Transcrição integral da entrevista ao bispo D. Nuno Brás,
sobre os 450 anos do concílio de Trento. Notícia
aqui.
Que peso é que o
Concílio teve para a Igreja?
O Concílio de Trento é um marco essencial na história da
Igreja em primeiro lugar porque responde a um desejo de reforma de há muitos
séculos. O concílio reuniu-se em 1545, mas há várias dezenas de anos que havia
este desejo de reforma. É óbvio que a reforma protestante, todo o drama de
Lutero, toda a essa questão, veio de certo modo apressar e mostrar a inevitabilidade
do concílio, mas o concílio abordou, praticamente, todos os âmbitos da Igreja,
seja de disciplina seja doutrinais, fez uma revisão completa disciplinar e
doutrinal do que é a Igreja Católica. Muitas das realidades que hoje vivemos
foram fixadas claramente nessa altura.
Na sua opinião qual
das decisões do concílio teve mais impacto?
Temos por exemplo em termos pastorais a obrigatoriedade dos
bispos e párocos residirem nas dioceses e nas paróquias, que era uma coisa que
até essa altura não existia. Temos a criação dos seminários, que também não
existiam.
Depois, em termos doutrinais, a fixação clara daquilo que é
a Sagrada Escritura, quais os livros que fazem parte da Sagrada Escritura. Isso
foi claro sempre, mas havia algumas dúvidas concretamente acerca do livro do
Apocalipse, da parte dos protestantes acerca da epístola de Santiago. O
Concílio decide isso claramente e diz quais são os livros que fazem parte.
Depois, toda a questão da justificação. Como é que nos
relacionamos com Deus, qual é o lugar da Graça e qual a do Ser Humano, uma das
realidades colocada em causa pela reforma protestante. Há uma série de matérias
doutrinais, que o concílio fixa, por exemplo, em termos da presença real de
Jesus na Eucaristia. Das questões disciplinares, nem todos ainda colocados em
prática. O Concílio fez uma reforma geral do que era a Igreja Católica naquela
altura.
Havia dúvidas sobre
as questões doutrinais, ou foram apenas reafirmadas?
Trata-se de reafirmar aquilo que sempre foi a tradição, o
ensino apostólico, mas de o reafirmar claramente e de colocar um ponto final em
várias discussões em termos de interpretação sobre essas questões. É óbvio
depois do concílio que o próprio texto precisa de ser interpretado e por isso
mesmo surgiram depois outros elementos de debate, que faz sempre parte da vida
da Igreja. E existem realidades sobre as quais o concílio não se pronuncia, ou
deixa portas em aberto.
Mas sim, trata-se de reafirmar o que foi sempre o ensino
apostólico mas de colocar muitas vezes pontos finais em relação às discussões.
Ou então, caso isso não fosse possível e caso as discussões não estivessem
amadurecidas suficientemente, deixar essas realidades em aberto de forma que
outros concílios pudessem depois pronunciar-se acerca disso.
Várias das decisões
surgem em consequência do ambiente da reforma protestante. Pode-se dizer que o
sínodo aprofundou as divisões, tornando-as inconciliáveis?
O Concílio já foi celebrado numa altura em que era clara a
divisão. Depois, coloca claramente a posição católica, em resposta àquilo que são
as posições luteranas e calvinistas.
Enquanto coloca a doutrina clara e mostra a realidade
daquilo em que a Igreja acredita em termos doutrinais, sem margem para dúvidas,
pelo menos em muitas partes, nesse sentido podemos dizer que sim.
Mas o concílio não teve nunca o propósito de alargar o
fosso, o pensamento dos padres de Trento foi de dizer qual é a fé da Igreja
Católica, no sentido de permanecer na verdade daquilo que é a fé apostólica.
Não foi nunca de dizer “bom, os irmãos reformados pensam assim, nós temos de
pensar ao contrário”. Aliás, há muitas coisas em que o concílio e Lutero estão
muito próximos.
É interessante que muitos dos documentos acerca da
justificação, que foram assinados há relativamente pouco tempo com os
protestantes, retomam o que é a intuição de Trento. Ou seja, Trento não teve
como preocupação afundar o fosso que separava, teve como preocupação mostrar o
mais claramente possível, tanto quanto se podia na altura, dizer de forma clara
aquilo que é a fé dos apóstolos.
Pode-se dizer que o
concílio, aliado ao ambiente de contra-reforma que se vivia na altura, levou a
um certo desequilíbrio na prática católica? No campo da revelação e tradição,
por exemplo?
É importante tomarmos consciência de que os primeiros
decretos do Concílio são precisamente sobre a revelação e a tradição, acerca da
Sagrada Escritura. Podemos dizer que se os reformados dizem que a revelação
está toda contida na Sagrada Escritura, Trento diz que a revelação está toda
contida em Jesus Cristo, naquilo a que Trento chama O Evangelho, na linha da
carta de São Paulo aos romanos.
Algumas leituras de Trento, de facto, marginalizaram de
certa forma, pelo menos na piedade do católico normal, nunca na reflexão
teológica, propriamente, mas na piedade católica corrente, marginalizaram por
vezes a Sagrada Escritura, que o Concílio Vaticano II retoma e reafirma, mas o
Concílio Vaticano II retoma e reafirma precisamente na sequência de Trento. Portanto a questão
não foi tanto Trento, foi a leitura que depois na prática se fez, seja de
Trento, seja da própria dialéctica entre católicos e protestantes.
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