Wednesday 10 January 2018

Empurrando problemas com a barriga...

Randall Smith
Há alguns anos surgiu um filme chamado “A Corrente do Bem” [Pay it Forward], cuja ideia principal era de que quando alguém nos faz bem, em vez de retribuir devia-se fazer bem a outra pessoa. A realidade costuma ser menos benigna. O que as pessoas costumam passar aos outros são os resultados de um trabalho mal feito, um problema por resolver, uma disfunção que vai passando de gabinete em gabinete até que cai no colo de alguém que não tem nem a autoridade para o poder passar a mais ninguém.

Digamos que um jovem padre, acabado de se formar em Direito Canónico, é colocado num tribunal diocesano, esperando idealisticamente poder aplicar o conhecimento e as práticas que aprendeu, com base na tradição da Igreja, aos desafios pastoralmente difíceis dos casos de nulidade. O que descobre, porém, é que há anos que o tribunal não segue essas práticas, adoptando uma atitude de despachar os processos, dos quais muito poucos são rejeitados.

Estes funcionários sabem, com base em décadas de experiência (uma vez que muitos estão no tribunal desde os anos 70) que se recusarem um processo, ou se recusarem a nulidade, as partes envolvidas tendem a abandonar a Igreja. Por isso, quando o nosso jovem padre chega, o tribunal encontra-se a decretar algumas centenas de nulidades por ano, tendo rejeitado apenas oito ou nove na última década.

O jovem padre idealista decide resistir a este laxismo burocrático. Assim ele é que passa a ser o problema. A burocracia diocesana gere as coisas de uma certa forma há anos; os padres que aconselham os casais estão habituados a dizer-lhes que não haverá qualquer problema uma vez ultrapassada a difícil fase do preenchimento dos papéis.

Ao resistir, o nosso jovem padre vai causar muito mal-estar. Pessoas zangadas por terem visto os seus processos negados irão abandonar a Igreja e os padres que os aconselharam ficarão furiosos. Se o conflito se tornar público os comentadores “liberais” escreverão artigos revoltados, lamentando a “falta de caridade e sensibilidade pastoral” do tribunal, enquanto os “conservadores” criticarão o tribunal por ser tão laxista, insistindo que a caridade maior é a aplicação rigorosa das leis da Igreja.

Eu, para dizer a verdade, não tenho nada a dizer sobre o assunto.

Em vez disso, pergunto se não fará sentido sugerir que “o problema” começou muito antes. Cada pedido de nulidade que chega ao tribunal deve ser considerado uma falha na preparação para o matrimónio. Se a Igreja pode legitimamente decretar a nulidade de tantos casamentos por ano, então tem de enfrentar a triste realidade de que todos os anos milhares de casais católicos não estão a ser bem preparados para o casamento. Tentar lidar com o problema na fase do processo de nulidade é como tapar uma ferida de bala com um penso. Não faz mais do que esconder o problema, em vez de lidar com a ferida profunda, que devia ter sido evitada. Um “hospital de campanha” responsável deveria perguntar porque é estão a aparecer tantas pessoas vítimas de balas, em vez de procurar pensos mais sofisticados.

O pessoal das urgências era capaz de ficar irritado se um médico se recusasse a fazer como todos os outros e simplesmente tapar a ferida com um penso. Parece cruel deixar a ferida aberta. Mas devemos continuar a tapar os problemas em vez de lidar com as suas causas? Os médicos das urgências que já fizeram as pazes com aquilo que se lhes pede há anos provavelmente dirão que não conseguem controlar o que se passa antes de os feridos darem entrada, e isso é verdade, eles não criaram o problema, simplesmente caiu-lhes no colo. E agora?

Hospital de Campanha na Áustria, Primeira Guerra Mundial
Podíamos fazer um comentário semelhante sobre as escolas católicas. As escolas não costumam estar na raiz dos problemas, mas são o local onde todos os problemas tóxicos, que grassam na nossa cultura, vão parar. Questões com drogas e álcool, pornografia e a adolescência híper-sexualizada; consumismo; as pressões de ser bem-sucedido numa economia tecnocrática e globalizada; e por detrás de todas estas, as dificuldades de lidar com as exigências cada vez mais insaciáveis de multidões de indivíduos autónomos alimentados pela ideologia do Estado liberal e que acreditam que têm o “direito” de fazer o que querem, com pouca ou nenhuma consideração pelos desejos dos outros e as obrigações para com a comunidade.

O resultado é que temos uma população, incluindo americanos, que sentem que têm o “direito” a casar e a casar nesta igreja; o “direito” a uma declaração de nulidade quando as coisas não correm bem; o “direito” a ter a escola católica que querem (o que pode significar aulas de educação sexual, ética ambiental ou missa em latim); e o “direito” de escolher a vida que querem, quer isso signifique o “direito” a um aborto, o “direito” a casas de banho transgénero ou o “direito” a acumular toda a riqueza possível para poder comprar os bens de consumo que querem.

Por isso, e quando os padres insistem perante as suas congregações que a principal virtude cristã é “ser simpático”, esses fiéis têm alguma dificuldade em compreender porque é que uma instituição católica lhes negaria o que consideram ser desejos legítimos, porque negar às pessoas aquilo que querem não é “simpático”. Quando se alimenta uma cultura de liberalismo autónomo e se prega o Evangelho de deísmo terapêutico moralista, está-se a dar força às raízes das ervas daninhas da nossa cultura, muitas das quais acabarão por crescer com força no jardim de alguém que não tem os recursos necessários para se livrar delas.

Por isso podemos continuar a discutir amargamente e sem fim sobre os tribunais e as escolas onde os problemas acabam por ir parar – embora nesse ponto as dificuldades são já tão grandes e os recursos tão escassos que teria sorte se até um penso lhe dessem. Ou então podemos levar a sério o que está a acontecer na nossa cultura e o que não se está a passar na nossa Igreja e começar a responsabilizar as pessoas envolvidas no sistema, a começar por nós, para não empurrem mais os problemas com a barriga.

Talvez devêssemos fazer disso a nossa resolução de Ano Novo.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quarta-feira, 3 de Janeiro de 2018)

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