Pode parecer estranho estar a dedicar uma secção à
evangelização quando a exortação é precisamente sobre a evangelização. Em todo
o caso, estas passagens pareceram-me particularmente interessantes.
Não me cansarei de
repetir estas palavras de Bento XVI que nos levam ao centro do Evangelho: «Ao
início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o
encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte
e, desta forma, o rumo decisivo». (#7)
Isto é fundamental e dou graças a Deus por Francisco o ter
incluído logo ao início. A grande novidade do Cristianismo no mundo é esta.
Relação. Uma relação com um Deus que é Ele mesmo relação entre Pai, Filho e
Espírito Santo. O Cristão é criado por relação para relação e não (apenas) para
cumprir rituais e seguir regras. Quem não entende isto, quem não vive isto,
está longe, muito longe de casa.
A proposta cristã,
ainda que atravesse períodos obscuros e fraquezas eclesiais, nunca envelhece.
Jesus Cristo pode romper também os esquemas enfadonhos em que pretendemos
aprisioná-Lo, e surpreende-nos com a sua constante criatividade divina (#11)
Precisamente por ser relação, Deus não pode ser reduzido a
fórmulas e preceitos. Tentamos fazê-lo à nossa própria conta e risco. Tentar
escrever sobre evangelização sem deixar estes aspectos claros seria inútil.
Evangelizar é comunicar. O que é que queremos comunicar? Isto.
Agora, sim, podemos avançar.
Todos têm o direito de
receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de o anunciar, sem excluir
ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma
alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível. A
Igreja não cresce por proselitismo, mas «por atracção» (#14)
Quantas vezes olhamos para a evangelização pelas lentes do
gosto. “Eu não gosto muito de evangelizar... não tenho muito jeito. Há quem
goste mais”, ou “Eu não tenho interesse em ouvir essa mensagem, não é o meu
género”.
Mas aqui o Papa explica que a evangelização deve ser vista
por outra lente. Dos direitos e dos deveres. Os cristãos têm o dever de
evangelizar e os não-crentes, ou não cristãos, têm o direito de ouvir a Boa Nova.
Claro que todos somos dotados de liberdade, somos livres de ignorar esse dever,
e livres de não aproveitar o nosso direito. Mas por este prisma fica claro que
um homem que vive nesta Terra e morre sem ter sido exposto à Boa Nova de Jesus
Cristo é um homem injustiçado. E se era nosso dever dar-mo-la a conhecer e não
o fizemos, poder-nos-ão ser pedidas contas disso mais tarde. Medo.
Convém ser realistas e
não dar por suposto que os nossos interlocutores conhecem o horizonte completo
daquilo que dizemos ou que eles podem relacionar o nosso discurso com o núcleo
essencial do Evangelho que lhe confere sentido, beleza e fascínio. (#34)
Uma vez ouvi o cónego João Seabra a dizer que quando uma
pessoa está fraca e com fome, devemos dar-lhe um bife. Se lhe dermos uma vaca,
de fome morrerá. Quantas vezes não atiramos vacas a quem nos pede bifes? Não é
fácil perceber a medida daquilo que o outro aguenta, mas mais vale dar pouco e
ir aumentando do que dar tudo de uma vez.
Quantas vezes não vimos pessoas que estão a começar a
aproximar-se da Igreja serem acusadas por outras de não serem verdadeiramente
cristãs porque ainda não cumprem com tudo ou ainda não conhecem tudo? O que nos
leva ao seguinte ponto...
Um pequeno passo, no
meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a
vida externamente correcta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias
dificuldades. (#44)
Temos noção do peso disto? Basicamente isto quer dizer que o
filho pródigo agradou mais a Deus no momento em que decidiu afastar-se da
pocilga, ainda longe de chegar a casa, do que o irmão mais velho o tempo todo
que lá esteve.
Ainda não? Usemos um exemplo mais radical. O Papa está a
dizer que um homossexual, por exemplo, que decide abandonar uma vida de
promiscuidade por uma relação monógama, agrada mais a Deus do que alguém que
vive uma vida pacata e feliz, num casamento harmonioso, mas que nunca tem de se
preocupar com nada. Não... não significa que Deus se contente com esse pequeno
primeiro passo. Deus quer que demos todos os passos, até à santidade. Nem quer
dizer que a nossa vida pacata e o nosso casamento harmonioso são coisas más, não
são. Quer apenas dizer que se calhar devíamos olhar com outros olhos os
desgraçados dos pecadores que nos rodeiam, só isso.
Em todo o caso, lá
somos chamados a ser pessoas-cântaro para dar de beber aos outros. (#86)
Eu li a exortação em inglês e no inglês esta passagem é bem
mais bonita, porque fala de “fontes de água vivas” [isto é, a fonte é que é
viva e não a água] e não de “homens-cântaro”. Mas independentemente disso, a
imagem é fortíssima. No deserto espiritual que é a nossa sociedade, nós, que
temos fé, somos fontes de água para os nossos irmãos? Ou somos ilhas?
Jesus cura um cego |
Entretanto o Evangelho
convida-nos sempre a abraçar o risco do encontro com o rosto do outro, com a
sua presença física que interpela, com o seu sofrimentos e suas reivindicações,
com a sua alegria contagiosa permanecendo lado a lado. (#88)
Mais uma vez, relação. O Cristianismo não se vive à
distância, exige contacto, exige proximidade. Já pensaram que praticamente
todos os milagres de Jesus são operados em proximidade? Há excepções. O servo
do soldado romano é salvo à distância... talvez tenha sido apenas para que
percebamos que Jesus era capaz. Mas de resto, Jesus desloca-se sempre, vai ao
encontro, toca, põe a mão, beija. O Cristianismo é relação e é, sobretudo desde
a Encarnação, relação humana. E os homens não se relacionam sem se tocarem.
Jesus não diz aos
Apóstolos para formarem um grupo exclusivo, um grupo de elite. Jesus diz: «Ide,
pois, fazei discípulos de todos os povos» (#113)
Contentamo-nos com os nossos movimentos, os nossos
grupinhos, os nossos bandos de amigos correligionários? Também eu. Mas não é
suposto ser assim. Desinstalemo-nos.
Se um texto foi
escrito para consolar, não deveria ser utilizado para corrigir erros; se foi
escrito para exortar, não deveria ser utilizado para instruir; se foi escrito
para ensinar algo sobre Deus, não deveria ser utilizado para explicar várias
opiniões teológicas; se foi escrito para levar ao louvor ou ao serviço
missionário, não o utilizemos para informar sobre as últimas notícias. (#147)
Este é um caso em que gostaria mesmo que o Papa tivesse dado
algum exemplo concreto. Citar a Bíblia é fácil, mas sabemos que é possível
encontrar citações para justificar muita coisa e os seus opostos. Aqui é
necessária muita formação, em primeiro lugar para os padres mas também para os
leigos.
É incrível como quando ouvimos uma passagem do Evangelho
“descascada”, bem explicada, tudo muda. Quantas vezes não lemos passagens e o
verdadeiro sentido está a passar-nos ao lado?
Na boca do catequista,
volta a ressoar sempre o primeiro anúncio: «Jesus Cristo ama-te, deu a sua vida
para te salvar, e agora vive contigo todos os dias para te iluminar, fortalecer,
libertar» (#164)
“ama-TE”,”TE salvar”; “conTigo” “TE iluminar...”. Um Deus
pessoal. Um Deus de cada um de nós. Não uma força abstracta, não uma energia
que dá equilíbrio ao universo. O nosso Deus é um Deus pessoal e esse é talvez o
maior legado que o Judaísmo deixa ao mundo.
Desejo afirmar, com
mágoa, que a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de cuidado
espiritual. A imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura à fé; tem
necessidade de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a sua amizade, a sua
bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a proposta dum caminho de
crescimento e amadurecimento na fé. A opção preferencial pelos pobres deve
traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária.
(#200)
Nunca é demais dizê-lo. A Igreja existe para isto. Para
evangelizar e comunicar Cristo e levá-lo aos outros.
Não podemos ser cristãos e evangelizar sem nos comovermos
com a pobreza material, com a fraqueza, com a fome, com a sede, com o cativeiro.
Mas o grande tesouro que temos não está nos cofres do Vaticano, é Jesus Cristo.
Tão só e mais nada.
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