Transcrição na íntegra da entrevista a monsenhor Duarte da Cunha, secretário do Conselho das Conferências Episcopais da Europa, sobre o estado da Igreja na Europa.
Notícia aqui.
Bento XVI fez da reevangelização
da Europa uma prioridade. Passados estes anos todos, contudo, continuamos a ver
a Igreja quase em retirada perante a secularização. Pode-se falar em sucesso ou
falhanço?
Dificilmente utilizaria termos como esses. Foram oito anos
de muitos sucessos e de outros momentos menos bem-sucedidos. O Papa, no início
do pontificado, fez aquela alerta, o juízo sobre a situação do mundo europeu
com aquela referência que ficou famosa, sobre a ditadura do relativismo, o
relativismo para quem tudo é igual e o bem e o mal parecem desaparecer, pelo
que viver com Deus ou sem Deus parece tudo igual, e que isso tem consequências
sociais gravíssimas. Penso que é um facto.
Aí o juízo do Papa foi um grande sucesso, porque abriu os
olhos a muita gente e fez com que a Igreja começasse a enfrentar a questão da
evangelização não só pela perspectiva de ter mais gente na missa mas como a
relação pessoal de cada um com Deus, que temos de ser uma Igreja capaz de
proporcionar às pessoas um encontro pessoal com Deus, mesmo que seja uma Igreja
com dificuldades e perseguida por fora, ou, como o Papa também disse, com
muitos pecados e perseguições internas, pelas nossas maldades.
Mas julgo que o juízo do Papa que se manteve e que foi
importante. Dizer que ele fez a avaliação mas não conseguiu encontrar a cura,
não é assim tão simples, porque a cura não seria a curto prazo. Pôs a Igreja
numa dinâmica de preocupação sobre a fé e este Ano da Fé é um testemunho disso,
e toda a Europa, a Igreja e os bispos, as paróquias e os movimentos, tomaram
isto do Ano da Fé e da Nova Evangelização, muito a sério. Há uma acção que foi
despertada pelo pensamento e o desejo e a proposta do Papa que se tornou um
sucesso.
Se a Europa deveria estar mais evangelizada? É um facto. As
leis sobre o matrimónio, sobre a vida, sobre a família, sobre a presença da
religião no espaço público, não valorizam o legado da tradição e da cultura
cristã, pelo contrário Às vezes são contra. Mas são duas coisas diferentes. Uma
é verificar que a sociedade e o Estado e a maneira como as coisas estão a ser
organizadas ao nível do mundo se afastam da Igreja, outra é pensar se a Igreja,
enquanto povo de Deus, está ou não está a reavivar a sua fé.
Temos de verificar, caso a caso, mas há muitos sinais de
entusiasmo da fé. As Jornadas Mundiais da Juventude são um exemplo, mas o Papa
também fez referência na sua última catequese à multidão e à esperança e a
certeza da esperança que via na Igreja. Há uma verdade da Igreja viva que não
se pode esconder. Há uma Igreja viva, que não se pode hoje esconder, que não é
só uma Igreja deprimida, é uma Igreja entusiasmada, mas que não é maioritária e
não tem a influência nos governos, nas leis e na cultura que gostaríamos de ter
e que, se tivéssemos, acreditamos que ajudaria o mundo.
Antes de ser Papa,
Joseph Ratzinger falou num futuro em que a Igreja fosse minoritária mas mais
fiel, uma aposta mais na qualidade do que na quantidade. Este pode ser o futuro
da Igreja, e devemo-nos conformar com esta ideia?
Julgo que estamos numa fase de viragem cultural e histórica
e a Europa de hoje é muito diferente do que será daqui a 10 anos, não só a
nível da religião, mas da demografia e da imigração, as crises todas…
dificilmente sei o que vai ser.
Mas tenho a certeza que a Igreja será uma presença daqui a
10 ou 20 anos se núcleos duros de pessoas convictas mantiverem a sua fé,
individual, mas também comunitária e cultural, fortes. Podemos não ser grupos
maioritários, não ter uma influência enorme, mas à imagem dos primeiros tempos
da Igreja poderemos dar mais aquela alma, espiritualidade e seriedade que o
mundo decadente vai procurar, estou convencido. A Igreja ganhará se não for
mais mundana, no sentido de ser bem recebida pelo mundo, mas no sentido de ser
mais fiel à sua raiz, à sua identidade, à sua fé, para depois servir o mundo.
A ideia que uma Igreja, para poder estar presente no mundo,
precisa de ser bem recebida por este mundo para ser ouvida, vai tendo cada vez
menos sucesso. Pelo contrário, uma Igreja que é fiel torna-se uma espécie de
farol, chama atenção, desperta, cria interesse, é atractiva. Por isso se calhar
às vezes é mais combativa, mais difícil de ser compreendida no mundo, mas é
mais eficaz, ao longo do tempo, sobretudo naquilo que é específico da sua missão,
que é levar Deus às pessoas, não tanto de fazer um mundo melhor, assim neutro,
mas um mundo mais cristão.
Se o próximo Papa lhe
pedisse conselhos sobre a pastoral para a Europa, que diria?
Certamente terá muitos melhores conselheiros, sei que há lá
muitos cardeais de grande sabedoria e de interesse. Mas julgo que temos
assistido, com os Papa dos últimos tempos, a uma experiência do reforço da Fé e
da revitalização da fé, que temos de continuar, não há muito por onde escolher.
A Igreja tem de ser cada vez mais um povo que reconhece a sua chamada à
santidade, como recordava o Concílio Vaticano II. Essa deve ser a grande missão
da Igreja, desde o Papa ao pai de família, que é tentar que cada um de nós seja
mais fiel na sua experiência de fé e de encontro com Cristo.
Nesse sentido espero que o próximo Papa possa continuar a
levar-nos nesse caminho, com a sua palavra, o seu exemplo, porque os últimos
não foram só palavra, foram também muito testemunho, uma maneira de estar
perante os acontecimentos da vida pessoal e da vida da Igreja e da vida do
mundo que também nos ensinaram pelo simples facto de estarem desta maneira.
Bento XVI, diante das alegrias e dos pecados da Igreja tinha
uma atitude que nos levava a dizer “eu quero viver estes acontecimentos como
ele os vive, com a mesma intensidade, com a preocupação, mas também com a mesma
misericórdia e aquela caridade. Espero que o próximo Papa nos ajude a sermos
mas santos. Depois, que seja um Papa capaz de Governar a Igreja neste mundo
cada vez mais difícil.
Há também problemas
internos, de dissidência, penso particularmente nos “Manifestos de
desobediência”, na Áustria e na Alemanha. Como lidar com esta questão?
São problemas muito duros e muito difíceis, que devem ser
levados muito a sério, porque estamos a falar de pessoas que são boas pessoas e
que até podem ser bem-intencionadas. A Igreja ganha na sua identidade vivendo
uma experiência forte de comunhão, e para viver essa comunhão entre nós temos
de viver uma comunhão forte com Deus.
Estou convencido que a resolução das dissidências não vai
ser uma questão de negociação, essa pode ser uma tentação da lógica do mundo,
mas não é certamente eficaz. A resolução das dissidências, que sempre houve,
mas que agora têm mais impacto até pelo papel da comunicação social, mas que
infelizmente não são novas. Julgo que a parte que o Papa e os bispos podem ir
fazendo é exactamente darem mais visibilidade à própria fé, à fé deles enquanto
pessoas e pastores, mas também da comunidade e da Igreja. Porque uma comunidade
viva que faz uma celebração litúrgica em que se percebe que se está a adorar a
Deus, portanto onde Deus é visível, uma comunidade que faz uma transmissão da
fé não inventando a fé, não adaptando a fé, mas sendo fiel à fé recebida, uma
comunidade que reforça os seus laços nas famílias, nas relações de amizades, é
uma comunidade que atrai à conversão de todos nós, porque todos nós somos um
bocadinho dissidentes em pequenas coisas. Algumas são mais visíveis e outras
são mais destrutivas.
Não julgo que a Igreja ganhe com estas dissidências, pelo
contrário, acho que perde. Embora ache que alguns destes que querem mudanças
radicais, no fundo têm boa intenção, mas não é um bom caminho. A ideia deles é
que a Igreja chegue a mais gente, ser mais recebida. Pensam por exemplo que se
os padres casarem, se as mulheres puderem ser padres, se o divórcio passar a
ser concedido na Igreja, que estas coisas aumentem.
Mas a pergunta deve ser, estas coisas aumentam a fé das
pessoas ou aligeiram o peso moral e por isso essas pessoas ficam não por
convicção mas porque não é complicado ficar. Se pelo contrário acharmos que as
pessoas ficam porque encontraram Cristo, elas serão capazes de pegar na cruz e
levá-la até ao fim.
As dissidências são problemas sérios, que têm a ver com a
doutrina, com a moral, com a fé, com a doutrina da Igreja. E estou convencido
que um Papa que seja capaz de gerar uma comunhão à volta de si ganha, como
estes últimos papas conseguiram. Essa comunhão gera depois franjas que não os
aceitam mas ao mesmo tempo cria um núcleo fortíssimo que é depois a semente
para o futuro.
Há outras regiões
onde parece, pelo contrário, que a Igreja está a regenerar. Quer falar um pouco
desses pontos mais positivos?
É interessante ver que a Igreja perseguida, dos países
comunistas, que há 20 anos encontraram a liberdade, é uma Igreja que não tem
grandes estruturas, tem pouco dinheiro, em geral, está agora a recuperar alguns
edifícios confiscados no tempo do comunismo, mas é uma Igreja de gente pobre,
não é uma Igreja rica, mas é uma Igreja dinâmica.
Pode-se dizer que tinha pouca gente e por isso é puderam
recrudescer, mas não é só isso. É uma Igreja que sentiu na pele o que significa
uma cultura ateia, uma pressão do ateísmo, do esconder Deus, do ofuscar Deus,
de tornar Deus uma coisa escondida no coração de cada um. Estas comunidades
católicas, mesmo as ortodoxas, com a liberdade começaram a poder evangelizar e
a poder reunir-se e congregar as pessoas e, ao mesmo tempo, sem tanta
influência de uma certa modernidade relativista e liberal do mundo ocidental,
acabaram por dar um alicerce de convicção e segurança ao seu povo que é muito
respeitada. Naqueles países a ideia do ateísmo, mesmo ao nível político, é
assustadora, e isso pode dar um certo impulso à Igreja.
Por isso é bonito poder ver as Igrejas greco-católicas, de
ritos orientais, a crescerem, a ganhar consistência, a terem muitas vocações,
as famílias a terem filhos e os filhos serem uma esperança para esta Europa,
mas depois como são países pobres há muitas crises, durante muitos anos houve o
ateísmo e há um tecido social muito frágil, há muitas desconfianças, as pessoas
não têm uma abertura de confiança grande, há aí um grande trabalho humano e
eclesial a fazer, mas há um crescimento de experiência da fé, e de experiência
comunitária.
Mas mesmo no nosso mundo ocidental vale a pena ver que
estamos numa fase de transição, se formos à França, Holanda, Bélgica, mesmo
certos locais na Alemanha e na Áustria, vemos que um certo tipo de Igreja mais
preocupada com a cultura do mundo, de diálogo com o mundo, acabou por ser uma
Igreja que não teve um grande sucesso, as Igrejas esvaziaram-se. Há uma geração
idosa que ainda frequenta a Igreja, depois uma geração intermédia que abandonou
a Igreja, e hoje há um recuperar da fé por parte de alguns movimentos, grupos
de jovens e paróquias mais vivas, que ajuda a compreender que esta mudança
cultural que os países ex-comunistas viveram, nós por outras razões vivemos,
por isso também a esperança que o futuro da Igreja não seja uma decadência continua.
Não penso que o próximo Papa venha tratar da falência, vem
continuar o caminho de altos e baixos que a Igreja tem, mas com vitalidade. É
uma mudança cultural que vale a pena acompanhar agora e esperemos que o Papa
seja, nesse sentido, um farol, uma luz e um indicador forte e claro.
Por isso a Igreja tem focos vivos, são esses focos que temos
de ver. Bento XVI dizia para olhar para os lugares onde a Igreja está viva,
dar-lhes espaço e segui-los. Porque é que a Igreja está viva ali? Porque há uma
boa liturgia? Porque há um anúncio da fé forte? Porque há relações humanas
intensas e sérias? Porque há empenho na caridade? Porque as pessoas estão
preocupadas umas com as outras? Porque há empenho intelectual e há estudo? As
razões estão um bocado à vista e vale a pena olhar para essas comunidades e
segui-las.
As Igrejas reformadas
ou Ortodoxas na Europa podem ser aliadas neste caminho? Isso poderá ser
importante para o diálogo ecuménico?
O Papa João Paulo II já o tinha feito bastante, mas julgo
que Bento XVI ainda o reforçou mais. Diante deste secularismo e laicismo
militante que vivemos na Europa a dimensão ecuménica é fundamental. Os cristãos
não têm o direito de não se preocupar com a unidade interna, entre si. Por isso
o esforço de diálogo, mas não simplesmente um diálogo de não-agressão, mas um
diálogo que procure a construção de uma unidade visível, uma unidade que possa
depois ser experiência comum, ainda estamos longe, mas penso que o Papa Bento
XVI insistiu muito nisto.
A nível de diálogo com os ortodoxos, pelas questões da fé,
talvez seja mais fácil, mas há muitas igrejas reformadas, luteranas e não só,
onde o diálogo mesmo doutrinal tem dado muitos passos. Penso que vai ser
importante os próximos tempos. Vai ser importante 2017 quando fizer os 500 anos
do início do protestantismo na Europa. Vamos ver qual é o futuro da Igreja
Anglicana em Inglaterra, da Igreja Protestante na Suécia… o ecumenismo é de
facto fundamental para a evangelização. Não podemos separar as duas coisas.
Não podemos é pensar num ecumenismo relativista, em que cada
um pensa como quer e somos todos amigos. Não, esta amizade tem de ser séria,
profunda e chegar mesmo à raiz dos problemas. Pedir perdão onde for preciso,
perdoar onde for preciso perdoar, dizer que não tínhamos razão numas coisas,
não poder ceder na convicção nas outras, para poder chegar a uma unidade
visível.