segundos casamentos.
Gostaria verdadeiramente de as ajudar a encontrar uma forma de receber a
Eucaristia e regularizar a sua situação, mas não vejo como a “solução de
Kasper” possa resultar. Sei da forma como se lidava com alguns destes casos na
Igreja primitiva, que havia um período de penitência e mesmo uma dimensão
penitencial no segundo casamento, mas conseguem mesmo ver-nos a implementar
estas práticas penitenciais? Conseguem imaginá-las a serem aceites? Eu não. E
com todo o respeito, isto seria mais um tiro dado a um sacramento que já se
encontra ferido pelo pelotão de fuzilamento cultural.”
Preparem-se. Vamos ouvir falar muito mais sobre este assunto
no futuro próximo.
Robert
Royal é editor de The Catholic Thing e presidente do Faith and Reason Institute
em Washington D.C. O seu mais recente livro The God That Did Not Fail: How
Religion Built and Sustains the West está agora disponível em capa mole da
Encounter Books.
(Publicado pela primeira vez em The
Catholic Thing na segunda-feira, 3 de Março de 2014)
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