Thursday 1 February 2018

"Não vim para Portugal para que a realidade judaica esteja na mesma em cinco anos"

Publico aqui a transcrição integral, no português original, da entrevista feita ao novo rabino de Lisboa, Natan Peres.

Nesta entrevista o rabino fala do seu percurso, do que espera fazer na comunidade de Lisboa, e de alguns assuntos de importância geopolítica, como a crise de refugiados e o estatuto de Jerusalém.

A versão da entrevista publicada na Renasença pode ser lida aqui.

Pode-se apresentar e indicar um pouco do seu percurso?
O meu nome é Natan Peres, tenho 44 anos.

Nasci no Brasil, no Rio de Janeiro, mas saí do Brasil ainda jovem e estive muitos anos em Nova Iorque, onde estudei em academias rabínicas. Depois continuei com os meus estudos em Jerusalém, voltando depois aos Estados Unidos. Estive agora algum tempo no Reino Unido, uns cinco anos, depois dois anos em Amesterdão, onde tive o privilégio de oficiar na Sinagoga Portuguesa de Amesterdão, e agora estou cá em Lisboa. O percurso trouxe-me de volta às origens do Judaísmo português.

A sua ascendência é sefardita, originalmente de Portugal?
Exactamente.

Faz ideia há quanto tempo é que a sua família foi para o Brasil?
Não fomos directos ao Brasil, foi recente, nos anos 30. E temos raízes até muito fortes aqui em Portugal, pela parte da minha família de ascendência portuguesa. 

Eram de onde?
Eramos de Seia, de Vila Verde.

Conheci há uns anos um judeu de origem sefardita, que me dizia que a família mantinha a chave da casa de onde tinha sido expulsa. Manteve-se muito essa herança, essa ligação a Portugal, nas tradições das famílias que saíram de cá...
Sem dúvida. Não só as famílias que saíram mais recentemente, mas as comunidades que saíram de Portugal há 400 anos ou mais, também continuaram com estas tradições e com este legado, esta tradição à volta de Portugal. Na Sinagoga de Amesterdão, até hoje, certos anúncios em relação aos serviços são feitos em português.

Português mesmo, ou ladino?
Não! Português mesmo.

É interessante que a herança sefardita dos que foram expulsos de Espanha e de Portugal naquele tempo, tem a conexão mais forte com o ladino, mas as comunidades da diáspora portuguesa, como em Amesterdão, Londres, Nova Iorque e no Caribe, eram mais conectadas com Portugal e com o português. Então em Amesterdão, até hoje, fazem-se esses anúncios em português. Obviamente é um português que foi transmitido ao longo dos anos e hoje em dia tem uma pronuncia não tão portuguesa assim, uma influência holandesa, mas acho isto muito interessante.

É interessante haver essa ligação. Obviamente os contextos são diferentes, mas é uma coisa que também vemos entre judeus asquenaze da Europa de Leste que fugiram mais no contexto da Shoah para os EUA? Também mantêm a ligação às suas terras europeias? Ou isto é uma coisa particular dos judeus que estiveram em Portugal?
Acho que acontece com eles também, mas os judeus sefarditas portugueses têm uma conexão mais forte com o legado português. Acho que o judaísmo ao longo dos anos, foi sempre influenciado pelo meio social onde se criou. O judaísmo português contribuiu tanto para o judaísmo global ao longo dos anos, em relação aos rabinos, em relação à filosofia, e tudo o mais, que acho que isto cria uma conexão ainda mais forte do que noutros países, como por exemplo a Polónia.

Quando é que decidiu que queria ser rabino? Foi ainda nos EUA?
Foi ainda no Brasil. Eu estudei numa yeshiva...

Então saiu do Brasil com que idade?
Adolescente.

Estudei lá alguns anos, mas ao mesmo tempo que estudava no sistema secular. Continuei a carreira focada em estudos religiosos nos Estados Unidos, depois estive em Jerusalém numa yeshiva muito famosa, chamada Shevat Mir, que segue as tradições de estudo da Lituânia, e era uma academia importante antes da Shoah, estudei lá uns três anos, três anos e meio, e depois continuei. Mas ao lado da minha carreira religiosa também segui uma carreira profissional, o que também é um legado do judaísmo sefardita, os rabinos e os líderes comunitários sefarditas sempre acumularam os dois.

Disse que estudou numa academia de tradição lituana, e por isso imagino que asquenaze, e não sefardita. Tem então formação nos dois ramos...
Sim, sem dúvida. Falo fluentemente o iídiche e tenho formação dos dois lados.

Até porque em Nova Iorque a comunidade com mais peso não é sefardita...
Exacto.

Foi fácil manter a ligação às tradições sefarditas crescendo nesse ambiente?
É interessante a pergunta. Eu sempre tive aquele pragmatismo, a realidade à nossa volta é o que é e sempre fui uma pessoa que se integrou naquele meio, mas no fundo sempre tive este sentido de voltar a contribuir para o judaísmo português e foi isso que ao longo dos anos me guiou e continuei ligado ao rabinato com a ideia de um dia voltar a contribuir para o judaísmo português. 

É interessante porque em relação a Nova Iorque, hoje em dia associamos a uma sociedade de maioria asquenaze, mas a primeira sinagoga de Nova Iorque foi fundada por judeus portugueses, vindos do Brasil para o que na altura era Nova Amesterdão. 

Então e porquê Portugal? Surgiu um convite, imagino, mas porque é que vem cá parar?
Como disse eu tive uma carreira profissional paralela com o judaísmo...

Qual é, já agora?
Tem a ver com TI, “big data”, analítica, etc.

Mas aquele chamamento que referi antes, de contribuir para o judaísmo português começou uns 10 anos atrás, quando eu contactei um pouco mais com as comunidades portuguesas, quando morava em Nova Iorque e depois em Londres e aí envolvi-me mais com o rabinato, indo a Amesterdão, para contribuir de uma forma mais forte com o rabinato de Amesterdão, e aí surgiu a ideia de fazer um projecto maior em relação ao judaísmo português e acho muito interessante o que está a acontecer em Portugal em geral, não só em relação ao judaísmo, mas em relação ao que acontece no turismo e em tudo o mais, o que cria oportunidades para o judaísmo português criar projectos mais ambiciosos, e então foi isso que me entusiasmou para essa oportunidade, temos uma ligação através de um judeu português nova-iorquino e fizemos esta ligação e as coisas acabaram acontecendo.

Teve algum contacto com o anterior rabino Eliezer di Martinno?
Sim, estive cá em Portugal para visitar há alguns anos atrás e conheci-o.

Ele deu-lhe alguns conselhos?
Sim, deu. Muitos dão conselhos. Nas comunidades judaicas todos têm conselhos para dar, mas os conselhos do rabino Eliezer são especiais, obviamente.

Quais são as prioridades, perspectivas e a realidade actual da comunidade em Lisboa?
Acho que a comunidade em Lisboa tem um legado muito importante, tem uma história muito rica, tem tradições, mas o que aconteceu ao longo dos últimos 20 anos, não só em relação a Portugal, mas em geral, com a globalização e a internet, a ligação às outras comunidades, ao Estado de Israel e tudo o mais… Acho que o judaísmo hoje – como as outras religiões – está a tentar usar as redes sociais e outras coisas para conectar com a realidade global do judaísmo hoje em dia. 

Então acho que temos muito para criar em relação a infraestrutura judaica, em relação à disponibilidade de alimentos kasher, para a dieta judaica, o ensino e a educação judaica, temos de criar algumas estruturas. A ideia é criar uma estrutura judaica mais forte em Lisboa, recolocar o judaísmo português no mapa do judaísmo mundial.

Não é fácil ser judeu em Portugal... Se quiser ir jantar ou almoçar fora, tem escolhas muito limitadas, imagino...
Exacto. Claro que o nível de conexão dos judeus ao judaísmo varia muito entre as pessoas, e a nossa comunidade não é diferente. Mas as pessoas que vivem de acordo com os princípios judaicos e aqueles que vêm visitar e se interessam por poder vir viver para Portugal, eles sim querem saber desse tipo de coisas. Temos muito trabalho a fazer em relação a isso. 

Existem muitas oportunidades que nos vão ajudar a criar esta infraestrutura de que tanto precisamos.

Sabemos que há muitos estrangeiros a vir viver para Portugal. Isso tem tido reflexos já na comunidade em Lisboa?
Sim, muito grande! Em relação ao turismo, obviamente, segundo os últimos números que vi, recebemos cerca de cinco mil turistas o ano passado na comunidade de Lisboa. 

São turistas judeus que vão aos serviços, ou apenas pessoas interessadas em visitar a sinagoga?
Inclui também pessoas que vêm só visitar a sinagoga, mas é um turismo judaico, muitos desses vêm e participam nos serviços na sinagoga. Inclui pessoas que vêm do Brasil, de França e outros países, então quase todos os dias recebemos emails de pessoas à procura de hotel, ou de comida kasher. Isso acordou a nossa comunidade em relação à oportunidade para podermos usar isso como maneira para criar infraestrutura, também, e que sirva a nós e para esta oportunidade que está a acontecer agora.

Há três principais polos da comunidade judaica em Portugal, Lisboa, Porto e Belmonte. Como estão as relações entre as três?
A nível de comunidades, não é bem o meu departamento, seria de perguntar ao Presidente da comunidade. Mas a nível de rabinato, eu estive em contacto directo agora com o rabino do Porto, estou em contacto com ele quase diariamente. É uma coisa que queremos realmente fortalecer. A comunidade do Porto aprendeu até mais cedo em relação às oportunidaes que esta dinâmica pode gerar e criaram uma infraestrutura que até é um bom início para Portugal, e estamos a colaborar. 

Como as comunidades não são assim tão grandes, temos de nos unir para criar esta realidade nova que tanto queremos.

Tem-se falado muito nos últimos anos de uma lei nova que permite atribuir cidadania portuguesa a judeus sefarditas que possam comprovar a sua ascendência portuguesa. Essa lei tem tido já reflexos na prática? Há números? Aplica-se a si, por exemplo?
No meu caso eu já tenho na família, sem ter tido que aproveitar esta lei. 

Em relação a números, não os tenho, mas vejo que existe e está-se a gerar este interesse. Acho interessante e é isso que quero fazer, temos de usar esta lei como oportunidade para criar esta comunidade em Portugal. Mas tudo isto gera um interesse ainda maior e atrai turistas com o interesse de eventualmente virem a viver em Portugal, o que tem ajudado também.

Saindo agora da realidade exclusivamente portuguesa, olhando mais para o mundo e para a Europa, há casos no norte e no centro da Europa que parecem ser preocupantes ao nível da liberdade religiosa. Estou a falar de tentativas de proibir ou limitar o abate ritual de animais e a circuncisão, o que afecta tanto comunidades judaicas como muçulmanas. Tem acompanhado estes debates? Qual a sua opinião sobre esta tendência?
Temos acompanhado isso, mas antes de falar sobre o que está a acontecer lá, acho importante começar por colocar ênfase no que está a acontecer de positivo em Portugal, e nós congratulamo-nos muito pelo facto de não ter que lidar com este tipo de realidade em Portugal, o antissemitismo cá não é uma coisa que se sinta e isso é uma coisa muito importante que tem de ser dita.

Em relação ao que acontece lá, acho que sim, assistimos a isso, mas ao mesmo tempo não existe só o ângulo judaico e religioso, o que está a acontecer no mundo todo e na Europa também, em relação a mudanças, desde extrema-direita ou radicalismo de todos os lados, isso tem uma influência indirecta no que está a acontecer lá. Isto é uma coisa que nós, não só judeus, mas todos, portugueses e cidadãos da Europa, temos de acompanhar e perceber o que está a criar isso, para ver se não evolui de uma maneira negativa. 

Sendo, na sua opinião, um desenvolvimento negativo, tem apresentado também oportunidades que - dado o contexto internacional actual - podem ser positivas, de união entre as comunidades judaicas e muçulmanas, sabendo também que a Igreja Católica nesses países tem apoiado os judeus e muçulmanos nas suas reivindicações…
Exacto. Isso é muito interessante. As circunstâncias e os desafios em relação à religião em geral podem nos unir e perceber o que temos em comum e não as diferenças.

Vemos de facto isso a acontecer na Holanda, na Bélgica e noutros países, onde estamos a colaborar e esse diálogo é também muito importante, porque começa em relação a assuntos de interesse mútuo, mas que começam a criar uma realidade de maior comunicação entre as religiões, o que me parece muito positivo.

Em Portugal as relações entre diferentes confissões religiosas sempre foram, segundo sei, exemplares. Isso mantém-se?
Sim! A Comunidade Israelita de Lisboa tem relações muito positivas com a comunidade Islâmica. Eu cheguei recentemente e então ainda não tive oportunidade de participar, mas o nosso interesse é de manter este legado de relações positivas.

Embora não sejam a mesma realidade, é impossível separar o que se passa em Israel das comunidades em cada país. Recentemente houve novamente um foco de conflito sobre Jerusalém ser a capital de Israel... Isso acaba por afectar os judeus em todo o mundo. Qual é a sua opinião sobre esse debate?
A questão de Jerusalém, fora do ponto de vista político e do que isso significa para o conflito ou a realidade do Médio Oriente... Para nós, povo judeu, Jerusalém é a nossa capital religiosa, a cidade que significa tudo para o judaísmo e para a nossa história.

Existe essa realidade, mas depois existe a realidade geopolítica e o que acontece no Médio Oriente não me cabe a mim, enquanto rabino na diáspora, comentar. No fim de contas o mais importante é pôr de parte o ângulo político e reconhecer a conexão do povo judeu com a cidade de Jerusalém. Estas questões políticas de vez em quando influenciam-nos a questionar coisas que não são questionáveis, em relação à nossa conexão com Jerusalém, é uma coisa que não se deve questionar. Agora, ser ou não ser a capital de um Estado judeu, é um departamento diferente. Sem misturar as coisas, o importante é reconhecer a nossa relação com a cidade de Jerusalém. Mas cabe aos órgãos políticos resolver a questão do estatuto de Jerusalém.

Em quase todos os países onde estiveram os judeus acabaram por se ver na condição de refugiados. Nessa perspectiva, o que têm a dizer sobre a actual crise de refugiados na Europa?
O povo judeu encontrou-se várias vezes, ao longo da história, numa posição de refugiados. Se há algum povo que pode compreender a situação dos refugiados e o quão difícil isso é, somos nós. 

Acho que também, em ligação com o que falámos antes, o que está a acontecer na Europa em geral, e as mudanças geopolíticas, estas coisas têm de ser lidadas de forma a não influenciar negativamente a situação geopolítica em geral. Mas em relação a ajudar o próximo, ajudar os refugiados, é nosso dever fazê-lo, obviamente de uma maneira que não crie outros problemas. A Europa ainda está a aprender a lidar com este influxo, uma realidade nova, em relação ao número de pessoas, mas como em tudo, acho que estamos na direcção certa e temos de aprender como foram as coisas nos últimos anos e contribuir de uma forma mais positiva.

As relações entre o judaísmo e a Igreja Católica têm mudado muito nas últimas décadas, desde o concílio Vaticano II, no seu entender como caracteriza essas relações hoje em dia no geral e em Portugal.
Pessoalmente não tive muito convívio com estas relações em Portugal, ainda, mas obviamente acho que está acontecer que a Igreja Católica, até com o Papa Francisco, é uma pessoa que está a utilizar e a perceber a nova realidade do mundo e a usar isso de uma maneira a ajudar e a facilitar a reconexão com a religião. 

Acho que isso é uma coisa muito positiva e que é o que todas as religiões, e nós também, no judaísmo, estamos a tentar perceber, como garantir a continuidade judaica para as nossas próximas gerações e como envolver as pessoas. E acho que temos muito para contribuir uns para os outros.

Em relação a relações específicas, no nosso contexto de comunidade, sempre foi positivo e gostaríamos de continuar a trabalhar junto com a Igreja Católica em Portugal. Temos muito mais que nos une do que diferenças e temos de nos focar nisso e nos aspectos positivos do futuro.

É casado?
Sim.

E tem filhos?
Sim.

Quando o rabino di Martino saiu fiz-lhe uma entrevista de "fim de carreira" em Portugal e o que ele disse foi que ele queria ir para um sítio onde fosse mais fácil as suas filhas terem uma vida social mais judaica. Isso é algo que o preocupa?
Sim... De certa maneira sim...

Mas nós temos filhos mais velhos, que vivem nos Estados Unidos, porque ainda temos uma casa lá. Mas o mais novo, que vive connosco, tem uma distância muito grande dos outros. Então o problema é apenas com um, e não são tantos. 

Mas eu acho que há um aspecto positivo, para mim é um desafio. Vir cá a Portugal para que daqui a cinco anos a realidade judaica seja a mesma que de hoje em dia, não é o que vim cá fazer. Eu tenho também interesse em criar um projecto que mude esta realidade, porque eu tenho também um filho cá. 

Trazendo o meu filho para cá dá-me ainda mais um sentido da responsabilidade de criar um projecto que vai dar frutos e, eventualmente, criar uma educação judaica em Portugal, uma comunidade maior. Se Deus quiser vamos criar isto.

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