Wednesday 23 December 2020

Arranjar Espaço na Estalagem

O Evangelho de Lucas é o único que narra os eventos que rodearam o nascimento de Jesus. É difícil pensar noutra passagem das escrituras que exerça uma influência tão grande sobre a imaginação, sobretudo das crianças, do que a Natividade. E como é que não havia de ser? É uma história que tem tudo aquilo com que as crianças se podem identificar: uma “viagem” de família, um bebé, anjos, pastores, animais.

É verdade que muitos dos detalhes que associamos à Natividade – vacas, camelos, burros e por aí fora – não são mencionados nos Evangelhos, mas isso só realça o que disse. Nenhum episódio na vida de Cristo, nem mesmo a Paixão, se adequa tanto à imaginação infantil.

O Natal é a mais humana das grandes festas da Igreja, a que é mais acessível para nós num nível natural. É no Natal que encontramos Deus no seu estado mais acessível e familiar: um recém-nascido.

Na sua homilia da Missa do Galo de 2012, o Papa Bento XVI resumiu-o da seguinte forma:  É como se Deus dissesse “Sei que o meu esplendor te assusta, que à vista da minha grandeza procuras impor-te a ti mesmo. Por isso venho a ti como menino, para que Me possas acolher e amar”.

Também isto explica a facilidade com que as crianças se apaixonam pela história de Natal e porque é que o seu poder permanece connosco mesmo quando ficamos mais velhos e mais ocupados. Para a maioria de nós não há festa que evoque mais as alegrias (e talvez as tristezas) da nossa juventude do que o Natal.

Quanto mais velho fico, mais reparo que a alegria do Natal traz consigo uma nota da mais doce tristeza. Que incrível que a alegria do Natal seja tão diferente da alegria pascal (sendo esta última muito mais mundana, no melhor sentido possível da palavra).

Uma das personagens da história da Natividade que mais me tem interessado à medida que vou ficando mais velho nem sequer é mencionado no Evangelho, tal como o camelo ou o burro. Estou a falar do pobre estalajadeiro.

Segundo o Evangelho de Lucas, a Sagrada Família chega à vila de Belém e descobre que não há lugar para eles na estalagem. O estalajadeiro anónimo costuma ser apresentado como uma lição para as pessoas que estão demasiado ocupadas e centradas em si mesmas para receber Cristo quando ele vem.

Naquela mesma homilia do Natal de 2012, o Papa Bento usou este ponto para reflectir sobre o nosso estado de preparo para receber Cristo:


“Sempre de novo me toca também a palavra do evangelista, dita quase de fugida, segundo a qual não havia lugar para eles na hospedaria. Inevitavelmente se põe a questão de saber como reagiria eu, se Maria e José batessem à minha porta. Haveria lugar para eles?”

E continua:

“A grande questão moral sobre o modo como nos comportamos com os prófugos, os refugiados, os imigrantes ganha um sentido ainda mais fundamental: Temos verdadeiramente lugar para Deus, quando Ele tenta entrar em nós? Temos tempo e espaço para Ele? Porventura não é ao próprio Deus que rejeitamos?”

O Papa Bento propõe uma bela meditação sobre a humildade de Deus e os perigos das preocupações mundanas. Cada um de nós deve ultrapassar o nosso próprio egoísmo para que possamos receber não só o Bebé de Belém, mas também o pobre e o indigente com quem o Senhor se identifica tão estreitamente.

Mas voltando ao tal estalajadeiro…

Penso bastante se, ao imaginá-lo como insensível e preocupado, não estaremos a ser injustos.

É fácil partir do princípio que o pobre estalajadeiro rejeitou a Sagrada Família e lhes fechou a porta na cara. Mas porque havemos de o fazer? E se a única razão pela qual Maria tinha sequer uma estalagem para o seu recém-nascido era porque o estalajadeiro lhes ofereceu o pouco que tinha em termos de abrigo? Alguém deu guarida a José e a Maria, porque é que partimos do princípio que não foi ele? Porque é que devemos presumir que o seu humilde envolvente foi o resultado de malícia ou de indiferença?

O Natal é um tempo que se presta à imaginação, por isso imaginemos:

Imagine José a bater à porta da estalagem, já tarde. O estalajadeiro vai à porta. A estalagem está cheia, por causa do recenseamento. Mas o estalajadeiro consegue ver a preocupação estampada na cara de José. Consegue ver que a jovem Maria não podia estar mais grávida. Não tem quartos. Claro que não pode acordar os seus clientes e expulsá-los a meio da noite!

Então faz o que pode.

Oferece ao casal um estábulo. É humilde, mas pelo menos é quente. E oferece-o sem custos. Traz-lhes um pouco de comida, alguma coisa para beber. Traz cobertores e água para se lavarem. Talvez a sua mulher lhe tenha lançado um daqueles olhares, como que dizendo: “Estás doido? Quem são estas pessoas?” Mas ele ajuda na mesma. Ou talvez a sua mulher seja tão generosa como ele e também ajude. Vão visitando durante a noite, sem querer incomodar, para ver se os viajantes têm tudo o que precisam.

Talvez o estalajadeiro seja um homem honesto, compassivo, que dedicou toda a vida e a carreira à hospitalidade e tendo dado o pouco que tinha para oferecer, com o amor e o cuidado possíveis, obteve a graça de poder acolher o próprio Deus, sem nunca ter percebido quem é que estava a receber na sua morada – ou pelo menos no seu estábulo.

Talvez o estalajadeiro de Belém seja uma recordação de que, quando somos generosos para com aqueles que não podem retribuir a nossa simpatia, quando damos o que temos, por mais humilde que seja, Deus pode transformar os nossos esforços em algo maravilhoso, capaz até de mudar o mundo. Talvez.

Pelo menos eu gosto de pensar que sim.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quarta-feira, 23 de Dezembro de 2020)

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