Transcrição integral da entrevista a Alfredo Bruto da Costa, sobre os Direitos Humanos de uma perspectiva católica e missionária. A notícia está aqui.
Como encara as palavras do Papa Francisco na sua exortação apostólica sobre o sistema financeiro internacional?
É tremendamente crítico, mas compreensivelmente. Não é
nenhuma novidade. Já Bento XVI, na encíclica Caridade na Verdade já fazia algumas
observações muito críticas ao sistema económico e financeiro. Nós é que não
estamos habituados a levar a sério este tipo de críticas, quando estão escritas
através de uma linguagem menos incisiva.
Uma das grandes vantagens das mensagens do Papa Francisco é
que ele tem uma linguagem extremamente expressiva, por exemplo quando fala da
economia e finanças que causa exclusão, ele tem uma frase que é “Esta economia
mata”. É uma frase que até podemos tomar literalmente, porque de facto há gente
que morre por razões do sistema económico e financeiro global.
O que o Papa Francisco vem trazer é uma revisão de antigos
princípios que foram proclamados pela Igreja e que os próprios cristãos não
tomaram devidamente a sério. Se fosse assim não teríamos nenhuma razão para
pensar que esta insistência e esta forma aguda como ele coloca o problema teria
alguma coisa de novo. A meu ver não tem, só tem porque não temos levado a sério
essas advertências feitas quer pelos doutores da Igreja, quer pelos últimos
Papas, em documentos a esse respeito.
De que forma é que a
pobreza pode afectar os direitos humanos?
A pobreza é uma rejeição, uma negação clara dos direitos
humanos. Fiz parte de uma comissão criada pela UNESCO, precisamente para
explicitar a relação da pobreza no mundo com os direitos humanos. A relação é
claríssima.
Se pegarmos na declaração dos direitos humanos um dos
principais direitos é o direito à existência. Ora bem, a interpretação desse
direito implica que a gente possa ter uma existência digna. Portanto o próprio
direito fixado em 1948, interpretado como deve ser, leva a que situações de
miséria sejam negações claras de direitos humanos básicos.
Outra questão é quanto à noção de liberdade. Quando pensamos
em direitos, em democracia, por exemplo, fixamo-nos bastante na noção de
liberdade. A liberdade de expressão, de pensamento, etc. Hoje sabemos que
considerando a liberdade numa perspectiva existencial, uma pessoa com fome não
é livre. Por este caminho nós temos uma forma muito clara e consistente de
mostrar que o próprio conceito de liberdade e de democracia, etc. quando as
pessoas não têm de comer, vivem na miséria, não têm maneira de satisfazer as
suas necessidades básicas, não são livres. E não são livres de duas formas. Por
um lado não são livres de comer, poder comer é uma forma de liberdade, mas por outro lado está provado, como a
própria intuição humana diz, uma pessoa com fome, na miséria, desinteressa-se
por outras formas de liberdade, mesmo que elas existam. Portanto não ter para
comer ou para viver dignamente é duplamente falta de liberdade, porque não pode
comer e depois porque não comendo não pode exercer as outras formas de ser
livre.
Indo directamente ao
assunto, acredita que as medidas de austeridade que têm sido impostas pelo
Governo podem pôr em causa os direitos humanos dos mais pobres?
Não tenha dúvidas. Repare que o tema dos direitos humanos é
um tema que está completamente banido do debate político nacional. Ninguém fala
dos direitos humanos. Porquê? Por um lado porque se criou uma mentalidade em
que, sabendo que estamos numa situação de emergência e de excepção, justifica
tudo, justifica apagar todos os direitos excepto o direito perante a “troika”,
o direito perante os credores, aparece como um dever para Portugal e um dever
que tem de ser respeitado a todo o custo. Os outros compromissos do Estado
perante os cidadãos portugueses estão afastados, não fazem parte do debate, não
fazem parte da equação dos diplomas dos políticos, portanto voltando à sua
questão, não tenho a mais pequena dúvida de que o problema dos direitos humanos
está completamente ausente do debate político e das preocupações nacionais,
desde que estejamos a executar o memorando de entendimento com a “troika”.
Acredita que há
solução, tanto para o sistema internacional como para Portugal?
A solução nunca é uma coisa estática, é um caminho, um
dinamismo. O que lhe posso dizer é que estamos perante um conjunto de bloqueios
que impedem que a gente pense na viabilidade de qualquer alternativa. Dou-lhe
exemplo: Temos um contexto europeu em que o poder da Alemanha é absolutamente
soberano e de um autoritarismo a toda a prova, é uma coisa que tinha de ser
tratada e se me disserem que Portugal é um país muito fraco para resolver um
problema tão grande, diria que por definição, pertencermos a um grupo de países
do Euro ou da União Europeia, dá a possibilidade de associar-nos a outros
países que também não vejam com bons olhos esta hegemonia despropositada e
infundada da Alemanha.
Por outro lado o discurso do nosso Governo tem dado razões
para pensar que o Governo faz as coisas não só porque a “troika” impõe, mas
porque o próprio Governo pensa que é por aí que temos de ir. Às vezes dizem que
não podem fazer de outra forma porque a “troika” impõe, mas normalmente o
discurso é que isto é que está certo, o caminho é por aí, e ponto final.
Trata-se de uma preferência de uma teoria económica que não
é a única que existe. Há grandes economistas no mundo fora, inclusivamente
pessoas altamente colocadas em instituições que fazem parte da “troika” que
fazem pronunciamentos ao invés do que se ouve dizer entre nós. Por exemplo este
problema de que sem investimento, sem possibilidades de crédito a pequenas e
médias empresas, sem acesso ao crédito não temos possibilidades de criar
emprego, nem crescimento económico.
Ora bem, há aqui um grande campo de discussão, há quem diga
que de facto temos grandes autoridades em matéria económica que discordam desta
forma de orientar as coisas, mas para além disso temos uma verificação prática
do que se passou nos últimos dois anos, em que a população teve por cima
medidas que trouxeram um sofrimento, que continua, e que é muitíssimo sério e
por outro lado os principais objectivos da dívida e do défice público não têm
sido atingidos de acordo com o que estava previsto.
Há aqui sinais claros de que a política foi concretamente ao
longo dos últimos dois anos um falhanço nos seus objectivos, nem assim a
“troika” e o Governo querem mudar de política, portanto dizer que não há
alternativa não é teoricamente fundado, sobretudo tendo do outro lado o
sacrifício humano, com o qual não podemos fazer experiências nem termos birras
sobre preferências sobre modelos económicos.
A Igreja Católica tem
um papel a desempenhar na promoção e defesa dos direitos humanos?
Eu sempre pensei, sobretudo a partir do Concílio Vaticano II, que quando
falamos de Igreja não podemos limitar-nos ao conceito de hierarquia. Aqui temos
claramente que distinguir a Igreja-povo dos crentes, que tem um papel igual, ou
mais exigente. Como dizia um teólogo francês, em rigor os cristãos deveriam
estar na primeira linha do combate a favor dos direitos humanos. Isto é o que
decorre da mensagem evangélica. Não tenho dúvidas, penso que a postura do Papa
Francisco, no seguimento de Bento XVI, distinguindo o papel da hierarquia, que
não é fazer política no sentido de acção política mas sim de influenciar,
através da difusão dos valores e das exigências éticas que a fé cristã coloca
na organização e no funcionamento das sociedades. Os leigos estão de mão dada
com os que não têm fé cristã, quando muito, como disse, a particularidade seria
de estarem na primeira linha da luta a favor dos direitos humanos.
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