Randall Smith |
Embora o título do filme seja “Sully”, e grande parte da
acção seja centrada nele (desempenhado por Tom Hanks), este é mais do que um
filme de bajulação biográfica, contém muitos temas e lições importantes.
Um dos temas a que o filme recorre constantemente diz
respeito à relação entre os homens e a tecnologia que usam. Numa cena
reveladora, logo no início do filme, Sullenerger e o seu co-piloto Jeff Skiles estão
a ser interrogados por membros do Departamento Nacional de Segurança dos
Transportes, que lhes dizem que as várias simulações de computador indicam que
poderiam ter regressado em segurança ao aeroporto.
Skiles responde: “Olhem, eu acabei agora mesmo de treinar
no A320, e digo-vos que a única razão pela qual o avião operou tão bem, a única
razão pela qual conseguiu aterrar onde quer que seja, foi porque o capitão
Sullenberger ligou a Unidade Auxiliar de Potência.”
“Estava simplesmente a seguir o QRH [manual técnico]”,
diz um membro do Departamento.
“Não. Não estava a seguir os procedimentos, coisa nenhuma”,
diz Skiles, naquilo que poderia parecer uma crítica ao seu capitão. “Sei isso”,
continua, “porque eu estava com o QRH nas mãos. Ele ligou a UAP imediatamente
depois dos motores terem falhado. Segundo a Airbus, essa é a 15.ª coisa na
lista. A 15.ª. Se ele tivesse seguido as malditas regras, tínhamos morrido
todos.”
Outra leitura técnica contém dados que indicam que o
motor esquerdo ainda tinha alguma potência, suficiente para os poder ter
livrado de sarilhos. “Então os dados estarão errados”, diz-lhes. “Olhem para o
motor esquerdo e não terá nada mais que gansos mortos e zero potência”. Quando
o avião é finalmente retirado do Hudson percebe-se que o computador estava
errado. Se tivessem seguido as orientações da máquina, teriam morrido.
Quando lhe perguntam como é que “calculou todos os
parâmetros” quando decidiu aterrar de emergência, Sully responde, “não houve
tempo para cálculos. Tive de me fiar na minha experiência a gerir altitude e
velocidade em milhares de voos, ao longo de quatro décadas”. Diz aos membros do
departamento, atónitos, que fez tudo “a olho”.
As máquinas fazem muitas coisas bem. Conseguem calcular
mais depressa que os humanos. Mas não são capazes de tomar decisões de vida e
de morte. Para isso é preciso um humano e, normalmente, um humano
excepcionalmente bem treinado. As máquinas podem ajudar os humanos, mas é uma
parvoíce pensar que alguma vez possam substituir o juízo humano.
As máquinas apenas são, como sempre foram, tão boas como
os humanos que as usam. Isto é algo de que nos devemos lembrar quando ouvimos o
canto da sirene dos carros automatizados. Só um ser humano pode tomar a decisão
de arriscar a vida despenhando o seu carro para evitar acertar numa criança que
saiu a correr para a estrada.
Eu calculo que haja dois tipos de passageiros de carro
automatizado. Aqueles que querem o carro programado para chocar, sacrificando o
passageiro, e aqueles que querem o carro programado para atropelar qualquer
obstáculo, em vez de arriscar a segurança do passageiro. Que algoritmo é que
você escolheria? As nossas máquinas não são melhores que os homens que as usam.
Capitão Sullenberger |
Depois de ouvirem a gravação do cockpit da aterragem de
emergência, que revela o quão miraculosamente calmos e metódicos foram os dois
pilotos, Sullenberger diz ao seu copiloto: “Estou tão orgulhoso de ti.
Estiveste sempre ao meu lado, apesar de todas as distrações. Com tanto em
causa. Fizemos isto juntos. Fomos uma equipa.” Os olhos de Skiles enchem-se de
lágrimas e o Sully diz simplesmente: “Fizemos o nosso trabalho”.
Quando regressam à audição de segurança, um dos membros
do departamento, que anteriormente tinha sido antagónico, elogia Sullenberger
por ter sido a componente mais importante da equação que salvou o voo. “Se o
retirarmos da equação”, diz-lhe, “a matemática não bate certo”.
“Não fui apenas eu”, responde Sully, “fomos todos. O Jeff,
a Donna, a Sheila, a Doreen. Os passageiros e as equipas de resgate. Os
controladores aéreos. Os tripulantes dos ferries e os polícias mergulhadores.
Nós conseguimos”. E é aqui que o espectador compreende que esta é a história
que Eastwood tem estado a contar desde o início. Ele tem mostrado, com perícia,
como todas estas pessoas se juntaram e desempenharam um papel essencial. Os ferries
chegaram o mais perto possível da asa do avião, para retirar os passageiros; os
polícias mergulhadores salvaram os que estavam na água e os comissários de
bordo prepararam os passageiros. Todos eles “fizeram os seus trabalhos”.
Quando pensamos em heróis e em santidade, raramente
pensamos em homens e mulheres que simplesmente fazem os seus trabalhos, e os
fazem com excelência. Dia após dia, hora após hora, há pessoas cujas vidas e bem-estar
dependem de nós, de fazermos bem os nossos trabalhos, tal como as nossas vidas
dependem de eles fazerem bem os seus. Esta é a base de qualquer comunidade. É
sobre isto que se constrói a civilização. Não é sobre o poder militar, ou
máquinas poderosas, ou brilhantismo científico. As nossas máquinas podem
convencer-nos que não é assim, mas trata-se de uma ilusão perigosa.
Numa era de hiperindividualismo, bem podemos aprender as
lições de “Sully”. As nossas vidas estão interligadas. As máquinas são tão boas
como as pessoas que as sabem usar e quando as ignorar. E existem heróis. São as
pessoas que fazem os seus trabalhos com excelência – não por dinheiro, não para
serem promovidas, não por fama nem por notoriedade, mas simplesmente porque,
nas palavras do poeta e letrista Bob Dylan, “you gotta’ serve somebody”. E é
bom que não seja uma máquina.
Randall Smith é professor de teologia na Universidade de
St. Thomas, Houston.
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