Transcrição completa da entrevista a Margarida Ataíde,
crítica de cinema para a Ecclesia e colaboradora do Secretariado Nacional da
Pastoral da Cultura.
O que achou do filme “O
Filho de Deus”?
Sempre que escrevo um artigo de cinema há duas
circunstâncias que se verificam sempre. Não costumo ler muito sobre o filme
antes de o ler, escolho pela programação ou por referências que tenha, mas
tento não ir condicionada.
No caso de “O Filho de Deus” sei porque foi lançado há não
muito tempo o DVD com a mini-série feita para televisão e que está na base
deste produto, uma mesma obra do mesmo realizador, Christopher Spencer, e sabia
que era um filme que ia ser lançado com um formato original feito para
televisão, e que iria ser levado ao grande ecrã, o que representa já por si um
grande desafio uma vez que no grande ecrã tudo é dimensionado a uma escala
bastante maior, o que significa que tanto os efeitos do filme são apresentados
ao espectador de uma forma mais grandiosa, de forma a envolvê-lo mais, e se há
alguns aspectos de menor qualidade também são mais evidentes. São estes os
desafios que o realizador tinha.
Neste caso isso
correu-lhe bem, ou nem por isso?
Penso que foi um desafio assumido mas não bem sucedido. O
filme contava com um orçamento muito baixo e portanto teve de se socorrer de
uma equipa técnica e artística não de grande qualidade. Temos uma coisa que nos
toca particularmente, porque temos o actor português Diogo Morgado a encarnar o
papel de Jesus. Seria aquele a quem é feito o desafio para encarnar o verbo e
penso que fica muito aquém da dimensão da personagem. Por outro lado o
realizador tem como única solução para tentar dirimir essa evidência de menor
qualidade que é recorrer a sequências muito fugazes, isso não ajuda à impressão
e transmissão da mensagem e do texto ao longo do filme.
Na altura da mini-série
houve muitas críticas, algumas boas e outras más. Pode-se dizer que estamos
perante uma ideia que funciona bem em DVD mas não no grande ecrã?
Poderia ser isso. Qualquer realizador interessa-se pela
figura de Jesus e pela proposta da própria Bíblia e pode, eventualmente, olhar
Jesus e tentar interpretá-lo à sua forma, ou recontar a sua experiência de
relação com aquela figura, não o pode fazer de forma abusiva. Não pode
perverter o que está no fundamento daquela pessoa, Deus tornado homem.
O que acontece neste filme é que, sendo Jesus aquele que se
fez próximo de nós, que estabelece uma relação próxima de nós, de tal forma que
vem a nós também como homem, todo o filme, ao assentar na ideia que Jesus traz
o poder, e são permanentes as referências, isto são perversões do próprio texto
bíblico, daquilo que é a narrativa bíblica e portanto ultrapassam o facto de
ser um formato grande ou pequeno ou de ter menos ou mais qualidade. É uma interpretação
abusiva.
Temos assistido a
vários filmes nos últimos anos que recuperam temas bíblicos. Tem havido uma
maior atenção a temas especificamente religiosos do que era normal há uns anos?
Temos de fazer uma distinção entre a produção
cinematográfica e o cinema que circula e que é representado em sala. Para além
de um investimento, de uma produtora, de um produto que procura fazer o
circuito comercial, que tem de ter rentabilidade, daquele que é feito por
realizadores e criadores independentes, por sua iniciativa, que perscruta um
pouco alguns temas que são de carácter religioso ou de matéria de fé, ou que
questionam o sentido da vida e isso também perpassa por este Deus como o
conhecemos... talvez a nível comercial sim, talvez.
Não diria que existe um maior interesse, talvez haja uma
abordagem diferente e nesse sentido talvez ultimamente, nestes anos, e agora
com este caso de “O Filho de Deus” e o que me parece que acontece um pouco com “Noé”,
é que são narrativas que se aproximam mais do estilo narrativo utilizado nos
grandes obras bíblicas dos anos 40 e 50, mais do que obras em que um criador de
cinema interpela uma questão de fé mais como um diálogo individual, aqui tem
esse carácter mais público e comercial.
Mas a nível de temas
religiosos no substrato de filmes que não são explicitamente religiosos, isso
tem sido mais uma constante?
Sim, no circuito comercial penso que sim.
A nível de filmes
recentes que talvez tenham escapado ao circuito comercial, ou mesmo estando no
circuito comercial tenham essa linguagem mais escondida, o que é que a marcou
mais nos últimos anos?
Um dos filmes que me marco mais, por várias razões, foi um
filme de uma jovem realizadora italiana chamado “Corpo Celeste”, que tive
oportunidade de levar ao sétimo simpósio do clero, em Fátima, exactamente por
ser um filme feito por uma realizadora não católica, que terá passado pela
catequese e que conta a história de uma menina chamada Marta que vem com a sua
mãe e com a sua irmã da Suíça e retorna a uma cidade suburbana, periférica, da
região sul de Itália.
Esta menina inicia o seu percurso de crisma na catequese da
Igreja. É uma criança que está em transformação, na adolescência, e procura um
encontro com Cristo que não consegue fazer através da catequese. Aqui o
interesse da realizadora é ela própria questionar um caminho possível de fé, é
um olhar de fora da Igreja para dentro, sério e tocante, em que se acompanha o
percurso da menina, que convive com um grupo em que não se sente integrada,
porque tudo o que a catequista lhe transmite, com a sua melhor intenção e
bondade, não é suficiente para tocar o seu coração e para ela perceber o
mistério de Deus em si.
Ela faz o percurso do Crisma e não faz esse encontro, e
acaba por conseguir fazê-lo de uma outra forma que não é totalmente à margem da
Igreja, mas que não é com aquele tipo de resposta que lhe foi dada. Foi dos
filmes mais sérios que vi. Passou um pouco despercebido... Também por ter sido
distribuído por uma pequeníssima distribuidora portuguesa, resultado do
investimento de um jovem, também realizador e também não-católico, mas que teve
este interesse e é aí que digo exactamente que há muitas pessoas que passam
despercebidas nesse interesse e nessa curiosidade que suscita temas que podem
ser de fé, ou religiosos.
Do cinema português,
esse interesse também se tem manifestado?
A distinção entre os temas religiosos e do sentido da vida é
realmente importante. Existem alguns filmes que revelam um interesse pela
procura de algo transcendente, algo que é muito próximo da designação e
nomeação de Deus como nós o entendemos, algo que desperta no íntimo de um
realizador e que o leva a procurar qualquer coisa mais adiante, distingo da
questão religiosa porque não é revestido da formalidade e de preceitos religiosos,
mais públicos e mais formais.
Encontramos, sim. Os prémios Árvore da Vida que têm sido
distribuídos no IndieLisboa, por exemplo, são prova disso. Há muitos filmes que
se aproximam de Deus mesmo sem O nomear, que se aproximam muito dessa busca e que
revelam esse interesse.
O Cinema é um meio
privilegiado para tocar as pessoas neste campo?
Se sair daqui e descer ao Cais do Sodré e contemplar o rio
pela frente, na sua imensidão e beleza, fica tocado não só pelo olhar que
transmite, mas sobretudo pelo que o rio e a beleza dizem no mais íntimo de si.
O cinema tem exactamente essa capacidade de exprimir essa beleza de uma forma
até grandiosa, ao mesmo tempo tocando no mais íntimo de nós. Penso que é nestas
duas dimensões que o cinema, como cinema, se cumpre.
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