Sunday 3 December 2017

"Católicos na Birmânia e no Bangladesh sentem-se (legitimamente) portugueses"

Aqui podem ler a transcrição integral da minha conversa com o historiador Miguel Castelo Branco, a propósito da importância da presença portuguesa na Birmânia e no Bangladesh. Esta entrevista serviu de base para três reportagens, que podem ser lidas aqui, aqui e aqui.

O Papa viaja nos próximos dias para a Birmânia e para o Bangladesh. São dois destinos em que o catolicismo está muito ligado a Portugal…
O primeiro contacto que tiveram com o Ocidente foi com portugueses, muito embora alguns digam que por lá, ocasionalmente pudesse ter chegado algum mercador genovês ou veneziano. Mas a presença impressiva, que deixou sulco e que ainda deixa sulco por todas as comunidades católicas – atrever-me-ia mesmo a dizer do Cabo ao Japão – foram profundamente inspiradas pela matriz do Catolicismo português, porque há estruturas sociais, mentais e de valores que extravasam o campo estritamente religioso e que têm uma marca profunda de Portugal.

No caso da Birmânia desde meados do Século XVI foram chegando portugueses, não propriamente portugueses organizados, porque não eram funcionários ou servidores do Estado da Índia, e que se fizeram no actual Myanmar como soldados.

Mas há aqui uma série de outras questões engraçadas, que dariam um filme por exemplo, dos aventureiros mercenários portugueses, dois dos quais até se transformaram em reis locais.

Há o caso do Sebastião Tibau, que é um rapaz novo, de 20 anos, que chega à Índia, deserta imediatamente e põe-se ao serviço do Rei do Arracão, que é esta região onde há actualmente este problema dos Rohingyas, chama-se Rakhine. E ele transforma-se lentamente num rei pirata de uma ilha que fica no Golfo de Bengala, em frente ao Bangladesh, onde termina o Bangladesh começa Myanmar.

Ele foi rei de Sundiva, depois é claro que com tantas traições e mudanças de campo acabou por ser destruído pelos birmaneses.  E depois há o famosíssimo Rei do Sirião, ou rei do Pegú, que é um Filipe Brito de Nicote, no primeiro quartel do século XVII, e que era também um mercenário, que ganhou tanto relevo que acabou por ser investido como Senhor do Sirião. Sirião fica no Pegú, o extremo sul da Tailândia, perto do mar de Andaman. Mas a partir do momento em que extravasou a sua lealdade para com o Rei do Arracão...

Tudo isto no que é actualmente a Birmânia?
A Birmânia antigamente, assim de forma muito simplista, eram dois reinos. O Arracão, actualmente o Rakhine – aquele Estado onde está em curso aquele problema dos rohingyas – e o norte, a Birmânia interior, que era o Reino de Ava.

Filipe Brito de Nicote servia o Arracão, mas a partir do momento em que excedeu em liberdade em autonomia, foi eliminado. Temos aqui dois casos de soldados práticos que não têm nada a ver com o Estado da Índia nem com as relações diplomáticas, informais, entre Portugal e a Birmânia.

Esses são dois casos isolados e curiosos. Mas há depois uma presença mais organizada que acaba por ter uma grande influência na história da Birmânia...
Onde há portugueses à solta – que era o nome que se lhes dava – geravam espontaneamente comunidades ditas portuguesas. Casavam com mulheres locais e os filhos recebiam educação portuguesa, o que quer dizer a religião dos portugueses, católica. E por conseguinte, ao fim de 20 ou 30 anos geravam-se os chamados bandéis, que são povoados inteiramente ocupados por esta população mista, neste caso luso-birmanesa, como na actual Tailândia, luso-siamesa e por todo o lado assim aconteceu.
Eram comunidades que desabrochavam espontaneamente e que eram especializadas, isto é, estas comunidades tinham uma função no quadro das monarquias locais. Eram soldados, eram intérpretes (não nos esqueçamos que o português era a língua franca internacional. Até ao Século XIX os ingleses, holandeses e franceses, tinham de aprender português para poderem negociar nessa região, uma região vasta, que vai praticamente até Timor. O inglês é uma coisa muito recente), eram bons agentes diplomáticos para receber europeus, porque dominavam o processo de negociação e conheciam as manhas dos ocidentais, e eram também fundidores.

Até ao século XIX, no caso da Birmânia, estas comunidades, que eram numerosas, tinham um estatuto muito privilegiado e eram muito protegidas pelas monarquias budistas – como é o caso da Tailândia e da Birmânia – que são aliadas dos portugueses, mas no sentido em que há forças que são intermediárias entre Portugal e essas monarquias e essas forças locais, sociais, são estas comunidades católicas.

Claro que com o aumento da expressão demográfica destas minorias católicas portuguesas, porque era assim que eram tratados – a religião dos portugueses era o Catolicismo, logo o Catolicismo só era próprio dos portugueses – eles tiveram de pedir assistência religiosa e assim várias ordens religiosas, nomeadamente os jesuítas, os agostinhos, os franciscanos enviaram missionários e criaram-se missões.

Ainda há quem recorde a presença dos portugueses naquele país? O que é que lá ficou?
Ainda há uma comunidade compacta. Eles foram distribuídos pelo território, por vários motivos históricos.

A França e a Alemanha daquela região são respectivamente a Birmânia e a Tailândia, e estavam em constantes guerras. Como havia portugueses de um e de outro lado, ao serviço das monarquias, o princípio não era matá-los, era capturá-los, porque nas guerras asiáticas desse tempo a lógica não era exterminar o inimigo, era aprisionar o inimigo, porque havia uma falta crónica de mão-de-obra e de gente e sabiam que estes arcabuzeiros, estes atiradores portugueses eram muito bons, pelo que tentavam capturá-los e cobriam-nos de regalias.

Estando de um lado ou de outro, sendo capturado por um lado ou por outro, sabiam que não seriam mal-tratados.

Actualmente ainda há vestígios razoavelmente importantes. Quem leu as “Burmese Days”, de Orwell, encontra esta figura do português, aquilo a que os ingleses chamavam desdenhosamente “Black Portuguese”, com o seu racismo, porque de facto essas populações foram hostilizadas sobretudo pelas potências coloniais, não foram pelos estados independentes que subsistiram até ao século XIX. No caso da Tailândia felizmente nunca foi colonizada até ao Século XX.

Actualmente estes descendentes vivem alguns em Rangum, que foi até há pouco a capital do Myanmar, mudou para Naipindau, e no Norte. Eles foram acompanhando a monarquia Birmanesa no seu recuo para o interior. Sobretudo no Século XIX quando os ingleses chegaram para invadir pela primeira vez a Birmânia – a Birmânia era um grande Estado, foi agredida três vezes militarmente pelos ingleses até desaparecer, três guerras sucessivas no século XIX – a população católica acompanhou os seus reis, os seus reis budistas, até Mandalay. No Norte do país, perto do Rio Mo, há ainda uma numerosa população portuguesa, com os seus padres católicos, descendentes de portugueses.

Ainda há um ano na Faculdade de Direito, a Nova Portugalidade organizou uma conferência que teve por convidado Sua Alteza Real o Sr. D. Duarte, e ele falou sobre as comunidades e as cristandades portuguesas no Oriente e lembrou que todos os bispos da região têm ascendência portuguesa, o que de facto mostra que são comunidades que mantiveram a sua lealdade e a sua lealdade é tripla: É uma lealdade nacional, porque eles são bons patriotas e bons cidadãos dos países onde nasceram; uma lealdade à sua religião, são católicos, e uma lealdade emocional a Portugal, coisa que certamente nas Necessidades ninguém se lembrará.

São comunidades extremamente importantes e continuam a ser, sobretudo na Tailândia, onde ocupam funções de grande relevo no serviço público.

Neste momento há uma crise humanitária com os Rohingya... Quais são as raízes históricas do que se está a passar aí?
Creio que há uma grande parcialidade, para não dizer uma grande manipulação, em relação á questão dos refugiados rohingyas. Para o Governo birmanês eles não são birmaneses, isto é, não são cidadãos do Myanmar. Chamam-lhes bengalis, porque vieram do Golfo de Bengal.

Acontece que a questão é antiga e é recente. É antiga porque de facto há referências esparsas, de viajantes ingleses, sobretudo, à existências desses rohingyas já no século XVIII. Como era prática no quadro do império, o Raj britânico, havia mudanças de população. Os ingleses levaram para a Malásia milhares, que agora são milhões, de chineses, como levaram para o Uganda indianos, como levaram chineses também para a actual Singapura e levaram estes bengalis para o ocidente de Myanmar, para este Estado de Rakhine.

O que acontece é que durante a Segunda Guerra Mundial a Birmânia tornou-se independente. Teve um Governo fabricado pelos japoneses para demonstrar que o Japão estava na dianteira do processo de luta contra o imperialismo ocidental. Os birmaneses aceitaram naturalmente essa graça da independência e foram fiéis aliados dos japoneses. Quando voltaram os ingleses em 45 já estavam com problemas na Índia, iniciaram o processo de independência da Índia e depois da Birmânia. E ao saírem entregaram todas as armas que tinham aos muçulmanos, ditos rohingyas, que agora estão no centro dos noticiários.

Acontece que entre 1948, data da independência da Birmânia, e os anos 60, estes muçulmanos desenvolveram uma guerra de guerrilha intensíssima que foi, finalmente, vencida pelo Exército birmanês.

Agora, uma coisa que as pessoas não sabem é porque é que o Governo do Bangladesh e o Governo da Índia hostilizam de uma forma tão notória os chamados rohingyas. Porquê? Porque o braço armado da chamada resistência rohingya é o nome local para a Al-Qaeda.

Os rohingyas não são só alvo de perseguição, têm morrido milhares de budistas, impalados, queimados vivos, com templos destruídos, pelo chamado exército de defesa rohingya. Portanto os rohingya armados são outro nome para a Al-Qaeda.

Não devemos de uma forma tão afirmativa separar os bons dos maus, porque aqui há de facto um problema grave. Há um problema de populações, um problema de sofrimento humano, mas parece-me que, ao contrário do que se diz, a senhora Aung San Su Kyi tem tentado de uma forma razoavelmente cordata – no pressuposto de que Estado algum aceita uma secessão de uma parte do seu território. Se acontecesse connosco no Algarve ou nos Açores, ou com os espanhóis na Catalunha, a posição do Estado é mais dura – mas não me parece que da parte dela e da parte da grande maioria da população, e sobretudo dos agentes políticos birmaneses, haja qualquer expressão de ódio em relação aos muçulmanos.

Não está em curso uma guerra religiosa, ao contrário do que muitas pessoas julgam. A situação não é tão clara como parece e há, no caso dos rohingyas, um fantasma, um espectro oculto, que é a Al-Qaeda, que também está em Mindanao nas Filipinas, que está no Sul da Tailândia, portanto a questão não é tão linear como alguns pretendem fazer crer.

Independentemente disso, que dá contexto, as imagens que vimos dos refugiados, das tragédias, da limpeza étnica...
Eu não sei se será limpeza étnica, mas há de facto um nível de violência inaceitável.

Mas conviria estudar e saber in loco, porque ao contrário do que o senso comum, que muitas vezes tem um peso imenso, pretende fazer crer, os especialistas na matéria birmanesa tomam todos partido pelo Governo da Birmânia. Estou a falar de grandes autoridades, historiadores, sociólogos e antropólogos e etnólogos, que conhecem profundamente Rakhine, que é o estado onde estão a acontecer estes problemas, e todos eles tomam partido.

Eu creio que tal como aconteceu na Síria, seria conveniente saber quem é quem e saber quem é que faz o quê. Ainda me lembro que há quatro ou cinco anos era impossível falar na Síria sem ter de despejar uma torrente de impropérios sobre o Governo de Bashar al-Assad, quando para nós, católicos e cristãos, era a entidade que estava a defender as cristandades existentes na Síria. Portanto eu creio que é necessário muitas vezes tentar perceber um pouco e ouvir as autoridades certas e no caso da Birmânia aquilo que me parece é que houve um grande exagero, como há estas explosões emocionais, que são próprias, mas que não são esclarecedoras. E depois é necessário dar voz, e ouvir as pessoas que conhecem, sobretudo ocidentais, sem parcialidade e sem cegueiras, para que possam dizer-nos exactamente o que é que está a acontecer.

Temos depois o Bangladesh onde, segundo o embaixador em Lisboa, ainda existem 1.500 palavras portuguesas no vocabulário e o principal bispo tem o apelido D’Rozário… Fica surpreendido ao saber estas coisas?
Há uma grande comunidade, aliás, Calcutá, que foi – creio que ainda será – a maior cidade indiana, onde os ingleses se fixaram depois no Século XVII para XVIII, foi criada pelos portugueses. De Calcutá para Leste, ali na foz do Bramaputra, constituíram esses tais bandéis, esses tais acampamentos dos portugueses. A maior cidade portuária, que é agora especialista mundial em desfazer navios, que é Chitacong, foi criada pelos portugueses. E o Bangladesh tem esta curiosidade, tem de facto uma minoria católica forte, muito resistente até à pressão islâmica, o que é um caso notável de sobrevivência. Mas essa presença portuguesa está lá desde o século XVI, também.

Temos alguns piratas e que desenvolvem uma actividade importante, porque escoam os produtos dessas regiões, portanto tornaram-se úteis, ao contrário do que diz alguma historiografia anglo-saxónica, não são parasitas, pelo contrário, são agentes de reprodução de riqueza, dai serem tão estimados.

A India durante 400 anos foi governada pelo chamado Império o Grão Moghol. O Grão Moghol hostilizava os cristãos, mas protegia os portugueses, porque sabia que tinham esta faculdade, eram agentes importantes dinamizadores do comércio e da riqueza. No caso do Bangladesh, um país que se inunda com facilidade, os portugueses penetraram ligeiramente no interior.

Os portugueses não foram os únicos europeus a ter interesses, comércio e a deixar um legado na Ásia. Mas este fenómeno de orgulho nas raízes portuguesas que vemos na Birmânia, na Tailândia, etc. acontece também com ingleses, holandeses, franceses?
No caso holandês e inglês não, decididamente, porque a própria expressão da sua presença e até a sua própria ideologia é marcada por uma profunda desconfiança em relação àquilo. O Grócio dizia que os portugueses eram uma raça decaída, um povo caído, porque se misturavam com os animais. Isto mostra um bocadinho o tipo de atitude holandês e inglês em relação aos povos de pele escura.

No caso dos franceses é tardia, porque a França tem sobretudo uma presença na Índia em Puducherri, a mestiçagem é muito pequena, e depois a França só volta de facto a ter algum impacto no sudeste asiático a partir da década de 60 da década XIX.

No caso português é diferente. As populações católicas que se orgulham das suas raízes portuguesas são imensas. E até têm a faculdade de resgatar do isolamento e da sua condição social marginal os mestiços feitos pelos ingleses e pelos holandeses. Todos eles quer em Batávia, actual Jacarta, quer no actual Ceilão, muitos dos descendentes de marinheiros e soldados holandeses quiseram ficar portugueses e tomaram nomes portugueses, não querem nada com essa memória e com essa ancestralidade cultural holandesa.

Aliás, as marcas são muito pequenas. Eu falo tailandês, estive vários anos na Tailândia, e não há semana que não encontre uma expressão portuguesa já muito corrompida. Perguntaria quantos termos holandeses terão ficado na actual Indonésia.

E o caso inglês e holandês, são casos de companhias, são companhias de accionistas. O império, de jure, inglês na Ásia é do Século XIX. Antes eram iniciativas de uma empresa, de uma companhia, que se chamava Companhia das Índias Orientais. O mesmo acontecia com os holandeses.

A presença portuguesa é efectiva e desenvolve-se em vectores profundíssimos, não é só uma presença de estado, económica e comercial. É uma presença religiosa, cultural e de populações que passam a ser portuguesas, dentro e fora dos limites do próprio império português. Isto é um caso único daí que para muitos ocidentais se consegue demonstrar que há actualmente – isto pode parecer um pouco exagerado – um império. Já lhe chamaram império informal ou império invisível, mas há um império invisível português na Ásia que tem a ver com todas estas comunidades católicas, que continuam vivas, algumas com alguma influência, e que Portugal infelizmente não acompanha, porque são vectores poderosíssimos de relacionamento com os estados onde prosperam estas comunidades.

Hoje em dia temos comunidades em vários pontos da Ásia que reivindicam ser descendentes dos portugueses. O Governo português faz alguma coisa para cultivar estes laços? Que mais poderia ou deveria ser feito?
Poderia fazer muito, creio que deveria. Da mesma forma que a Assembleia da República, há cerca de um ano, aprovou a concessão da nacionalidade portuguesa a sefarditas que façam testemunho e prova da sua ancestralidade portuguesa – é claro que não poderíamos fazê-lo de uma forma despreocupada – mas julgo que se deveria estudar, devia-se conhecer e de uma forma, mesmo que fosse simbólica, restituir parte da cidadania portuguesa.

Até ao século XIX a cidadania antiga portuguesa era para todo aquele que fosse católico, vivesse ou não em domínio português e que fosse leal, de uma certa forma, ao Rei de Portugal que era o responsável pelo padroado português no Oriente. Todos eles se consideravam portugueses. Subitamente há uma revolução em 1820, fazem uma Constituição escrita a dizer que são portugueses os cidadãos nascidos em Portugal... Essa gente sofre desde então uma certa orfandade, porque eles consideram-se, e legitimamente, na sua perspectiva, portugueses.

Portanto caberia ao Estado português tentar encontrar uma fórmula e sobretudo investir um bocadinho mais. Creio que a Igreja portuguesa poderia ser neste caso apoiada, e todas as organizações católicas, que enviam tantos jovens para África, poderiam ajudar. Há pouco tempo uma Cátia Ferreira esteve em Malaca, professora de português, e tinha centenas de miúdos a querer aprender português.

O Governo português poderia enviar – e isto custaria menos que um dos milhares de bolsas da FCT – uns 20 professores primários, professores de português básico, para o Bangladesh, para as nossas comunidades portugueses no Myanmar, para os bairros católicos de Banguecoque, para tanto lado onde há uma fome imensa de aprendizagem da língua portuguesa, porque eles consideram-se portugueses. São portugueses, mas não têm cidadania, não são ouvidos, nem se quer, julgo eu, para nosso mal, haverá muitas pessoas nas Necessidades que tenham sequer a percepção de que este problema existe. 

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