Wednesday 24 October 2018

“Fizemos o Nosso Trabalho”

Randall Smith
O filme “Sully”, de Clint Eastwood (2016), conta a história do capitão “Sully” Sullenberger e da aterragem de emergência do voo da US Airways no Rio Hudson, em 2009, após ter perdido ambos os motores ao ser atingido por um bando de pássaros depois de levantar voo. Todos os 155 passageiros e a tripulação sobreviveram, apenas com alguns ferimentos ligeiros. A maioria dos passageiros foi evacuada para as asas do avião, de onde foram resgatados do frio pela rapidez da acção dos pilotos de ferries e por mergulhadores da equipa de resgate aquático da Cidade de Nova Iorque.

Embora o título do filme seja “Sully”, e grande parte da acção seja centrada nele (desempenhado por Tom Hanks), este é mais do que um filme de bajulação biográfica, contém muitos temas e lições importantes.

Um dos temas a que o filme recorre constantemente diz respeito à relação entre os homens e a tecnologia que usam. Numa cena reveladora, logo no início do filme, Sullenerger e o seu co-piloto Jeff Skiles estão a ser interrogados por membros do Departamento Nacional de Segurança dos Transportes, que lhes dizem que as várias simulações de computador indicam que poderiam ter regressado em segurança ao aeroporto.

Skiles responde: “Olhem, eu acabei agora mesmo de treinar no A320, e digo-vos que a única razão pela qual o avião operou tão bem, a única razão pela qual conseguiu aterrar onde quer que seja, foi porque o capitão Sullenberger ligou a Unidade Auxiliar de Potência.”

“Estava simplesmente a seguir o QRH [manual técnico]”, diz um membro do Departamento.

“Não. Não estava a seguir os procedimentos, coisa nenhuma”, diz Skiles, naquilo que poderia parecer uma crítica ao seu capitão. “Sei isso”, continua, “porque eu estava com o QRH nas mãos. Ele ligou a UAP imediatamente depois dos motores terem falhado. Segundo a Airbus, essa é a 15.ª coisa na lista. A 15.ª. Se ele tivesse seguido as malditas regras, tínhamos morrido todos.”

Outra leitura técnica contém dados que indicam que o motor esquerdo ainda tinha alguma potência, suficiente para os poder ter livrado de sarilhos. “Então os dados estarão errados”, diz-lhes. “Olhem para o motor esquerdo e não terá nada mais que gansos mortos e zero potência”. Quando o avião é finalmente retirado do Hudson percebe-se que o computador estava errado. Se tivessem seguido as orientações da máquina, teriam morrido.

Quando lhe perguntam como é que “calculou todos os parâmetros” quando decidiu aterrar de emergência, Sully responde, “não houve tempo para cálculos. Tive de me fiar na minha experiência a gerir altitude e velocidade em milhares de voos, ao longo de quatro décadas”. Diz aos membros do departamento, atónitos, que fez tudo “a olho”.

As máquinas fazem muitas coisas bem. Conseguem calcular mais depressa que os humanos. Mas não são capazes de tomar decisões de vida e de morte. Para isso é preciso um humano e, normalmente, um humano excepcionalmente bem treinado. As máquinas podem ajudar os humanos, mas é uma parvoíce pensar que alguma vez possam substituir o juízo humano.

As máquinas apenas são, como sempre foram, tão boas como os humanos que as usam. Isto é algo de que nos devemos lembrar quando ouvimos o canto da sirene dos carros automatizados. Só um ser humano pode tomar a decisão de arriscar a vida despenhando o seu carro para evitar acertar numa criança que saiu a correr para a estrada.

Eu calculo que haja dois tipos de passageiros de carro automatizado. Aqueles que querem o carro programado para chocar, sacrificando o passageiro, e aqueles que querem o carro programado para atropelar qualquer obstáculo, em vez de arriscar a segurança do passageiro. Que algoritmo é que você escolheria? As nossas máquinas não são melhores que os homens que as usam.

Capitão Sullenberger
Depois de ouvirem a gravação do cockpit da aterragem de emergência, que revela o quão miraculosamente calmos e metódicos foram os dois pilotos, Sullenberger diz ao seu copiloto: “Estou tão orgulhoso de ti. Estiveste sempre ao meu lado, apesar de todas as distrações. Com tanto em causa. Fizemos isto juntos. Fomos uma equipa.” Os olhos de Skiles enchem-se de lágrimas e o Sully diz simplesmente: “Fizemos o nosso trabalho”.

Quando regressam à audição de segurança, um dos membros do departamento, que anteriormente tinha sido antagónico, elogia Sullenberger por ter sido a componente mais importante da equação que salvou o voo. “Se o retirarmos da equação”, diz-lhe, “a matemática não bate certo”.

“Não fui apenas eu”, responde Sully, “fomos todos. O Jeff, a Donna, a Sheila, a Doreen. Os passageiros e as equipas de resgate. Os controladores aéreos. Os tripulantes dos ferries e os polícias mergulhadores. Nós conseguimos”. E é aqui que o espectador compreende que esta é a história que Eastwood tem estado a contar desde o início. Ele tem mostrado, com perícia, como todas estas pessoas se juntaram e desempenharam um papel essencial. Os ferries chegaram o mais perto possível da asa do avião, para retirar os passageiros; os polícias mergulhadores salvaram os que estavam na água e os comissários de bordo prepararam os passageiros. Todos eles “fizeram os seus trabalhos”.

Quando pensamos em heróis e em santidade, raramente pensamos em homens e mulheres que simplesmente fazem os seus trabalhos, e os fazem com excelência. Dia após dia, hora após hora, há pessoas cujas vidas e bem-estar dependem de nós, de fazermos bem os nossos trabalhos, tal como as nossas vidas dependem de eles fazerem bem os seus. Esta é a base de qualquer comunidade. É sobre isto que se constrói a civilização. Não é sobre o poder militar, ou máquinas poderosas, ou brilhantismo científico. As nossas máquinas podem convencer-nos que não é assim, mas trata-se de uma ilusão perigosa.

Numa era de hiperindividualismo, bem podemos aprender as lições de “Sully”. As nossas vidas estão interligadas. As máquinas são tão boas como as pessoas que as sabem usar e quando as ignorar. E existem heróis. São as pessoas que fazem os seus trabalhos com excelência – não por dinheiro, não para serem promovidas, não por fama nem por notoriedade, mas simplesmente porque, nas palavras do poeta e letrista Bob Dylan, “you gotta’ serve somebody”. E é bom que não seja uma máquina.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no domingo, 24 de Outubro de 2018)

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