Monday, 17 April 2023

Abusos na Igreja – O tempo das vítimas

Um dos resultados mais inesperados do meu envolvimento na cobertura desta questão dos abusos na Igreja, sobretudo desde que foi apresentado o relatório da Comissão Independente, é o facto de ter sido procurado por algumas vítimas, ou pessoas próximas, para exporem as suas histórias.

Note-se que não o têm feito para que eu torne essas histórias públicas, mas sim para desabafar, nalguns casos, ou para me ajudar a compreender melhor a realidade de que estamos a falar.

Contudo, em quase todas essas situações tenho sentido relutância por parte das pessoas em causa de exporem os seus casos a quem realmente pode fazer alguma coisa sobre o assunto: as autoridades, sejam elas civis, nos casos em que possa haver a possibilidade de os crimes não terem prescrito, ou as dioceses, mais especificamente através das comissões diocesanas.

Eu sei que o que estou a pedir não é fácil, e é sobretudo extraordinariamente ingrato.

Para muitos já basta o que sofreram, e sentem que ter de passar por um processo, com interrogatórios e tudo o resto, vai reavivar toda essa dor. E se calhar até vai.

E no final de contas existe sempre a possibilidade de verem tudo cair em saco roto, especialmente em casos que já se passaram há muitos anos, sem que exista qualquer prova documental ou física, em que tudo se resumirá à palavra de um clérigo contra as memórias de alguém que na altura se calhar ainda era criança.

Tenho noção de que estou a pedir aquilo que ninguém vos devia pedir. Mas peço na mesma.

Peço, porque o vosso testemunho, em sede própria, é, em muitos casos, a única coisa que pode de facto levar a que se faça justiça e se reponha a verdade, mas sobretudo porque é crucial como parte do esforço colectivo de prevenção que todos temos de fazer enquanto Igreja.

Estou convencido de que neste momento haverá muita gente a observar cuidadosamente o que se vai passar nos casos de padres que estão sob investigação. Naturalmente, espero que só sejam condenados os que são de facto culpados por alguma coisa, mas se todos forem absolvidos ou virem os seus casos arquivados por falta de matéria, a maioria dos que estão a observar concluirá que não vale a pena fazer nada, porque o resultado é sempre o mesmo.

Eu, que acompanho isto com alguma atenção há muitos anos, sei que não é assim. Tem havido casos de padres condenados, afastados do sacerdócio e do contacto com pessoas vulneráveis. Existe, estou convencido disso, da parte da maioria das dioceses uma vontade sincera de agir, e agir bem, em favor dos mais fracos.

Mas também existe, felizmente, a certeza de que essas condenações têm de assentar em provas e não em insinuações ou diz-que-disse. E para haver provas, numa matéria destas, tem de haver testemunhos, tem de haver pessoas com coragem para fazer o impensável e avançar, contar as suas histórias e enfrentar tudo o que isso implica. O mal que passaram não ficará desfeito, talvez tenham de reviver partes do trauma, mas se isso vos servir de consolo, saibam que pelo menos estarão a contribuir para tornar a Igreja segura para outros, agora e no futuro, e a encorajar quem está ainda na expectativa a vir contar também a sua história.

Como fazê-lo? Neste momento todas as dioceses têm uma Comissão diocesana que acolhe e trata estas situações. Os contactos devem ser fáceis de encontrar. Sei que em muitos existirá desconfiança, por serem órgãos da Igreja, mas podem confiar nestas instituições. Caso não o queiram fazer, podem tentar contactar-me directamente para actualidadereligiosa@gmail.com que eu posso tentar ajudar a encontrar pessoas da minha confiança para fazer essa ponte.

Se estão dispostos a dar cara, nesta fase é sempre melhor. Mesmo que já o tenham feito com a Comissão Independente, lembrem-se que essa assumiu a obrigação de não identificar as vítimas, por isso não terá passado os vossos dados ou contactos para as dioceses.

Mas mesmo que sintam que não estão ainda preparados para dar a cara, escrevam. Qualquer informação sobre um caso em particular que possa reforçar ou confirmar dados que já tenham incluído, e que a Comissão Independente poderá ter feito chegar às Comissões Diocesanas, é já uma ajuda preciosa e pode até ser a peça que falta para que o processo tenha um desfecho mais verdadeiro.

Fica aqui feito este apelo. Caso ele não se aplique a si, caro leitor, mas se se identificar com os objectivos, peço que o partilhe, porque a realidade é que nunca sabemos se o nosso irmão, primo ou amigo não será um dos que sofre em silêncio.

Mas fica também um aviso: neste momento temos em Portugal cerca de 14 padres preventivamente afastados de funções e outros nove sobre os quais supostamente se aguardavam mais informação. Se defendemos – como eu defendo – que é preciso respeitar as regras dos processos, com tudo o que isso implica, então temos também de respeitar os seus desfechos. Se todos estes homens forem absolvidos ou virem os seus casos arquivados, então em coerência temos de os respeitar como inocentes e trata-los como tal.

Se foi vítima de um deles, se sabe que ele é culpado, então por favor fale agora e conte a verdade, pois a verdade nos libertará a todos.

5 comments:

  1. Obrigado por este serviço eclesial e cívico, Filipe.

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  2. Desta vez não te acompanho nest post.
    Se o foco são as vítimas, então comecemos por respeitar a sua vontade. Se o foco é ajuda-las, dê-se-lhes todo o apoio. Mas sobretudo: RESPEITE-SE A SUA VONTADE! Têm todo o direito a fazer a sua queixa como a não querer fazê-la! Não está provado que a punição do abusador resolva o problema traumático do abusado. Este teu post, ao pressionar as vítimas a fazer uma queixa não está a respeitar a sua liberdade.
    É também pena que quando dizes que: "temos em Portugal cerca de 14 padres preventivamente afastados de funções e outros nove sobre os quais supostamente se aguardavam mais informação" não digas quantos já foram objecto de sentença e punição. Como bem sabes, a Igreja não começou a actuar sobre estes casos depois do Relatório da CI.
    Em síntese e para que fique claro:
    1º o abuso sexual de menores é hediondo, repugnante e revoltante;
    2º fala-se de mais dos alegados abusadores e de menos sobre as vítimas;
    3º assegure-se a cada vítima que o pedir, todo o apoio, psicológico, solidário, clínico e social;
    4º respeite-se intransigentemente a liberdade das vítimas, hoje esmagadoramente maiores de idade, de decidir se querem denunciar, promover acções judiciais ou guardar o seu anonimato.

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    1. Olá.
      Muito brevemente:
      O objectivo de as vítimas se chegarem à frente não é punir os abusadores ou resolver o problema do trauma. Digo, aliás, claramente, que isso pode não acontecer.
      O objectivo é prevenir futuros abusos e contribuir para um sistema em que as pessoas sentem que vale a pena denunciar, porque as coisas acontecem.
      Em relação aos 14, nenhum deles foi já objecto de sentença e punição. Mas tenho esses dados todos discriminados neste artigo: http://actualidadereligiosa.blogspot.com/2023/02/abusos-em-portugal-o-que-ja-sabemos-o.html
      De resto, quem quiser não denunciar, obviamente respeita-se. Mas isso terá consequências. É para isso que estou a chamar atenção.
      Cumprimentos,
      Filipe

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    2. Filipe
      Mais do que novas vítimas denunciem novos casos, é a pressão mediática e da opinião pública que neste momento que ganha particular eficácia sobre novas tentações de abuso.
      Sabemos que em relação a estes 14 padres ainda não há decisões conhecidas nem do MP nem do Dicastério. Não é desses que eu falo, mas de todos os outros que a Igreja sancionou, antes dos denunciados no Relatório, e não são poucos.
      Como referi "a Igreja não começou a actuar sobre estes casos depois do Relatório da CI", já antes o fazia.
      Abraço
      Rui

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    3. Olá Rui,
      A pressão mediática e da opinião pública é uma coisa muito fugaz. É preciso criar um ambiente de confiança. Predadores haverá sempre, por mais que se melhore os sistemas de vigilância, despiste e formação. É preciso que esses predadores saibam que estão - ou estão a tentar entrar - numa Igreja que tem mecanismos rápidos e eficazes para lidar com abusos, para que pensem duas vezes antes de o fazer. Para isso é preciso que as pessoas percebam que o sistema funciona. Se pensarem que não funciona, não farão denúncias.

      Quanto aos que já foram suspensos, todos os que são de conhecimento público, dos últimos 12 anos, mais ou menos, estão no artigo que partilhei no meu comentário acima. Eu também não comecei a acompanhar isto apenas com a criação da CI.

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