Monday, 31 March 2014

“‘O Filho de Deus’ é um desafio assumido mas mal sucedido”

Transcrição completa da entrevista a Margarida Ataíde, crítica de cinema para a Ecclesia e colaboradora do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.

O que achou do filme “O Filho de Deus”?
Sempre que escrevo um artigo de cinema há duas circunstâncias que se verificam sempre. Não costumo ler muito sobre o filme antes de o ler, escolho pela programação ou por referências que tenha, mas tento não ir condicionada.

No caso de “O Filho de Deus” sei porque foi lançado há não muito tempo o DVD com a mini-série feita para televisão e que está na base deste produto, uma mesma obra do mesmo realizador, Christopher Spencer, e sabia que era um filme que ia ser lançado com um formato original feito para televisão, e que iria ser levado ao grande ecrã, o que representa já por si um grande desafio uma vez que no grande ecrã tudo é dimensionado a uma escala bastante maior, o que significa que tanto os efeitos do filme são apresentados ao espectador de uma forma mais grandiosa, de forma a envolvê-lo mais, e se há alguns aspectos de menor qualidade também são mais evidentes. São estes os desafios que o realizador tinha.

Neste caso isso correu-lhe bem, ou nem por isso?
Penso que foi um desafio assumido mas não bem sucedido. O filme contava com um orçamento muito baixo e portanto teve de se socorrer de uma equipa técnica e artística não de grande qualidade. Temos uma coisa que nos toca particularmente, porque temos o actor português Diogo Morgado a encarnar o papel de Jesus. Seria aquele a quem é feito o desafio para encarnar o verbo e penso que fica muito aquém da dimensão da personagem. Por outro lado o realizador tem como única solução para tentar dirimir essa evidência de menor qualidade que é recorrer a sequências muito fugazes, isso não ajuda à impressão e transmissão da mensagem e do texto ao longo do filme.

Na altura da mini-série houve muitas críticas, algumas boas e outras más. Pode-se dizer que estamos perante uma ideia que funciona bem em DVD mas não no grande ecrã?
Poderia ser isso. Qualquer realizador interessa-se pela figura de Jesus e pela proposta da própria Bíblia e pode, eventualmente, olhar Jesus e tentar interpretá-lo à sua forma, ou recontar a sua experiência de relação com aquela figura, não o pode fazer de forma abusiva. Não pode perverter o que está no fundamento daquela pessoa, Deus tornado homem.

O que acontece neste filme é que, sendo Jesus aquele que se fez próximo de nós, que estabelece uma relação próxima de nós, de tal forma que vem a nós também como homem, todo o filme, ao assentar na ideia que Jesus traz o poder, e são permanentes as referências, isto são perversões do próprio texto bíblico, daquilo que é a narrativa bíblica e portanto ultrapassam o facto de ser um formato grande ou pequeno ou de ter menos ou mais qualidade. É uma interpretação abusiva.

Temos assistido a vários filmes nos últimos anos que recuperam temas bíblicos. Tem havido uma maior atenção a temas especificamente religiosos do que era normal há uns anos?
Temos de fazer uma distinção entre a produção cinematográfica e o cinema que circula e que é representado em sala. Para além de um investimento, de uma produtora, de um produto que procura fazer o circuito comercial, que tem de ter rentabilidade, daquele que é feito por realizadores e criadores independentes, por sua iniciativa, que perscruta um pouco alguns temas que são de carácter religioso ou de matéria de fé, ou que questionam o sentido da vida e isso também perpassa por este Deus como o conhecemos... talvez a nível comercial sim, talvez.
 
Não diria que existe um maior interesse, talvez haja uma abordagem diferente e nesse sentido talvez ultimamente, nestes anos, e agora com este caso de “O Filho de Deus” e o que me parece que acontece um pouco com “Noé”, é que são narrativas que se aproximam mais do estilo narrativo utilizado nos grandes obras bíblicas dos anos 40 e 50, mais do que obras em que um criador de cinema interpela uma questão de fé mais como um diálogo individual, aqui tem esse carácter mais público e comercial.

Mas a nível de temas religiosos no substrato de filmes que não são explicitamente religiosos, isso tem sido mais uma constante?
Sim, no circuito comercial penso que sim.

A nível de filmes recentes que talvez tenham escapado ao circuito comercial, ou mesmo estando no circuito comercial tenham essa linguagem mais escondida, o que é que a marcou mais nos últimos anos?
Um dos filmes que me marco mais, por várias razões, foi um filme de uma jovem realizadora italiana chamado “Corpo Celeste”, que tive oportunidade de levar ao sétimo simpósio do clero, em Fátima, exactamente por ser um filme feito por uma realizadora não católica, que terá passado pela catequese e que conta a história de uma menina chamada Marta que vem com a sua mãe e com a sua irmã da Suíça e retorna a uma cidade suburbana, periférica, da região sul de Itália.

Esta menina inicia o seu percurso de crisma na catequese da Igreja. É uma criança que está em transformação, na adolescência, e procura um encontro com Cristo que não consegue fazer através da catequese. Aqui o interesse da realizadora é ela própria questionar um caminho possível de fé, é um olhar de fora da Igreja para dentro, sério e tocante, em que se acompanha o percurso da menina, que convive com um grupo em que não se sente integrada, porque tudo o que a catequista lhe transmite, com a sua melhor intenção e bondade, não é suficiente para tocar o seu coração e para ela perceber o mistério de Deus em si.

Ela faz o percurso do Crisma e não faz esse encontro, e acaba por conseguir fazê-lo de uma outra forma que não é totalmente à margem da Igreja, mas que não é com aquele tipo de resposta que lhe foi dada. Foi dos filmes mais sérios que vi. Passou um pouco despercebido... Também por ter sido distribuído por uma pequeníssima distribuidora portuguesa, resultado do investimento de um jovem, também realizador e também não-católico, mas que teve este interesse e é aí que digo exactamente que há muitas pessoas que passam despercebidas nesse interesse e nessa curiosidade que suscita temas que podem ser de fé, ou religiosos.

Do cinema português, esse interesse também se tem manifestado?
A distinção entre os temas religiosos e do sentido da vida é realmente importante. Existem alguns filmes que revelam um interesse pela procura de algo transcendente, algo que é muito próximo da designação e nomeação de Deus como nós o entendemos, algo que desperta no íntimo de um realizador e que o leva a procurar qualquer coisa mais adiante, distingo da questão religiosa porque não é revestido da formalidade e de preceitos religiosos, mais públicos e mais formais.

Encontramos, sim. Os prémios Árvore da Vida que têm sido distribuídos no IndieLisboa, por exemplo, são prova disso. Há muitos filmes que se aproximam de Deus mesmo sem O nomear, que se aproximam muito dessa busca e que revelam esse interesse.

O Cinema é um meio privilegiado para tocar as pessoas neste campo?
Se sair daqui e descer ao Cais do Sodré e contemplar o rio pela frente, na sua imensidão e beleza, fica tocado não só pelo olhar que transmite, mas sobretudo pelo que o rio e a beleza dizem no mais íntimo de si. O cinema tem exactamente essa capacidade de exprimir essa beleza de uma forma até grandiosa, ao mesmo tempo tocando no mais íntimo de nós. Penso que é nestas duas dimensões que o cinema, como cinema, se cumpre.

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