Transcrição integral da entrevista feita ao Frei Bernardo Corrêa d'Almeida, sobre o seu livro "A Vida Numa Palavra". A notícia está aqui.
Todo este trabalho
tem por base uma tradução própria do Evangelho de São João. Porque é que isso
foi necessário?
Em primeiro lugar partiu do estudo que fiz, directamente do
original. Confrontando com as versões que temos ao nosso dispor, pareceu-me que
seria valioso e importante aperfeiçoar algumas aproximações ao texto. Pessoalmente,
e para quem está a acompanhar a leitura, indo mais possível ao texto original,
creio que é sempre de grande valor, até porque o objectivo do meu trabalho é
colocar o leitor não propriamente a ler o meu livro, mas a ir ler o Evangelho.
Mas as mais recentes
traduções, por exemplo a Bíblia dos Capuchinhos, têm alguma falha importante?
Diria que a minha tradução tem a vantagem de ter sido feita
por mim, que dediquei muitos anos ao estudo do Quarto Evangelho, enquanto as
que temos foram feitas por grandes peritos, que têm uma maior amplitude literária
no que diz respeito à Bíblia.
Acontece que neste momento a Conferência Episcopal está a
trabalhar numa nova tradução litúrgica e por isso numa nova tradução bíblica,
precisamente neste sentido. O trabalho pode ser sempre apurado e o estudo bíblico
aprofundado.
No Evangelho de São
João a vida pública de Jesus começa com as Bodas de Caná. No seu entender, a
escolha de um casamento para começar não é por acaso…
Não é por acaso. Por um lado importa dizer que o Quarto
Evangelho nasce da morte e ressurreição de Jesus, desse momento principal, em
que o autor é gerado. O Evangelho nasce do fim, começa com um “happy end” que é
um casamento, que é consumado nesse momento da morte e ressurreição de Jesus na
cruz. Foi concebido como um seio, imaginemos uma barriga de uma mãe, onde há um
bebé, um ser humano, que depois nasce para a vida. O Quarto Evangelho foi assim
concebido, é uma comunicação de uma vida, quem a recebe vai sendo gerado para a
vida.
Mas esta ideia do Quarto
Evangelho como uma história esponsal é nova?
Não, não é nova. O tema do matrimónio, da aliança, é um tema
bíblico, transversal. Aliás a única novidade dos Evangelhos é o facto de Jesus
completar essas tradições na própria existência e no mistério pascal. Não é
nova.
Peguemos na história
da Samaritana. Na leitura que apresenta no seu livro, quando Jesus se refere
aos cinco maridos anteriores da Samaritana, e ao homem com quem está agora mas
que não é marido dela, isto tem uma leitura mais profunda…
O Quarto Evangelho é uma obra magistral, atravessada sempre
pelo duplo sentido. Isto é, por detrás do sinal há o conteúdo do sinal. Isto
acontece em quase todas as situações.
No caso da samaritana é evidente que se viviam, na altura de
Jesus, situações muito desconformes ao que era o plano de Deus e o plano
social. Nesse sentido Jesus não condena a samaritana, mas condena alguns
comportamentos que ela tinha, concretamente o saciar-se em fontes que não a
saciavam, mas por detrás disso há algo mais fundamental, que é aquilo que ela
representa. A Samaritana, como outras figuras do Quarto Evangelho, não têm
nome, porque além de representarem pessoas concretas da história, factual,
representam o povo, representam a comunidade cristã e a comunidade judaica.
O Povo Samaritano, depois da destruição do monte Gorizim,
sem negar Javé, prestava culto a outros deuses. Havia uma idolatria religiosa,
que é uma das críticas dos profetas. Por detrás da Samaritana há a história
desse povo e está também um dado interessante, Jesus acaba por ser o sétimo
marido. A plenitude, a aliança, a verdadeira água vida que encontra em Jesus,
que vem estabelecer a aliança do povo, da mulher, da esposa, com Deus, que é o
Esposo e o Senhor.
Jesus e a Samaritana |
Há também a passagem
do paralítico na piscina de Siloé, que estava lá há 38 anos… esses dados também
apontam para uma comparação que não se entende lendo só à letra.
Claro! Havia uma freira muito simpática, muito calada, muito
bondosa, mas que participava pouco no seu ambiente comunitário em termos de
intervenção. Algumas das irmãs até se incomodavam. Ela retirava-se sempre para
o quarto. Quando ela morreu e foi para o céu, pouco depois, alguém trouxe umas
páginas que se tinham encontrado na rua e que se veio a saber que eram o seu
diário. Todas as noites ela escrevia meia hora das maravilhas que via na
comunidade. Quando a madre-superiora releu o diário, elas ficaram num pranto e
felicíssimas ao mesmo tempo, mas as pessoas que tinham visto aquilo na rua, não
lhes dizia nada. Isto para dizer que o Evangelho, quanto mais se está por
dentro, quanto mais se experimenta, mais significado tem para nós.
De facto há uma tradição em Deuteronómio 2,14 que diz que o
Povo de Deus andou 38 anos no Deserto às aranhas. Imagina-se ir a pé de Lisboa
a Fátima e que isso demorava 38 anos. Foi o que lhes aconteceu, andaram 38 anos
completamente perdidos, desorientados, sem referência, no deserto, sem terra,
sem nada. É o que representa esse paralítico, mais profundamente falando.
De todas as passagens
do Evangelho de São João, qual é o que mais o surpreendeu quando descobriu a
“história” por detrás do texto?
Destaco dois momentos. O momento monumental, sinfónico,
eterno, que é o momento da Glória de Cristo, a exaltação ou a elevação na Cruz,
onde é coroado. Esta minha descrição pode parecer exagerada, ou desconforme,
mas esse momento foi precisamente construído assim.
Depois a experiência do discípulo amado, do autor, aquele
que nos dá o testemunho, que nasce e que está presente em todo o Evangelho
precisamente a fazer essa experiência. Se virmos uma imagem ou um desenho do
discípulo amado, do Apóstolo São João, vêmo-lo sempre a olhar ao alto e a
escrever. É uma experiência fundamental de alguém que nasce, que vive, que é
animado, gerado, que recebe uma vida e que depois a comunica.
Faz lembrar uma irmã de uma terra aqui perto, que tão
generosa, queria ajudar a acabar com a pobreza e então dedicou-se ao campo e ao
pomar das irmãs para poder dar muita fruta. Assim fazia, e trazia fruta, mas um
dia desesperada foi ter com a madre a chorar porque estava tudo podre. Estava
tudo podre porque ela tinha-se dedicado ao fruto e não à raiz e o fruto
apodreceu.
Esta personagem do discípulo amado, que antes de amar é
aquele que é amado, é genial. Porque só recebendo é que se dá, ou melhor,
aquilo que damos é muito do que recebemos. A construção evangélica do Quarto
Evangelho, de viver de uma vida que recebe, e testemunhar sem que saibamos
exactamente quem ele é, é muito interessante.
Fala-se muito da autoria
do Evangelho. É atribuído a São João, mas não será ele o autor…
Canonicamente falando, isto é, segundo o que está escrito no
livro o autor é o “discípulo amado”, diz lá explicitamente que é o discípulo
amado. O apóstolo São João nunca é referido pelo nome. Mas segundo a tradição,
que provém de São Policarpo, diz-se que é São João.
Agora, seguramente terá sido uma comunidade que terá tido
influência do apóstolo, e por isso dedicada a essa origem. Mas creio que mais
importante do que entrarmos neste tipo de reflexão, que nos afasta do texto, é
talvez de nos dedicarmos ao texto e ao que nos diz. Esta ideia do discípulo
amado é genial, porque ele é definido pelo amor que recebe de Jesus, não
sabemos quem ele é, o que é muito interessante.
Imaginemos que nos aparecia agora Nossa Senhora numa capela.
O primeiro a chegar é que quereria ficar com o mérito, depois ainda poderia ter
um altar em sua memória, mas a única primazia que o discípulo quer ter, é
conduzir Pedro a Jesus. Se formos ler o quarto Evangelho, vemos que o discípulo
amado cumpre dois principais papéis: Primeiro, está sempre atraído a Jesus, na
última ceia está reclinado sobre o peito de Jesus, na cruz está na cruz, os
outros estão dispersos. Quando vai ao sepulcro corre mais depressa que Pedro,
está mais atraído. Fernando Pessoa dizia que o caminho mais curto entre dois
pontos é um passeio entre dois apaixonados.
Os discípulos reconhecem Jesus na margem |
No capítulo XXI, quando Jesus aparece na Margem, é ele quem
reconhece Jesus. Depois, está sempre a conduzir Pedro a Jesus, sempre. Na
última ceia Pedro pergunta ao discípulo amado quem é que o ia trair, e o
discípulo amado pergunta. Quando vão ao sepulcro o discípulo amado corre mais
depressa, mas não entra. Atrás dele vem o Pedro, mas quem entra primeiro é
Pedro, porque o discípulo amado não entra, quer guiar Pedro. No capítulo XXI
Jesus aparece, só o discípulo amado é que o vê, diz que é o senhor, e Pedro atira-se.
E no final, muito interessante, o texto diz que tinha
corrido o boato de que aquele discípulo não morreria. Pedro pergunta a Jesus,
então e este? E Jesus responde, se eu quiser que ele permaneça até eu voltar,
que tens tu a ver com isso? Faz lembrar as bodas de Caná, “mulher, que tenho a ver com
isso? Que temos a ver com isso? Temos tudo a ver com isso. É a questão da
ironia. Portanto Pedro pergunta, e ele, não morre? E Jesus diz, que tens a ver
com isso? Tu segue-me!
E então temos aqui uma pergunta interessante. Se o discípulo
amado permaneceu, onde é que ele está? É tão simples como isto, ele permaneceu
no testemunho que dá.
Testemunho é uma palavra que ocorre muitas vezes
precisamente para nos dizer isto, que o discípulo quis permanecer não pelo seu
nome, mas pelo seu testemunho. O testemunho é aquilo que ele recebe. O quarto Evangelho
é o testemunho que nos é dado pelo discípulo amado, que o recebeu de Jesus
glorificado.
Porque é que nunca
vemos os sacerdotes a explorar e a explicar assim os textos nas homilias, por
exemplo?
Essa pergunta, eu fi-la a um grande professor, hoje bispo,
D. António Couto. Foi exactamente a mesma pergunta. Recordo-me da resposta: “É
tudo uma questão de dedicação. Dedicação e valorização”. As realidades
fundamentais da vida, o valor de uma família, não se descobre num momento e de
repente, é uma experiência que se faz.
Creio que todos nós, todos padres, cristãos, a Igreja
inteira e o nosso Papa, como todos que conheci, dão total privilégio à palavra,
como não podia deixar de ser, a Igreja nasce da palavra, portanto há uma
necessidade grande de irmos ao profundo das realidades e de não ficarmos no
superficial das mesmas. Até porque o quarto evangelho, sendo um tesouro, uma
fonte de vida, a isso obriga. Portanto todos nós padres, catequistas, cristãos,
homens de boa vontade, somos chamados a aprofundar-nos. Há sempre algo a
descobrir. A vida é movimento, é espiritual, é vida. Há sempre algo que se pode
aprender e recriar. Portanto é uma questão de dedicação. Os próprios padres,
cada vez mais valorizam isso, e nós próprios somos chamados à oração, cada vez
mais intensa, como ao confronto com a palavra do Senhor.
Faltará um pouco essa
dedicação, de conhecimento, a muitos padres?
Não diria assim tanto. Até porque o maior auditório que nós
temos são as homilias, e a homilia não é propriamente uma aula, uma explicação
do texto bíblico. É algo que vai para além disso. É algo diferente.
Necessariamente vive do texto, tem a ver com a experiência da comunidade, tem a
ver com a experiencia concreta, com o ambiente eucarístico e celebrativo.
Agora, há experiências, vivo no Porto e posso testemunhá-lo, de comunidades
muito interessadas. O que às vezes acontece é que os padres criam estas
oportunidades, mas as pessoas estão mais interessadas em romances e textos
superficiais que exigem menos aprofundamento que os textos sagrados.
E mais, existe um preconceito sobre o texto bíblico, como se
fosse algo muito complicado, ou só para alguns, que não é assim. O quarto
Evangelho, como dizia, é um descascar, é uma pérola que vai sendo
desembrulhada. E à medida que vai sendo desembrulhada vai sendo valorizada.
Nunca vi ninguém, mesmo as crianças, que conseguisse num instante abrir a
prenda, mesmo que rasgue o papel todo. É preciso um empenho para abrir a
prenda, depois de gozar a prenda. Muitas vezes andamos a correr, muito
apressados, talvez isso nos falte a todos.
Gostaria de
dedicar-se agora a outro Evangelho ou escrito bíblico? Ou vai continuar a
dedicar-se a São João?
Em relação a este Evangelho há sempre mais, porque não tem
fim. Estou agora a publicar a minha tese, sobre o conceito de unidade no quarto
evangelho, do qual este livro é o primeiro capítulo de três. Antes de morrer,
gostaria de apresentar um livro como este sobre os outros três Evangelhos, é um
sonho que tenho desde criança.
A verdade é que no panorama nacional, puxando a brasa à
minha sardinha, não há livros assim. Em português não há livros assim, também
pela dimensão do nosso país. Eu gostaria imenso de apresentar um texto
semelhante dos outros Evangelhos.
Há uma ligação entre
todos os textos atribuídos a São João?
Obviamente estão ligados, é sempre a tradição joanica. A
ligação entre o Evangelho e as cartas é evidente, há temas que se aproximam
totalmente. Em relação ao apocalipse também, se bem que é diferente. Agora, em
termos de tradição, e liturgicamente falando, e até pela importância, os
Evangelhos, para nós cristãos, são o sumo maior, não só da Bíblia como da nossa
experiência crente. Até porque para interpretar os Evangelhos não se pode ficar
só por um, é um risco, e tenho noção disso. Em relação a Jesus, como homem que
é e filho de Deus que é, uma perspectiva é sempre redutora. Estes quatro
Evangelhos aproximam-nos de Jesus todo.
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