Thursday 25 May 2023

Doentes poderão pedir eutanásia só para ter direito a cuidados paliativos

Esta é a transcrição integral, no português original, da minha entrevista a Maria do Céu Patrão Neves, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, para a reportagem que publiquei recentemente no The Pillar

Incomoda o facto de os sucessivos pareceres negativos do Conselho terem sido ignorados?

O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida não deu um Parecer negativo ou positivo; apreciou os textos das propostas de lei que lhe foram enviados, identificou os aspectos eticamente problemáticos e apontou caminhos alternativos a considerar, através das suas recomendações.

O facto de entidades públicas, nomeadamente as que detêm competências legislativas, solicitarem parecer ao CNECV, no âmbito das suas competências específicas, e posteriormente não o tomarem em consideração, evidencia que contributos que poderiam ser efectivamente integrados em prol de uma melhoria da qualidade legislativa não foram. São oportunidades perdidas.

 O Conselho tem um largo espectro de sensibilidades ideológicas, filosóficas, com um largo espectro de formação académica, científica, profissional, funcionando quase como uma micro sociedade. Por isso o parecer do conselho e os consensos que são possíveis de construir ao nível do Conselho, reflectem em grande parte a sensibilidade do que seria a sociedade portuguesa, se fosse possível ouvir cada um dos cidadãos.

Daí a nossa convicção de que as recomendações do Conselho deveriam merecer uma atenção maior por parte do legislador. Receamos que, por vezes, quando a lei exige um pedido formal de parecer, quando os processos democráticos de decisão estipulam como conveniente a solicitação de pareceres, nos quedemos pela formalidade, isto é, o parecer é oficialmente solicitado, mas não substantivamente acolhido. Importa reflectir sobre o teor desses mesmos pareceres e integrá-los, mesmo que não necessariamente na íntegra, atendendo a outros valores ou interesses que os legisladores tomem em consideração. Em todo o caso, surpreende-nos que, no mínimo, as grandes questões éticas apontadas pelo Conselho sobre o diploma da eutanásia, bastante sólidas do ponto de vista ético, e consensualizadas entre conselheiros que são a favor e contra a eutanásia, tenham sido ignoradas ou descartadas.

Esta não é uma realidade constante. Há outras situações em que os pareceres do conselho foram acolhidos, ainda recentemente, na regulamentação sobre a gestação de substituição: na segunda proposta de regulamentação, encontramos muitas das recomendações do Conselho à primeira proposta bem integradas. No que diz respeito à eutanásia, lamentavelmente, descartaram-se as recomendações do Conselho, não obstante serem absolutamente estruturantes.

Qual é a principal preocupação do CNECV agora?

Em relação a esta matéria, aguardamos a respectiva regulamentação. A lei já foi promulgada, e fica como está. Agora vamos apreciar a proposta de regulamentação na expectativa que possa vir a acautelar alguns aspectos, certamente menores, que apontámos anteriormente. Quanto aos estruturantes omissos…, perdeu-se a oportunidade. Identifico dois. O primeiro diz respeito ao facto de o texto aprovado e já promulgado sobre a eutanásia prever que quem solicita a eutanásia tem efectivamente acesso a cuidados paliativos. O Conselho pergunta se realmente a solicitação da eutanásia constitui uma porta facilitadora do acesso a cuidados paliativos sabendo-se que, em Portugal, apenas 30% da população que carece de cuidados paliativos tem acesso aos mesmos. 70% dos que necessitam de cuidados paliativos não têm acesso a eles. Agora temos uma lei da eutanásia que afirmar solicitar a eutanásia dá acesso aos cuidados paliativos. Parece francamente discriminatório e, no limite, quase que encorajador da solicitação da eutanásia, mesmo que depois se revogue esse pedido, utilizado como acesso a cuidados paliativos. Claro que esta interpretação é absurda, mas resulta do texto da lei.

O segundo aspecto é também bastante gravoso. Sendo ao abrigo do princípio da autonomia que se descriminaliza a eutanásia, verificamos que todo o poder ao longo do processo está nas mãos do médico orientador. Esta sua quase hegemonia tem o seu corolário no facto de ser ele a escolher e /ou a autorizar quem estará presente no acto de eutanásia. A pessoa que vai ser eutanasiada pode propor as pessoas que gostaria de ter presente nos seus últimos momentos de vida, mas a autorização tem de ser dada pelo médico assistente. Isto é um contrassenso, que não respeita de todo a autonomia de quem solicita a eutanásia.

Estes são apenas dois dos mais graves erros estruturantes que a actual lei apresenta, tendo havido extensa oportunidade para serem corrigir, o que não foi feito.

Vai nomear alguém para a Comissão de Avaliação?

O Conselho nomeará um conselheiro para integrar esta comissão quando tal nos for solicitado.

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