Uma das características da mentalidade que começa a ser dominante
no nosso tempo é a sua difícil relação com a verdade. Não falo aqui da
divulgação de notícias falsas, pois isso, infelizmente, não é um exclusivo de
nenhum grupo social, e não há falta de casos de “fake news” em meios católicos.
Falo, sim, da dificuldade em aceitar que existem factos cuja realidade não
depende dos nossos sentimentos ou estado de espírito, que há verdades que estão
acima da “minha verdade”. Neste contexto, qualquer sugestão de que existem
verdades imutáveis torna-se uma fonte insuportável de opressão, que deve ser
silenciada.
Decorre actualmente na Bélgica um
delicado processo jurídico que pode vir a ter repercussões para toda a
Igreja Católica na União Europeia. Tornou-se moda, ao longo dos últimos anos, a
ideia de pedir para ser “desbaptizado”. Isto é, pessoas que mais tarde
abandonam a fé ficam de tal forma ofendidas pelo facto de terem sido baptizadas
no passado, que pedem que os seus nomes sejam retirados dos assentos de baptismo
das paróquias.
A Igreja, obviamente, tem recusado fazê-lo. Nalguns casos,
como na Bélgica, perante estes pedidos a Igreja insere uma nota, na margem do
livro de registos, manifestando que a pessoa expressou essa vontade, mas o
próprio registo não é apagado.
Contudo, pelo menos uma pessoa considerou que isso não é
suficiente e queixou-se à Autoridade de Protecção de Dados, que mandou a Igreja
apagar o registo. A Igreja recorreu e o caso está agora em tribunal. Uma vez
que outros tribunais nacionais emitiram sentenças a favor da Igreja nestes casos,
se o tribunal belga se puser do lado da Autoridade de Protecção de Dados o caso
pode ter de ser resolvido ao nível do Tribunal Europeu e, nesse caso, terá
repercussões para toda a União Europeia.
O problema aqui não está no facto de haver uma pessoa que
se quer desvincular totalmente da Igreja, e que naturalmente se está a marimbar
para a doutrina cristã de que o baptismo deixa uma marca indelével na alma, pelo
que o “desbaptismo” não é possível. O problema está, antes, no facto de a
pessoa pensar que a sua vontade e o seu estado de espírito actual podem fazer
desaparecer um facto histórico. E o facto histórico é que aquela pessoa foi
baptizada na Igreja X, pelo ministro Y, no dia Z de um determinado ano. Pensar
que a Igreja deve ser obrigada a apagar esse momento da história, ou que pode
sequer fazê-lo, com um golpe de caneta correctora, é viver no reino do
pensamento mágico.
É o mesmo paradigma que leva pessoas a imaginar não só que
é possível “mudar de sexo”, como se a biologia fosse um factor irrelevante na
nossa composição física, mas que toda a sociedade deve ser obrigada a alinhar
nessa fantasia, sob pena de perseguição jurídica.
Aliás, esta é uma realidade que já existe na legislação
portuguesa, segundo a qual uma pessoa que fez uma “mudança de sexo” pode exigir
que a sua certidão de nascimento seja alterada para o sexo da sua preferência.
Também aqui há a consagração de uma mentira. A certidão de nascimento não
existe para consolo emocional de ninguém, mas sim como prova de um facto
histórico. Naquele dia, o médico José das Couves assinou um documento em como
fez o parto a um nado vivo do sexo masculino. Estar a alterar os termos 20 anos
mais tarde, com base numa intervenção cirúrgica, faz do José das Couves um mentiroso
e transforma um registo histórico numa arma de afirmação de uma vontade
pessoal, desligada dos factos.
Uma questão de liberdade religiosa?
Para além deste atentado claro à verdade e aos factos, que
por si já é preocupante, levanta-se aqui um problema de liberdade religiosa,
tanto no caso dos assentos de baptismo, como no caso da mudança das certidões
de nascimento.
Por um lado, a Igreja Católica não aceita o “rebaptismo”,
por acreditar precisamente que um baptismo não pode ser “desfeito”. Caso a
Igreja seja obrigada a extirpar dos seus registos o baptismo de um fiel, pode
acontecer essa pessoa mais tarde pedir para ser baptizada de novo, sem explicar
o seu passado, e a Igreja não ter forma de saber que o baptismo já aconteceu.
Dir-me-ão que não é a coisa mais grave do mundo, e que até há casos de pessoas
que são baptizadas à condição, por não se saber se já foram baptizadas em criança
mas não houve registo, ou o registo se perdeu, ou foram baptizados de uma forma
que poderá não ter sido válida. Mas o ponto não é esse, o ponto é que os
registos de baptismo são propriedade da Igreja, usados para questões de
organização e disciplina interna, e como tal não vejo como pode ser o Estado a
obrigar à sua alteração.
Mas o caso apresenta-se como mais grave na questão da
mudança da certidão de nascimento. Caso uma mulher, que foi sujeita a operação
de “mudança de sexo” e agora apresenta-se como homem, se aproxima da Igreja e
pede para ser baptizada, mesmo que existam dúvidas sobre a sua verdadeira
identidade, não há documento que a Igreja possa pedir para a comprovar. E se,
mais grave, essa mulher mais tarde pedir para ser admitida ao seminário e
eventualmente ordenada, e caso ninguém desconfie, pode dar-se o caso de a
Igreja “ordenar” uma mulher, em clara contradição com a sua doutrina, sem ter
forma de saber a verdade. Claro que muitos acham isto irrelevante, por acharem
absurdo e antiquado a proibição de ordenação de mulheres, mas é precisamente
porque há gente que assim pensa que a Igreja tem de estar protegida pela
liberdade religiosa, para não ser obrigada a agir contra as suas convicções.
E isto para não falar em eventuais problemas de saúde. Há
doenças que são mais preponderantes entre mulheres do que entre homens. Se uma
pessoa que nasceu mulher, mas agora se apresenta como homem e tem documentos
que indicam ser homem e ter nascido homem, aparece no hospital com uma série de
sintomas, os médicos poderão descartar certos cenários por pensar estarem
dianto de um homem, e assim falhar o diagnóstico. Isto não é apenas um problema
individual, é um problema de saúde pública, ou pode sê-lo. É por isso que quando
o Sistema Nacional de Saúde pede às pessoas para preencher o seu sexo, não está
interessado em saber o que se passa nas suas cabeças, nem as suas deambulações
mentais sobre a construção social dos géneros. É uma questão de cromossomas, e
de bom-senso.
Viver na verdade
O Cristianismo professa a verdade. É certo que para os
cristãos a verdade vai para além de uma questão factual, pois a verdade para os
cristãos não é um acontecimento histórico, ou uma conclusão lógica, mas uma
pessoa. Mas também é verdade que o por Cristo se identificar como o Caminho, a
Verdade e a Vida, e por ter dito que a Verdade nos libertará, o Cristianismo
defende o valor e a importância de se professar a verdade, mesmo quando essa
verdade é desconfortável (e quantas verdades desconfortáveis temos tido de
enfrentar nas últimas décadas!).
E é por isso, por acreditar que não se deve compactuar
com a mentira, e que a verdade é em si um valor, que o Cristianismo rejeita
este novo-pensamento, e é também por isso que o pensamento moderno rejeita o
Cristianismo e defende, apesar de todos os apelos à tolerância por todos os
outros tipos de pensamento e ideias, a sua eliminação e subjugação.
Contudo, a verdade é um bicho teimoso. Recusa-se a simplesmente
desaparecer, e mais cedo ou mais tarde ressuscita e manifesta-se mais forte que
nunca. Às vezes demora anos. Às vezes demora três dias.