James V. Schall |
A noção moderna de que todas as culturas e nações podem, e
devem, viver juntas em harmonia requer uma destas duas proposições:
a) uma visão comum sobre as bases da virtude e da verdade
ou,
b) a eliminação de qualquer diferença entre bem e mal,
verdade e falsidade.
O “multiculturalismo”, em si uma construção mental, é o que
acontece quando a alternativa b é aceite, não como “verdadeira”, mas como
“prática”, com a qual se pode “trabalhar”.
As culturas, porém, não são filosófica e moralmente neutras.
Dentro de cada uma podem-se encontrar certas configurações de hábitos, leis e
costumes bons ou maus. Em épocas anteriores, apesar de ter havido migrações
massivas, era difícil passar de um país para outro. Cada cultura determinava as
normas segundo as quais tencionava viver.
Quando grandes números de pessoas podem emigrar, legal ou
ilegalmente, para outros países, trazem consigo práticas culturais. As pessoas
emigram para alcançar os seus “direitos”, aquilo que lhes é “devido”. Ao ir
para outra cultura, uma vez que todas são iguais, ninguém pode ser obrigado a
mudar os seus hábitos, língua, religião ou costumes. Toda a gente tem o
“direito” a estabelecer no seu novo ambiente, o sistema que abandonou.
A visão contrária, assimilacionista, contudo, defende que
quando alguém parte para outro país, deve tornar-se membro da nova sociedade,
aprender a língua, as maneiras e os costumes. A razão pela qual o emigrante
escolheu este novo país ou cultura é porque pensa que ela é melhor que a que
abandonou. Esta visão parte do princípio que alguns regimes são melhores que
outros. O propósito dos estados e das nações é de providenciar um lugar onde
cada um pode viver a sua “verdade”, independentemente de como outros possam
viver. Esta visão implica o poder de proteger a sua própria política.
Há quem defenda que todos os problemas do mundo são
problemas locais. Se há um problema de tirania e de pobreza num país, ou numa
área, então isso é da responsabilidade de todos. Todos os problemas são, desse
ponto de vista, internacionais. Esta posição implica que de facto apenas existe
um Estado mundial no qual todos os cidadãos têm “direitos” idênticos. Impostos,
exércitos, polícias, leis e costumes devem adequar-se a uma ideia comum de
cultura. Os verdadeiros inimigos são aqueles que defendem que a verdade, seja
pela razão ou pela revelação, é possível. A paz apenas chegará ao mundo quando
estas ideias forem eliminadas, a “verdade” oficial é que de que não existe
verdade.
Daí que tanto os governos nacionais e mundiais devem
garantir esses “direitos” estabelecidos. Basicamente, temos de nos livrar de
todas as instituições e ideias que defendem que existe uma verdade
transcendente. Temos de eliminar, sistematicamente, da ordem pública, e em nome
dos “direitos”, todas as afirmações que radicam na ideia de uma “natureza”
humana universal. Ideias como de que a família é uma instituição “natural”,
composta por um homem, uma mulher e crianças; de que a distinção dos sexos
significa algo, que o aborto está errado, e que não devemos reconfigurar o
homem à nossa vontade devem ser declaradas “anti-humanas” e proscritas.
“O homem
contemporâneo não pode ser definido pela ausência de referências morais”,
escreve Chantal Delsol em “Icarus Fallen”:
“Mas pela rejeição do Mal e uma apologética do Bem que são
consideradas evidentes e desligadas de qualquer ideia de uma verdade objectiva
que as legitime. Não seria correcto, porém, ver nesta atitude uma incapacidade
da mente descobrir as suas fundações. Pelo contrário, esta atitude significa
uma recusa a procurar sequer estas fundações, por medo de as descobrir. O homem
contemporâneo postula não um vazio de verdade, mas o perigo da verdade.”
E qual é o “perigo” da verdade? É de que a verdade existe e
serve de medida para as nossas acções e pensamentos.
Neste sentido, todo o projecto multicultural de permitir
tudo, com o Estado a servir de garante deste “direito” a tudo, atinge a
incoerência. O único tipo de multiculturalismo que é possível é aquele que
reconhece a ordem transcendente. Um multiculturalismo que a nega acaba por
estabelecer e aplicar uma ordem mundial em que apenas aquilo que é
objectivamente verdade é proibido. O “medo” é precisamente de que a verdade
existe. A recusa em procurar esta verdade recorda-nos a cena em Górgias, de
Platão, em que o político se recusa a ouvir um argumento, para não ser obrigado
a admitir a sua lógica.
O “mal” que o multiculturalismo recusa é o “mal” que afirma
a existência da verdade. A verdade não é “vazia”, a sua abundância é rejeitada.
Existem maneiras de viver correctas, que se aplicam a todas as culturas. Esta
afirmação não implica a existência de um só estado ou de uma só língua, pelo
contrário. Mas implica, isso sim, uma distinção objectiva entre o bem e o mal,
a verdade e a falsidade, em todas as culturas. Esta é a verdade que está na
raiz do espírito transcendente que se encontrava inicialmente na filosofia
grega, no direito romano e na revelação cristã.
James V. Schall, S.J., é professor na Universidade de
Georgetown e um dos autores católicos mais prolíficos da América. O seu mais
recente livro chama-se The
Mind That Is Catholic.
(Publicado pela primeira vez na Terça-feira, 18 de Março de
2014 em The
Catholic Thing)
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Pseudo-renato
ReplyDeleteInterpelante pequeno artigo! Muito obrigado pela sua divulgação. Bem precisamos!