Friday 29 September 2023

Tragédia para cristãos no Iraque e Nossa Senhora do Rugby

Começo com uma tristíssima notícia. Mais de cem pessoas terão morrido num incêndio que deflagrou durante a festa de um casamento, no norte do Iraque. Porque é que esta notícia diz respeito à Actualidade Religiosa? Porque atingiu precisamente a já frágil e sofredora comunidade cristã daquele país, embora a maioria dos órgãos de comunicação social – certamente por ignorância e não por preconceito – não o tenham referido. Aqui explico porque é que este é mais um golpe duro para os cristãos iraquianos.

É já no sábado o consistório que elevará D. Américo Aguiar a cardeal. Em princípio eu estarei na SIC Notícias de manhã para comentar o assunto, e sairá um artigo no Expresso sobre o Colégio dos Cardeais depois desta nova remessa criada por Francisco, fiquem atentos e para a semana envio links. Entretanto, o novo bispo de Setúbal deu uma entrevista em que faz um balanço da JMJ.

Infelizmente, as minhas previsões sobre a tragédia humanitária e limpeza étnica em Nagorno Karabakh estão a realizar-se. Mais de metade da população arménia daquele enclave já se refugiou na Arménia propriamente dita. É o fim de uma cultura milenar, num dos berços e últimos redutos do Cristianismo na região do Cáucaso.

A selecção portuguesa de rugby está a entusiasmar e domingo tem um novo teste de fogo contra uma Austrália aparentemente enfraquecida. O rugby é o tema do meu mais recente artigo no The Pillar. Mas o que é que o rugby tem a ver com religião, perguntam? Pois perguntam muito bem. Talvez Nossa Senhora do Rugby possa esclarecer.

O caso do Pe Rupnik continua a dar que falar e agora tem uma nova dimensão portuguesa. Saibam tudo aqui.

E o Papa esteve em Marselha para uma visita relâmpago, onde falou sobretudo da importância de tratar os migrantes como pessoas plenas de dignidade.  

E não deixem de ler o artigo desta semana do The Catholic Thing em que Stephen White explica porque é que um dos grandes problemas da nossa sociedade é o facto de termos perdido a noção do pecado.

Wednesday 27 September 2023

Eis o Homem

Costuma-se dizer, embora não tanto como se deve, que um dos males dos nossos dias é a perda do sentido de pecado. O Papa Pio XII disse isto mesmo num famoso discurso radiofónico aos catequistas, em 1946, e o Papa Francisco já repetiu a mesma ideia mais que uma vez, comparando a hipocrisia de alguns cristãos à do Rei David, incapaz de ver o seu próprio pecado até que o profeta Natã o colocou diante dos olhos: “Esse homem és tu!”

De tempos a tempos todos nós precisamos de ser abanados e acordados da nossa própria cegueira e complacência. Nas palavras do Papa Francisco: “Que o Senhor nos dê a graça de enviar sempre um profeta – pode ser um vizinho, um filho ou filha, uma mãe ou um pai – para nos dar umas palmadinhas quando cairmos para um mundo em que tudo parece ser legítimo.”

É isto mesmo.

Talvez possamos ir mais longe e aplicar isto não só ao reconhecimento da nossa cegueira para com as nossas próprias falhas, mas também à sabedoria para rezar por correcção. Ser cego por causa dos nossos pecados, incapaz de os ver, como David, é uma coisa. Mas perder a noção de que as nossas acções podem ser julgadas por alguém, de acordo com um qualquer padrão que nos ultrapassa, é outra.

A correcção fraterna pressupõe a existência de fraternidade. Este tipo de correcção requer um sentido de responsabilidade e confiança mútua entre as partes (como se esperaria encontrar entre irmãos). Mas a um nível mais básico (quase pedante), a correcção fraternal pressupõe um sentido partilhado da própria natureza e fonte da fraternidade: os irmãos são-no porque partilham um mesmo pai.

Por isso, um cristão poderá ser convencido da necessidade de se arrepender quando lhe forem reveladas as formas como se desviou da lei de Deus ou da lei da Igreja. Mas isso depende do reconhecimento prévio por parte do pecador da existência dessas mesmas leis, e um desejo, por mais imperfeito que seja, de viver de acordo com elas.

E a pessoa que não reconhece tais leis, ou a autoridade que as sustenta? E a pessoa que acredita que o mal é na verdade o bem? E a pessoa que não conhece o Pai e nega os ensinamentos da nossa Mãe, a Igreja? Tal pessoa não está para além da esperança da misericórdia e do arrependimento, como é evidente, mas o apelo à lei (a lei de Deus, a lei da natureza, a lei da Igreja ou até a lei do homem), cuja autoridade ele não reconhece, dificilmente a levará ao arrependimento.

Em tais casos a perda do sentido do pecado não é apenas a incapacidade de ver o meu próprio pecado, mas a perda da possibilidade de reconhecer que o pecado é pecado sequer. Se perdemos Deus de vista, se perdemos de vista o bem do qual o pecado é um afastamento ou uma negação, então a própria categoria de pecado (para não falar de fraternidade) deixa de ter qualquer sentido.

É interessante notar como chegámos à beira daquilo que Nietzsche entendeu quando observou que “se nada é verdade, tudo é permitido”, razão pela qual descrevia o seu projecto filosófico – aliás, a si mesmo – como “Dionísio versus o Crucificado”.

E isto parece-me ser muito mais próximo daquilo que o Papa Pio XII tinha em mente quando falou da perda do sentido de pecado nos meses imediatamente a seguir aos horrores da Segunda Guerra Mundial. O remédio que o Papa Pio propôs não era, pelo menos numa primeira instância, recordar o mundo da lei moral de que se tinha esquecido, ou que tinha negado. Antes, o remédio encontrar-se-ia no Cristo Crucificado. Nele, a realidade do pecado é colocada em bruto contraste com aquele amor que todo o pecado ofende.

Vale a pena voltar a olhar para o discurso de Pio XII de 1946, onde regista o seu lamento pela perda do sentido de pecado exactamente neste contexto:

Conhecer Jesus crucificado é conhecer o horror de Deus ao pecado; a sua culpa apenas pôde ser purificada no precioso sangue do Filho unigénito de Deus, feito homem.


Talvez o maior pecado no mundo hoje seja o facto de os homens terem começado a perder o sentido do pecado. Se isso for abafado, entorpecido – porque não pode ser totalmente extirpado do coração do homem – se for impedido de ser despertado por qualquer vislumbre do Deus-homem a morrer na cruz do Calvário para pagar a pena do pecado, que restará para impedir as hordas dos inimigos de Deus de dominarem o egoísmo, orgulho, sensualidade e ambições desmedidas do homem pecaminoso? Bastará a mera legislação humana? Os acordos ou os tratados?

Não vivemos num mundo em que os corações e as consciências do homem podem ser facilmente tocados pelos apelos à autoridade, nem mesmo à autoridade de Deus. Mesmo dentro da Igreja, entre os baptizados, nem sempre é eficiente apelar à autoridade da doutrina ou à Divina Revelação. Poderíamos desejar que não fosse assim, mas é.

O que nos resta, portanto, é proclamar a Boa Nova de uma forma que o mundo ainda consiga entender. Se os apelos à autoridade não tiverem adesão, então resta um caminho que é tão convincente hoje como sempre foi. Ouçamos novamente Pio XII.

No Sermão da Montanha, o divino Redentor iluminou o caminho que conduz à vontade do Pai e à vida eterna; mas do cadafalso do Calvário flui a torrente sempre plena e constante de graças, de força e de coragem, a única que permite ao homem trilhar esse caminho com um andar firme e certo. 

Esse percurso é nos revelado por aquele que o trilhou antes de nós – embora ele não tenha precisado de um Natã para o corrigir – aquele sobre quem Pilatos falava quando clamou: “Eis o Homem”. Nada condena mais o pecador que o amor incomensurável de Deus. Nada penetra até ao cerne da consciência do homem mais do que a própria misericórdia de Deus. E a força e a coragem para percorrer esse caminho jorram até nós desde cima.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 21 de Setembro de 2023)

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The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing



Tragédia em casamento cristão no Iraque

Mais de 100 pessoas morreram num incêndio que deflagrou durante uma festa de casamento no norte do Iraque, na terça-feira, e outras 150 ficaram feridas.

A tragédia aconteceu na cidade de Qaraqosh, também conhecida como Baghdeda, ou Bakhtida, que tem a particularidade de ser a única cidade 100% cristã do Iraque. Embora existam cristãos de diferentes ritos e igrejas na cidade, este parece ter sido um evento da comunidade Siríaca Católica (e não a ortodoxa, como erradamente afirmei de início).

Um acidente destes é sempre uma enorme tragédia, não há vidas mais valiosas que outras, mas este incidente tem a dimensão acrescida de representar mais um grave golpe contra a comunidade cristã do Iraque.

Qaraqosh sempre foi um símbolo para a comunidade cristã deste país. O facto de serem maioria permitiu aos cristãos daqui manterem as suas tradições e costumes durante os anos de caos que se seguiram à invasão americana de 2003. Podiam praticar a sua religião sem qualquer medo ou restrição.

O primeiro grande teste para Qaraqosh veio com a ascensão do Estado Islâmico. A cidade foi ocupada pelos jihadistas quando varreram a região em torno de Mossul, mas todos os cristãos conseguiram fugir. Contudo, a instabilidade geral e o medo de que a situação se possa repetir no futuro levaram muitos cristãos a preferir emigrar, ou a permanecer no Curdistão Iraquiano, que é mais seguro e estável.

Os cristãos que regressaram a Qaraqosh são aqueles que resistiram, são aqueles que não quiseram, ou não puderam, sair do país. São, numa palavra, a esperança para o futuro do Cristianismo no Iraque.

Que 100, ou mais, dos membros dessa comunidade tenham morrido num acidente desta natureza é mais do que um desperdício de vidas, é um ataque a essa mesma esperança, mais uma razão na já longa lista de razões para simplesmente desistirem e saírem para a Europa, América do Norte ou Austrália, onde de geração em geração os seus costumes, práticas, língua e espiritualidade se vão dissipando.

Rezemos pelos cristãos do Iraque que, mais uma vez, enfrentam o desespero e a morte. Que Deus lhes dê coragem para resistir, que a luz do Evangelho se mantenha naquele país. E que Deus dê eterno descanso às vítimas deste incêndio, e a graça da recuperação aos feridos.

Friday 22 September 2023

D. Américo em Setúbal e Adeus Nagorno Karabakh

Acaba de ser anunciada oficialmente a nomeação de D. Américo Aguiar para bispo de Setúbal. Aqui encontram a minha análise a esta nomeação, e aqui podem ver o novo brasão do futuro cardeal.

As autoridades de Nagorno Karabakh apresentaram ontem a sua rendição às forças do Azerbaijão que sitiavam o território há meses e que nos últimos dias lançaram ataques em larga escala. Salvam-se assim muitas vidas, que sem dúvida se perderiam se a guerra continuasse, mas a perda em termos de património histórico e cultural é incalculável. Este é um tema que me é caro porque eu já estive em Nagorno Karabakh. Andei pelas trincheiras que agora foram ocupadas, visitei monumentos que agora muito provavelmente serão destruídos, conheci pessoas que estão agora a ver se conseguem fugir. Neste texto tentei retratar um pouco do que se está a passar, explicando, por exemplo, porque é que isto é uma derrota também para a Rússia e até, de certa forma, para o Vaticano.

De Moçambique chega a notícia de mais um massacre de cristãos na província de Cabo Delgado.

E por tudo isto, pela Ucrânia, por Nagorno Karabakh, por Moçambique e tantos outros sítios onde as armas não se calam e o ódio move as pessoas, devemos unir-nos mais uma vez à iniciativa da fundação Ajuda à Igreja que Sofre de pôr um milhão de crianças a rezar o terço, no dia 18 de Outubro. Todos os anos chega-se um pouco mais perto desse número. Desafie os seus filhos, netos e amigos. Toda a informação aqui.

Não percam ainda o artigo desta semana do The Catholic Thing, no qual Francis X. Maier nos desafia a desligar-nos um pouco mais das redes, libertando-nos da dependência da tecnologia que nos rodeia. Tomem o comprimido encarnado.

Thursday 21 September 2023

D. Américo nomeado bispo de Setúbal

Foi hoje anunciada oficialmente a nomeação de D. Américo Aguiar para bispo de Setúbal. Chegam assim ao fim duas sagas: a de saber para onde iria, afinal de contas, o futuro cardeal, e a da diocese de Setúbal, que está sem pastor há mais de 600 dias.

Podemos pensar num bispo como uma mera figura de proa para um sistema bastante bem montado, e que até pode funcionar sozinho – afinal de contas, Setúbal está há quase dois anos com um administrador apostólico em vez de um bispo e as coisas vão andando – mas isso seria um terrível erro. Ou pelo menos devia ser.

Um bispo faz muita falta a uma diocese, como ponto de referência para os seus fiéis e, sobretudo, como ponto de referência e de concórdia para os seus padres. Faz falta quem determine um rumo; faz falta quem congregue as ovelhas, que de outro modo tendem a dispersar.

Sem ir mais longe, reparemos que Setúbal esteve sem bispo durante todo este tempo em que a Igreja teve de enfrentar a crise dos abusos sexuais, quando mais era preciso haver vozes firmes para conduzir uma Igreja local ferida, magoada, revoltada e com medo. Quando mais era preciso colocar alguma ordem, precisamente nesse assunto, cujo tratamento em Setúbal tem deixado muito a desejar.

Também por todas as razões elencadas acima, não basta uma diocese ter um bispo, tem de ser um bom bispo. Um bispo que não seja apenas um burocrata. Setúbal, depois de tudo o que passou, merece um bispo activo, capaz e comprometido com o seu rebanho.

D. Américo tem potencial para fazer um bom trabalho em Setúbal e para ser essa figura, e assim espero que seja.

É verdade que ele não é a pessoa mais consensual do mundo, mas há boas razões para pensar que as dificuldades que sentiu em Lisboa não se repetirão na sua nova diocese.

D. Américo entrou em Lisboa como o braço direito de D. Manuel Clemente, que trabalhou com ele quando foi bispo do Porto. Ao contrário de D. Manuel, que regressava a uma casa onde era já conhecido e estimado, o então Padre Américo vinha de fora com aura de protegido e com atitude de cão de guarda do pastor (o termo é dele, e não meu). Isso não caiu bem entre muito do clero lisboeta.

Desde cedo começou a coleccionar cargos. Desde presidente do Conselho de Administração da Renascença – uma máquina influente e enorme, mas fragilizada e a precisar de reformas corajosas e urgentes – a homem de ponta para lidar com a crise dos abusos e, mais tarde, arquitecto daquele que foi simplesmente o maior evento que Portugal alguma vez recebeu, e alguma vez receberá.

Entretanto foi nomeado bispo auxiliar de Lisboa. Bispo auxiliar é um cargo complicado, não é carne, nem é peixe. É bispo, certo, mas não é a cabeça da diocese, nem é visto como tal pelo clero. Sei que muitos padres ficaram desagradados com a forma como ele exerceu esse cargo, nomeadamente na relação com o clero, agindo como seu superior – que era, hierarquicamente – o que foi interpretado por alguns como uma usurpação da autoridade do Patriarca.

Agora D. Américo não terá esse problema. É ele o pastor de Setúbal e espera-se mesmo que se comporte como tal. Sobretudo porque Setúbal precisa urgentemente de alguém que ponha ordem na diocese e consiga resolver problemas complicados, incluindo financeiros, que ela enfrenta. D. Américo pode ter muitos defeitos, mas é um homem de acção e que gosta de ter a “mão na massa”, o que aqui será um enorme benefício.

O novo bispo de Setúbal chega “em alta”, tendo sido a face do enorme sucesso que foi a Jornada Mundial da Juventude e entrará oficialmente na diocese já como cardeal, o que não deixa de constituir uma enorme honra para uma diocese que tem menos de 50 anos. 

Todos os caminhos iam dar a Roma…

O que nos leva à segunda questão. Então e Roma?

Durante meses era dado como certo que D. Américo estaria a caminho de um cargo na cúria romana, a pedido específico do Papa Francisco. O que é que terá acontecido? Não sei, mas não se pode excluir que o próprio D. Américo tenha preferido ficar em Portugal, numa diocese onde pode desenvolver uma acção mais directa e no terreno, do que num gabinete no Vaticano. Se assim for é bom sinal, pois revela ausência de carreirismo.

Pode ter contribuído para isso o facto de o futuro cardeal não dominar línguas estrangeiras, nomeadamente o italiano, que é essencial para conseguir trabalhar em Roma.

O que espero, sinceramente, é que D. Américo não esteja a prazo em Setúbal. Não digo que tenha de lá ficar a cumprir o mandato até aos 75 anos, mas pelo menos tempo suficiente para traçar um plano de acção e o concretizar, tempo para lançar raízes e deixar trabalho feito. A passagem relâmpago de D. José Ornelas não deixou especiais saudades aos setubalenses e a última coisa de que precisam é de um bispo que dê ares de estar simplesmente a pousar antes de partir para voos mais altos.

D. Américo é novo, só faz 50 anos em Dezembro. Tem mais que tempo, ainda, para fazer um bom trabalho na sua nova diocese. E o facto de ser cardeal significa que certamente terá também cargos em Roma que o obriguem a viajar e a pôr a render os talentos que Francisco reconheceu nele.

Adeus Artsakh

Em 2016 viajei com um grupo de jornalistas para o enclave de Nagorno Karabakh. Fomos primeiro para Yerevan, na Arménia, e de lá era suposto seremos levados de helicóptero para Stepanakert. Por causa do mau tempo, porém, tivemos de partir de autocarro por volta da 1h00, para fazer quase cinco horas de estrada, sempre com curvas e a subir montanhas.

Chegámos de madrugada à autoproclamada República de Artsakh, um território historicamente povoado por arménios, dentro do Azerbaijão. Quando a União Soviética se desintegrou, os Arménios de Karabakh, que era administrada pelo Azerbaijão, declararam independência, o que conduziu a uma guerra. Foram cometidas atrocidades de parte a parte, morreram famílias inteiras, mas os arménios venceram e consolidaram o seu controlo sobre a região. Declararam uma independência que nunca foi reconhecida por ninguém, nem sequer pela Arménia, e assim viveram durante 30 anos, rodeados de inimigos, ligados ao mundo exterior apenas pelo corredor de Lachin, que lhes permitia ter acesso à Arménia.

Em Karabakh assistimos às comemorações dos 25 anos da "independência", junto ao cemitério militar. Uma das coisas mais impressionantes da viagem foi mesmo ver as inúmeras campas de soldados mortos ao longo dos anos a defender aquela terra. Num caso em particular estavam três irmãos que morreram na mesma batalha, outros tinham imagens gravadas no mármore dos mortos fardados e de arma na mão; visitámos ainda a linha da frente, onde recebi de um oficial um Novo Testamento arménio, camuflado, e fomos ao famoso monumento "Nós somos as nossas montanhas" que é o símbolo de Artsakh. Os arménios de Karabakh queriam mostrar-nos que estavam a defender mais que um país, estavam a lutar por uma herança, pela terra onde tinham vivido e morrido os seus antepassados, ao longo de séculos, e que contra todas as expectativas estavam a conseguir fazê-lo.

Tudo isso acabou ontem.

Depois de anos a rearmar-se e a incentivar um ódio étnico e cultural aos arménios, e com o apoio imprescindível da Turquia, o Azerbaijão voltou a atacar Karabakh, como tem feito sempre por esta altura do ano, ao longo dos últimos dois anos. Desta vez, com o corredor de Lachin bloqueado por alegados activistas ambientais, sabendo que a Arménia não se iria comprometer com uma guerra total contra os azeris, e sem o apoio da Rússia, as autoridades de Nagorno Karabakh anunciaram a sua rendição. Artsakh morreu.

Estão neste momento a ser negociadas as condições da rendição, mas o que se avizinha é previsível. A perseguição dos arménios que não fugirem – do aeroporto de Stepanakert já chegam as imagens de caos que acompanha sempre estes momentos – e o apagamento sistemático da milenar herança cultural e religiosa arménia da região.

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, perguntei neste texto o que aconteceria se Moscovo perdesse a guerra, acrescentando que perder a guerra, neste contexto, era tudo o que ficasse aquém da ocupação de Kiev em três dias. Uma das minhas previsões era exactamente a tragédia que agora se está a desenrolar à nossa frente.

Mas esta é também, de certa forma, uma derrota diplomática para o Vaticano. Em 2016 Francisco visitou tanto a Arménia como o Azerbaijão. O objectivo era tentar promover a pacificação. Mais recentemente o cardeal Parolin também esteve em missão entre os dois estados para tentar impedir o recrudescimento do conflito. Ao menos tentaram, mas sem sucesso.

Karabakh não é apenas mais um território. É para os arménios o que Guimarães é para Portugal, o que o Kosovo é para os Sérvios (outros cuja dependência do amigo Putin de pouco lhes tem valido). Independentemente do direito internacional, que de facto reconhece a região como parte do Azerbaijão, o que se está a passar ali é uma dor de alma. É o coração de um povo que está a ser arrancado e esmagado diante dos seus olhos.

É também o recordar de tragédias colectivas do passado. Os azeris são turcomanos, e existe uma expressão na Turquia e no Azerbaijão: Um povo, dois estados. Por isso mesmo, e pela importância da mão de Erdogan nisto tudo, os arménios sentem que este é apenas mais um capítulo do terrível genocídio de 1915.

Como me disse um arménio quando estive lá em 2016: “Em 1915 mataram os arménios ocidentais, agora querem acabar o trabalho”.

"They protect the land" - Música dedicada a Nagorno Karabakh pela banda System of a Down, constituída por arménios americanos

Wednesday 20 September 2023

Toma o Comprimido

Francis X. Maier
O momento mais icónico do cinema do final dos anos 90 é a escolha que Neo tem de fazer no primeiro filme da série Matrix. Para quem não se lembra, o Matrix retrata um futuro em que os seres humanos vivem num mundo ilusório de aparente normalidade, mas na realidade cada pessoa está a flutuar num banho de narcóticos, administrado por máquinas sencientes. Os humanos criaram as máquinas e dotaram-nas de inteligência. Depois as máquinas escravizaram os humanos, que agora são usados como fontes vivas e anestesiadas de energia.

O enredo é bastante simples. Neo (um anagrama para “One”, o escolhido) é um programador e hacker que sente que há algo indefinível de errado no tecido da vida diária. Neo é contactado online por membros de uma resistência humana que procuram destruir as máquinas. Estes dão-lhe a escolher entre dois comprimidos. O azul levá-lo-á de volta aos prazeres da sua realidade imaginada, sem qualquer memória do que se passou. O encarnado abre-lhe os olhos para a dura verdade. Neo toma o comprimido encarnado e liberta a sua mente. Acabará por se tornar, para todos os efeitos, o salvador da humanidade.

Escrito e realizado pelos Irmãos Wachowski (actualmente, graças ao “milagre” dos medicamentos hormonais e de cirurgia, as Irmãs Wachowski) o filme é uma mistela de génio imaginativo, messianismo bíblico e misticismo oriental, que captura de forma perfeita o custo de o homem brincar ao Aprendiz de Feiticeiro; o custo de sobrestimar a nossa sabedoria e subestimar as consequências das ferramentas que criamos.

Aquilo a que chamamos progresso vem sempre com um senão. Se a tecnologia nos dá, também nos tira. A escrita permite gravar os nossos pensamentos, mas como Platão argumentou, também enfraquece a memória. O automóvel transporta-nos mais depressa, mas também polui a atmosfera. É o mesmo com qualquer nova tecnologia. 

E no mundo do Matrix esta nova ferramenta tira tudo, a começar pela liberdade e dignidade humana. As máquinas alimentam-se, literalmente, da vida e da energia das suas vítimas iludidas, tal como os ídolos pagãos, naturalmente vazios, vampirizam a vida dos seus idólatras.

Claro que o Matrix é ficção científica. É apenas uma história, muito longe do mundo em que vivemos aqui e agora. Mas talvez não tão longe como gostaríamos de pensar. Consideremos o seguinte trecho, escrito à menos de dois anos:

Às vezes fico acordado à noite, ou deambulo pelo campo atrás da minha casa, ou passeio pela rua da vila em que vivo e penso que a consigo ver toda a volta: a rede. As veias e tendões da máquina que nos rodeia, que nos paralisa e que agora nos sustenta e nos define. Imagino uma espécie de rede de fios luminosos no ar, brilhando como uma teia de aranha coberta de orvalho ao nascer do sol. Imagino os cabos e as ligações de satélites, os filmes e as palavras e os discos e as opiniões, os nós e os centros de dados que rastreiam e registam os detalhes da minha vida. Imagino a malha criada pelas transacções bancárias e as compras, os pedidos de passaporte e as mensagens enviadas. Vejo esta coisa, seja o que for, a ser construída, a construir-se à minha volta, vejo-a a erguer-se e a apertar o punho, e vejo que nenhum de nós a pode impedir de evoluir para se tornar o que seja que se está a tornar.

Vejo a Máquina, a zumbir gentilmente para si mesmo enquanto nos prende com as suas ofertas, seduzindo-nos com as suas promessas enquanto nos puxa devagarinho para dentro. Penso sobre as partes com que interagimos diariamente, a interface brilhante e branca à qual revelamos voluntariamente cada detalhe das nossas vidas em troca de informação, ou prazeres, ou histórias contadas por corporações globais de entretenimento que mercantilizam a nossa cultura para no-la revender. Penso nas palavras que usamos para descrever esta interface, que carregamos nos nossos bolsos para todo o lado, que nos rastreia em cada rua, em cada floresta que ainda existe: a teia [web], a rede.

E penso: Isto são coisas concebidas para apanhar presas.

Trata-se de uma passagem da extraordinária série de ensaios The Tale of the Machine, escrito pelo autor britânico Paul Kingsnorth, que recentemente se tornou cristão (ortodoxo). Este ensaio em particular chama-se You Are Harvest, e foi publicado em Outubro de 2021. É leitura importante, como toda a série. O seu site no Substack, The Abbey of Misrule, está ao nível do The Upheaval de N.S. Lyon e de Archedelia de Matthew B. Crawford, alguns dos melhores comentários culturais disponíveis actualmente.

Devemos evitar a tentação de achar que Kingsnorth está meramente a ser alarmista ou excessivo. O grande filósofo e teólogo protestante francês Jacques Ellul disse o mesmo e ainda mais em A Sociedade Tecnológica, há quase 70 anos.

Ellul argumentava que a adição moderna à tecnologia enquanto panaceia leva inevitavelmente o “estado a tornar-se totalitário, a absorver completamente as vidas dos seus cidadãos. Mesmo quando o estado é liberal e democrático, não pode se não tornar-se totalitário. Pode fazê-lo directamente, ou como no caso dos Estados Unidos, através de interpostas pessoas. Mas independentemente das diferenças, todos os sistemas acabam por chegar ao mesmo resultado.” O adolescente médio americano passa agora até nove horas por dia a olhar para ecrãs. Isso tem consequências psicológicas, logo sociais, logo políticas.

No Matrix o despertar de Neo para a realidade implica desligar-se literalmente das máquinas e suportar uma recuperação dolorosa, embora salvífica. Paul Kingsnorth livrou a vida diária da sua família de grande parte do casulo narcótico de alta tecnologia. (Não deixou de escrever no computador, não é propriamente chanfrado).

E está mais feliz por isso – por uma boa razão. Não podemos ser as criaturas de dignidade que Deus quis; não podemos ser fermento neste mundo; não podemos servir Jesus Cristo e ver claramente aquilo que deve ser feito no mundo, se formos apenas montes de detrito adormecidos. Fomos feitos para mais do que isso. Como escreve São Paulo, fomos feitos para ser filhos e filhas da luz, por isso, “não durmamos, pois, como os demais, antes vigiemos e sejamos sóbrios” (Tess. 5,6).

Por outras palavras: Toma o comprimido.


Francis X. Maier é conselheiro e assistente especial do arcebispo Charles Chaput há 23 anos. Antes serviu como Chefe de Redação do National Catholic Register, entre 1978-93 e secretário para as comunidades da Arquidiocese de Denver entre 1993-96.

Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quinta-feira, 14 de Setembro de 2023)

© 2023 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Friday 15 September 2023

Português dirige "revista do Papa" e Setúbal continua sem bispo

Um dos temas das últimas semanas é o facto de os ucranianos, e mais especificamente os bispos católicos ucranianos, terem-se manifestado desgastados com as palavras e os gestos de Francisco sobre a guerra na Ucrânia. Este é um assunto sensível. Neste texto explico que os ucranianos têm algumas razões de queixa, mas que, bem vistas as coisas, as acusações de que Francisco é de alguma forma russófilo no que diz respeito a esta guerra são profundamente injustas, e não resistem a um escrutínio cuidadoso.

A semana passada dei-vos a feliz notícia da libertação, na Nigéria, de um padre e um seminarista que tinham sido raptados. Hoje, infelizmente, trago-vos a triste notícia da morte de mais um seminarista naquele país (na foto). Na’aman Danlami morreu carbonizado quando a casa paroquial em que estava foi atacada e incendiada. Dois padres que estavam na mesma casa conseguiram escapar com vida. Rezem pela Nigéria, para que o pesadelo termine.

E rezem também pelo Sudão do Sul. O apelo é da missionária portuguesa Beta Almendra.

De Roma chega a notícia de mais uma nomeação de um português para um cargo importante. O jesuíta Nuno Gonçalves, que chegou a ser sugerido como possível Patriarca de Lisboa, é a partir de agora director da revista Civiltà Cattolica. Recordo que a Civiltà Cattolica não é “apenas” uma revista dos jesuítas italianos. Cada edição é revista pessoalmente pelo Papa antes de ser publicada e é onde aparecem sempre publicadas as conversas do Papa com os jesuítas quando viaja. É, por isso, um órgão muito importante para se ir tomando o pulso ao pontificado.

O Papa está solidário com as vítimas dos desastres naturais que ocorreram em Marrocos e na Líbia.

O Bispo de Coimbra anunciou um sínodo para os jovens e o bispo de Angra diz que é preciso lutar contra a religião de sofá e de pijama. Quem não anunciou nada foi o bispo de Setúbal, isto porque Setúbal está sem bispo desde 28 de janeiro de 2022. São 595 dias de efectiva orfandade naquela diocese. É grave. Entretanto ouvi uns “zunzuns” de que a situação poderá ficar resolvida até ao fim do mês. Rezemos que sim!

Não deixem de ler o artigo desta semana do The Catholic Thing em que o padre Charles Fink, no seu primeiro texto neste site, fala de preconceito, racismo e tolerância cristã, recorrendo às memórias do seu avô e à sua própria experiência como militar na guerra do Vietname.

Thursday 14 September 2023

O Papa e a Ucrânia: uma sucessão de falhas de comunicação e interpretações mal-intencionadas?

Um dos aspectos mais curiosos e inesperados da guerra na Ucrânia é o facto de o Papa Francisco estar a ser visto por muitos como sendo de alguma forma pró-russo, ou pelo menos russófilo.

Porque é que isto tem acontecido, e será justa a sugestão?

Recentemente os bispos da Igreja Greco-Católica Ucraniana estiveram em Roma para o seu sínodo, e encontraram-se com o Papa, tendo o seu líder, o arcebispo-maior Sviatoslav Shevchuk, aproveitado a ocasião para dizer francamente a Francisco que o seu povo está magoado com ele.

O último incidente foi a mensagem por vídeo que o Papa fez aos jovens católicos da Rússia, em que apelou que estes sejam fiéis à herança intelectual e espiritual dos seus antepassados, referindo como exemplos figuras históricas da Rússia como Pedro o Grande e Catarina II. Os ucranianos sentiram-se ofendidos com essas palavras, recordando que esses imperadores cometeram crimes contra vários povos, incluindo os ucranianos. (As palavras polémicas foram ditas de improviso, no final do discurso, e não aparecem no discurso oficial publicado no site do Vaticano.)

Mas este foi apenas mais um caso. Antes tinha havido dois episódios nas vias sacras de Roma, na Sexta-feira Santa, em que o Vaticano pediu a russos e ucranianos para carregarem a cruz juntos. No primeiro caso eram duas mães, uma de cada nação, e no segundo eram duas crianças que tinham perdido os pais na guerra, um de cada lado. Em ambas as situações os ucranianos ficaram lívidos, acusando o Vaticano de estar a equiparar o sofrimento e a condição das vítimas e dos agressores.

Tivemos ainda a ocasião em que o Papa pareceu dar a entender que a Rússia tinha sido provocada pela aproximação da NATO às suas fronteiras.

Sejamos claros, há aqui sérias falhas de comunicação por parte do Vaticano, e mais especificamente do Papa. Referir Pedro e Catarina era desnecessário e o próprio Francisco lamentou-o no final da sua viagem à Mongólia; e depois de no primeiro ano a ideia da Via Sacra ter caído tão mal na Ucrânia – foi a primeira vez em mais de uma década que a televisão católica ucraniana não a transmitiu em directo – é incompreensível que o tenham feito outra vez no ano seguinte. Pior, sei que queriam repetir o gesto na JMJ, mas a organização portuguesa conseguiu evitá-lo.

Mas estamos também perante um problema de interpretação. Há muito de subjectivo na forma como interpretamos palavras, ou até falhas de comunicação. É sempre possível fazê-lo pela pior lente possível, e parece ser isso o que se está a passar aqui.

O Papa Francisco não é militar, nem é apenas o Papa dos ucranianos, apesar de haver mais católicos na Ucrânia do que na Rússia. Ele é o Papa, ponto final, e a sua obrigação é pugnar pela justiça, sim, e pela paz, certamente, mas não pode, em prol disso, sacrificar as relações com toda uma nação, sobretudo uma nação como a Rússia que, por mais que esteja corrompida a sua chefia, tem uma das Igrejas ortodoxas mais importantes do mundo.

Isso significa que sempre que Francisco age neste campo ele está a levar a cabo uma operação de equilibrismo complexa, em várias frentes. É importante que a guerra acabe, mas a guerra deve acabar sem uma paz justa que devolva à Ucrânia todo o seu território e, já agora, as centenas de milhares de crianças que os russos raptaram? E defender explicitamente essa vitória total não é, de certa forma, defener o prolongar da guerra e, por conseguinte, mais mortes? É importante denunciar o agressor nesta guerra, mas como fazê-lo sem virar a Rússia ainda mais contra o ocidente e contra a Igreja Católica do que já está?

O risco do equilibrismo é que inevitavelmente pode-se cair. E Francisco, ou a diplomacia da Santa Sé, já teve umas quedas, mas só cai quem lá está e a Igreja está lá porque quer mesmo, sinceramente, ver alcançada a paz na Ucrânia.

Para muitos ucranianos, contudo, e incluindo os líderes religiosos, tudo o que não seja a defesa incontestada de uma vitória ucraniana a todos os níveis é visto como uma facada nas costas. E isso explica as reacções negativas por parte de muitos ucranianos. Não me entendam mal… Acho que isto é completamente compreensível, e simpatizo. Mas o papel do Papa não é ser cheerleader para a Ucrânia nesta guerra, até porque se o fizer perde qualquer margem de manobra junto da Rússia, e já vimos que o Papa tem conseguido alguns sucessos nesse campo, nomeadamente a nível de trocas de prisioneiros.

Mas parece-me evidente que chegámos ao ponto em que muito ucranianos já perderam a tolerância e por isso interpretam sempre da pior forma possível tudo o que Francisco diz sobre este assunto. Vejamos a tal mensagem que ele proferiu aos jovens católicos russos, recordando que está a falar com pessoas que estão na Rússia, a viver debaixo do regime de Putin. “Desejo-vos, jovens russos, a vocação de serdes artífices da paz no meio de tantos conflitos, no meio de tantas polarizações de todos os lados, que assolam o nosso mundo. Convido-vos a ser semeadores, a lançar sementes de reconciliação, pequenas sementes que, neste inverno de guerra, não brotarão, entretanto, no solo gelado, mas florescerão numa futura primavera.”

Isto são palavras de coragem, é um desafio que embora não referindo especificamente a guerra da Ucrânia, foi claramente compreendida como tal pelos ouvintes. Mas no meio disto, tudo o que ficou para os críticos foi o elogio à herança russa e uma referência, mal pensada é certo, aos imperadores Catarina e Pedro.

Para mim todos estes ataques ao Papa parecem particularmente injustos uma vez que eu tive o trabalho meticuloso e muito desgastante de acompanhar todas as intervenções feitas sobre a guerra na Ucrânia por líderes religiosos significativos. Só o fiz durante o primeiro ano da guerra, mas foi tempo suficiente para perceber que Francisco foi, mas de longe, o líder religioso não-ucraniano que mais falou da Ucrânia. Só o líder da Igreja Greco-Católica da Ucrânia o superou, e isso é porque ele publicava uma mensagem diária para os seus conterrâneos. Francisco falou um total de 126 vezes sobre a Ucrânia em 365 dias.

Mas não foi só falar. O Papa condenou a guerra, tendo sido dos primeiros líderes mundiais a dizer explicitamente que se tratava de uma guerra e não de uma “operação militar”; nunca hesitou em dizer que a Rússia é que era a responsável pela mesma e que a Ucrânia e os ucranianos eram e são as vítimas; rompeu com o protocolo e foi pessoalmente à embaixada da Rússia no Vaticano para pedir justificações aquando da invasão; enviou representantes para os locais de massacres e matanças; recebeu e beijou bandeiras ucranianas, vindas desses mesmos locais de massacres; apelidou os ucranianos de “corajosos”, “atormentados”, “sofredores” e “mártires”; chamou ao Patriarca de Moscovo acólito de Putin… A lista é enorme.

Quem acompanha o que o Papa escreve e diz, e não apenas as polémicas que de vez em quando surgem quando diz a coisa errada, não pode se não concluir que Francisco está firmemente do lado do povo ucraniano e que deseja o melhor para ele. Que os ucranianos, que tanto sofrem, sintam que isso não basta, porque queriam era ver o Papa a lançar anátemas sobre toda a Rússia e a apelar a uma vitória militar, é compreensível, mas que pessoas de fora, e boa parte da imprensa, alinhem nessa imagem distorcida é perfeitamente injusto.

Perguntas a Deus - José Luís Nunes Martins

Porque não é demasiado cedo para começar a pensar em presentes de Natal, deixo-vos aqui a sugestão deste novo livro do meu amigo José Luís Nunes Martins.

"Perguntas a Deus" contém uma série de perguntas para meditar, com base em excertos das crónicas que o José Luís tem publicado ao longo dos anos, e vem acompanhado de um baralho de cartas com mais perguntas e propostas de reflexão. 

Procurem nas livrarias, ou numa das muitas online.



Wednesday 13 September 2023

Algumas ideias subversivas sobre o racismo

Msgr Charles Fink
O meu avô era aquilo a que se poderia chamar um cavalheiro do antigamente. Vestia-se de camisa e gravata para trabalhar, mesmo quando já era velho e a gerir um pequeno negócio de família, sozinho, numa secretária na cave da sua casa no Bronx. Não me lembro de o ouvir dizer um palavrão, ou a proferir uma palavra enraivecida. Era infalivelmente cortês e simpático, mas estava longe de ser perfeito. Uma das suas muitas falhas era uma forma de preconceito que se manifestava na referência a membros de outras raças com palavras como “escurinhos” ou “chinocas”, frequentemente com um sorriso quase envergonhado, mas nunca de forma trocista. Contudo, pelos padrões actuais, ele era um racista.

Mas há um facto fascinante sobre o meu avô. Era um episcopaliano [ramo americano da Igreja Anglicana] praticante e durante anos foi um pregador leigo na sua igreja do Bronx, mantendo-se activo à medida que o bairro local se transformava e a congregação maioritariamente branca se tornou em larga medida negra. E quando se realizou o seu funeral nessa mesma igreja, um por um, praticamente todos os fiéis, que eram na esmagadora maioria negros, vieram ter comigo para prestar condolências e dizer: “O teu avô era um verdadeiro cavalheiro”.

O que devemos fazer disto? Será que o meu avô merece ser visto à mesma luz que membros do Ku Klux Klan? Será que todos os fiéis daquela igreja foram enganados por um hipócrita e charlatão? Será que por causa da natureza, da forma como foi criado e, Deus sabe lá que mais, o meu avô tinha preconceitos, mas que, sendo cristão e, fundamentalmente, um homem decente, não permitiu que esses preconceitos determinassem as suas interacções com os outros?

Antes de ser ordenado padre católico combati no Vietname, na infantaria. Dois rapazes negros (eramos quase todos apenas rapazes) do Tennessee ajudaram a integrar-me quando fui enviado para a frente. Dois meses mais tarde, depois de ter sido ferido numa emboscada, fui salvo e evacuado por um homem negro robusto e atlético, com mais de dois metros de altura, e um porto-riquenho baixo e forte que me colocou aos ombros e me carregou até estar a salvo. No campo de batalha a nossa cor não interessava nada. Eramos, como se diz, um “bando de irmãos”.  

Todavia, nas raras ocasiões em que regressávamos à base e conseguíamos ir ao bar para descontrair um bocado, os brancos e os negros iam automaticamente cada um para o seu lado e sentavam-se separadamente. Já vi acontecer a mesma coisa enquanto padre nos encontros do clero. Quando chega às refeições os padres negros de todo o mundo que agora servem nas nossas dioceses – frequentemente em paróquias maioritariamente brancas e lado-a-lado com párocos brancos, sem qualquer problema – acabam por se sentar todos juntos na mesma mesa.  

Perguntei a um padre do Gana, muito estimado por todos, se achava que isto era um sinal de racismo. Ele riu-se e respondeu algo como: “Claro que não. As pessoas simplesmente sentem-se mais confortáveis com aqueles que são mais parecidos com eles, em termos de raça e nacionalidade”.

Pergunto-me se muito daquilo que consideramos racismo na nossa sociedade não é apenas uma questão de nos sentirmos mais à vontade com aqueles com quem temos maior familiaridade? E mesmo que, como no caso do meu avô, a situação seja mais grave que isso, se esse preconceito é tão grave que merece ser denunciado, confundido com ódio e o seu autor caracterizado como racista ou, como é mais habitual hoje em dia, culpado de um ou outro tipo de fobia?

O autor, no Vietname
Se der por mim num bairro de alta-criminalidade, de noite ou de dia, serei preconceituoso por estar mais nervoso do que estaria se estivesse a dar uma volta ao quarteirão na minha paróquia ou bairro? Se substituíssemos os nossos polícias por robocops, programando-os para proteger de forma rigorosa os nossos bairros, será que os programávamos a todos da mesma maneira, independentemente da zona que iriam patrulhar? Não é verdade que todos nós estamos constantemente a receber, analisar e interpretar dados, ajustando de acordo o nosso comportamento? Para que mais é que conta a nossa inteligência? Quando aprendemos a conduzir defensivamente, ou ficamos em alerta com o que se está a passar à nossa volta numa plataforma do metro, não é isto que estamos a fazer?

Jordan Peterson tornou-se imensamente popular e intensamente polémico, creio que em larga medida pela mesma razão. Ele tem um sentido apurado da subtileza, complexidade e mistério da realidade e da natureza humana em particular, e esforça-se por ajudar os outros a navegar as correntes, frequentemente traiçoeiras, da vida, para que possam florescer e dar-se bem. Peterson é admirado por aqueles de nós que apreciamos a sua sabedoria, conhecimento, compreensão e óbvia compaixão, mas é desprezado por todos aqueles que preferem a simplicidade dos insultos pessoais e querem colocar toda à gente em gavetas estanques.

O caminho proposto por Peterson tem a potencial para levar a uma certa medida de harmonia e de paz, o outro leva a divisão e antipatia sem fim. Não é preciso ser um génio ou um santo para decidir qual é o melhor caminho a seguir. O meu avô, apesar de ser ligeiramente preconceituoso, conseguia dar-se bem com praticamente toda a gente. Tudo o que foi preciso foi alguma cortesia e uma decência cristã básica que não permitia que as suas próprias preferências e preconceitos determinassem a forma como ele tratava os outros.  

O mestre contador de histórias e católico devoto J.R.R. Tolkien escreveu, numa carta ao seu filho Michael: “Recordando os meus próprios pecados e disparates, compreendo que os corações dos homens frequentemente não são tão maus como os seus actos e muito raramente são tão maus como as suas palavras”. Um pouco mais desta humildade e caridade faria muito para sarar a nossa sociedade dividida, ajudando-nos a viver como vizinhos e não como inimigos.


Monsenhor Charles Fink

Monsenhor Charles Fink é padre da Diocese de Rockville Centre há 47 anos. Antigo pároco e director espiritual, está reformado e a viver na Paróquia de Notre Dame, em New Hyde Park, Nova Iorque.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no domingo, 10 de Setembro de 2023)

© 2023 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Friday 8 September 2023

Novo Patriarca, Papa na Mongólia e família beatificada na Polónia

Espero que as vossas férias tenham sido tão boas como as minhas!

Durante estas últimas semanas passou-se muita coisa. Temos um novo Patriarca de Lisboa, por exemplo, que já tomou posso oficialmente. Mas porque é que o Arcebispo de Lisboa é Patriarca? E quais os privilégios associados a isso? Escrevi sobre o assunto para o Expresso. Caso não sejam assinantes, e leiam bem em inglês, tenho uma versão parecida publicada no The Pillar.

Tivemos também a histórica viagem do Papa à Mongólia. Esta foi literalmente uma viagem às periferias, para um país que tem apenas 1500 católicos, mas foi também um acto demonstrativo da diplomacia da Santa Sé, uma vez que a Mongólia se localiza entre a Rússia e a China e é por isso um excelente ponto de apoio para a política da Igreja Católica para a Asia Central.

Convido-vos a ler ainda esta história do regresso das freiras católicas ao Dómuè, Moçambique, depois de 40 anos, do meu amigo Paulo Aido, da AIS. Outra boa notícia é a libertação de um padre e um seminarista na Nigéria, que tinham sido raptados.

No próximo domingo será feita a primeira beatificação de uma família inteira na Igreja Católica. Os Ulma foram assassinados por terem dado guarida a oito judeus durante a perseguição nazi na Polónia. Explico este assunto neste texto, onde tento também perceber quais são as lições deste episódio para a nossa realidade. Leiam e digam-me se concordam com a minha análise.

Por fim, temos os artigos do The Catholic Thing, que continuaram a ser publicados ao longo destas semanas. Randall Smith escreveu sobre a clássica distinção entre a colaboração formal e material com o mal, e porque é que essa distinção não é particularmente útil para as nossas vidas; depois Robert Royal escreve um texto muito interessante sobre as duas árvores que marcaram a vida de Santo Agostinho de forma simbólica e por fim, esta semana, Randall Smith de novo escreve sobre a aplicação da lógica à fé.

Thursday 7 September 2023

Józef e Wiktoria Ulma e filhos, orate pro nobis

Regressado de férias estava a pensar sobre o que é que deveria escrever neste dia em que recupero a actividade da Actualidade Religiosa. Não faltam possibilidades! O novo Patriarca de Lisboa e a viagem do Papa à Mongólia são duas das mais evidentes, mas um dos objectivos da Actualidade Religiosa é de fazer chegar aos meus leitores informação e perspectivas que não encontram facilmente noutro lado. É por isso que hoje decidi escrever sobre a família Ulma.

Józef e Wiktoria Ulma casaram em 1935 na Igreja de Santa Doroteia, na aldeia de Markowa, na Polónia.

Quatro anos mais tarde começou a Segunda Guerra Mundial, precisamente com a invasão da Polónia pela Alemanha Nazi.

Em 1942 os Ulma já tinham vários filhos quando oito judeus – os seis membros da família Szall e as irmãs Goldman – vieram pedir ajuda para se refugiar dos nazis, que estavam a proceder à captura e assassinato sistemáticos dos judeus naquele país.

Józef e Wiktoria tinham todas as razões do mundo para dizer que não. Já tinham assistido à matança dos judeus de Markowa no Verão de 1942, sabiam como os nazis eram implacáveis e sanguinários. Ainda por cima tinham filhos com que se preocupar, mais as suas próprias vidas para salvaguardar. Todos sabiam que albergar ou auxiliar judeus era um crime punível com a morte.

Todavia, eles abriram a sua casa àquelas famílias.

Ao longo destes últimos anos tenho lido bastantes livros sobre este período da história, incluindo um livro perturbador sobre os homens que compunham os pelotões de polícia alemã que eram responsáveis por prender e executar judeus em massa na Polónia, um livro quase enciclopédico sobre a perseguição nazi aos católicos na própria da Alemanha e outro sobre pessoas comuns que resistiram aos nazis na Alemanha também. É muito simples dizer que os Ulma arriscaram as suas vidas para salvar judeus porque eram católicos, e porque os católicos são chamados a esse tipo de sacrifício. Mas é demasiado simples. A Polónia estava repleta de católicos naquele período, como está agora, e embora haja muitas histórias de homens e mulheres que arriscaram ou deram mesmo a vida para salvar quem era injustamente perseguido – sendo que pelo menos 1000 polacos não-judeus foram executados pelos nazis por essa razão – também não há falta de actos terríveis de violência levados a cabo contra judeus por cidadãos normais, ou de pessoas que denunciaram aqueles que escondiam os judeus.

Porque é que os Ulma eram diferentes? A sua fé era mais profunda? Acho que não será só isso. A meu ver há aqui um factor importante de decisão racional, assente, certamente – sobretudo neste caso – numa fé profunda, que sabemos que os animava.

Eu acredito que a dada altura os Ulma tiveram de pesar aquilo que lhes poderia acontecer caso fossem apanhados e tomaram uma decisão firme de que estavam dispostos a abraçar essa cruz caso lhes fosse apresentada. E acredito que é, acima de tudo, essa a lição que a sua história contém para nós.

Nós que temos a nossa fé, que fazemos a nossa vidinha, mas que, na pior das hipóteses, levamos com umas bocas nas redes sociais por sermos beatinhos, alguma vez parámos para pensar o que faríamos se estivéssemos numa situação em que fossemos chamados a pôr a nossa vida em risco para salvar inocentes? E não só a nossa vida, mas a dos nossos filhos? Não é bonito de pensar, mas penso que esse é um exercício a que todos nos devemos submeter de vez em quando, e idealmente devemos fazer as pazes com essa ideia, meditar nela e contemplá-la, para que se algum dia nos encontrarmos nessa situação termos mais armas espirituais para resistir ao instinto natural de preservação da nossa vida e da dos nossos filhos.

Claro que aqui estamos a falar de um gesto absolutamente radical, mas a verdade é que podem surgir nas nossas vidas muitas outras situações em que o que está em causa não é a vida, mas o bem-estar, o conforto material ou financeiro. Se fizermos este exercício para o sacrifício máximo, creio que estaremos em melhor posição para o podermos pôr em prática nos sacrifícios mais banais.

Em 1944 um polícia denunciou os Ulma aos nazis. Parece que era um homem que já tinha ajudado os Szall a troco de dinheiro e que estava a tomar conta dos seus pertences, e que assim fez quando eles tentaram reclamar as suas coisas.

No dia 24 de Março de 1944 a polícia alemã apareceu na casa dos Ulma. Os judeus foram localizados e executados. Depois toda a família foi reunida. Aparentemente, nesse momento Wiktoria entrou em trabalho de parto e deu à luz o seu sétimo filho. Sem qualquer piedade, os nazis executaram toda a família, incluindo o recém-nascido.

A execução dos Ulma causou tanto pânico entre os polacos que ainda estavam a esconder judeus, que na manhã seguinte foram encontrados 24 cadáveres de judeus nos campos. Tinham sido assassinados pelas mesmas pessoas que lhes tinham dado guarida durante 20 meses.

Em 1995 os Ulma foram reconhecidos Justos entre as Nações pelo memorial Yad Vashem, em Israel.

Mais recentemente, as autoridades locais usaram o exemplo da família Ulma como justificação para acolher ucranianos refugiados e continuar a apoiar a nação ucraniana durante a guerra.

Agora, no dia 10 de Setembro, toda a família Ulma será beatificada, depois de terem sido considerados mártires. Trata-se da primeira vez que uma família é beatificada em conjunto.

No nosso tempo, pelo menos aqui na nossa realidade europeia e ocidental, temos os nossos desafios, mas felizmente sabemos que não corremos risco iminente de vida ou de liberdade por viver a nossa fé. Mas nunca se sabe quão rapidamente essa realidade pode mudar e podemos ser chamados a actos de heroísmo altruísta, a que a Igreja chama santidade. Se esses dias chegarem, que tenhamos todos a força e a coragem dos Ulma e de tantos outros que se sacrificaram pelo bem em todos os períodos da história.

Wednesday 6 September 2023

A Lógica da Crença

Randall Smith
Recentemente ouvi falar de uma mulher que foi a uma aula de preparação para o baptismo mas que, quando lhe disseram que a Igreja ensina que o aborto é errado, saiu subitamente, dizendo: “Nem acredito que a Igreja proíbe o aborto”. Calculo que haja outros ensinamentos, até mais fundamentais, que a chocariam ainda mais. O aborto é apenas a ponta do icebergue, espera só até ouvir falar da ressurreição dos mortos.

Uma reacção possível a esta história seria argumentar que, se a insistência da Igreja em se opor ao aborto afasta as pessoas, talvez seja melhor desvalorizar esse ensinamento, uma vez que já não está de acordo com o “espírito do nosso tempo”. Se eu for gerente de uma loja que vende um certo estilo de roupa, de que já ninguém gosta, então deixo de oferecer esses modelos. No mundo dos negócios oferecemos o que atrai os clientes e evita-se aquilo que os afasta. 

Só que a Igreja não é um negócio. Isso pode parecer ingénuo para alguns, mas deixemos claro que a Igreja, na sua essência, não é um negócio. E que os leigos não são “consumidores” em busca de um produto.

Sim, a Igreja aceita dinheiro porque precisa dele para manter as suas actividades em marcha. Mas olhemos para outra instituição que também aceita dinheiro: a escola. O que pensaríamos de uma escola que dissesse: “os miúdos não gostam de matemática, por isso deixemos de oferecer matemática”? Então talvez devamos admitir que a Igreja tem uma responsabilidade análoga: de ensinar e fazer aquilo que for no melhor interesse dos seus membros, ainda que estes nem sempre “gostem” e até mesmo se com isso ela não seja “popular”.

Mas há algo mais profundo aqui também, porque a oposição da Igreja ao aborto baseia-se na revelação divina e na visão da pessoa revelada em, e através de, Jesus Cristo. Visto desta forma, dizer, “Eu não acredito no que a Igreja ensina sobre o aborto” equivale a dizer “eu não acredito que o ensinamento da Igreja sobre a pessoa se baseia na revelação divina”. Tudo bem, mas essa a definição de um “não católico”.

Se isso vos parecer demasiado radical, então considere-se o caso de alguém que diz uma das seguintes proposições: “Nem acredito que a Igreja ensina que: (a) Jesus foi (é) o Filho de Deus feito carne; e/ou (b) que um Deus feito Homem poderia morrer; e/ou (c) que Jesus ressuscitou corporalmente dos mortos; e/ou (d) que os fiéis, depois de morrerem, também ressuscitarão corporalmente dos mortos. Muitas pessoas ao longo da história não têm sido capazes de aceitar esses ensinamentos, mas a Igreja sempre entendeu que não faria qualquer sentido identificar-se como o “Corpo de Cristo” se deixasse de insistir nelas.

O que é que estas pessoas estariam a dizer se recitassem o credo, no qual todas estas coisas são explicitamente afirmadas? Em vez de dizer “Creio…”, teriam, se fossem coerentes, de dizer: “Algumas pessoas acreditaram em tempos que…”. Dizer, alto, diante de Deus e de um grupo de pessoas, “Creio em x”, quando na verdade não se crê em x, é tudo menos honesto.

O que é preciso que fique claro, então, é que os ensinamentos morais da Igreja se baseiam numa compreensão da pessoa revelada em, através de, a pessoa de Jesus Cristo.

Por isso, se um grupo afirmasse: “gostamos de Cristo, mas acreditamos que o corpo é mau e que só o espírito, libertado do corpo, é que é bom”, como faziam os Maniqueus e outras seitas gnósticas na Igreja primitiva, a Igreja teria de dizer (e disse): “lamento, mas não”.

Mas da mesma forma, se alguém diz: “Eu gosto de Cristo, mas acho que as pessoas podem ter relações sexuais apenas por diversão, porque isso é algo que se faz com o corpo, e o corpo não implica com as nossas intenções nem com a nossa verdadeira identidade”, então a Igreja teria de dizer que não, explicando que a Encarnação nos revela a ligação intrínseca entre o corpo e a alma.

Tal como os cristãos não podem logicamente afirmar: “Eu amo a Deus, mas odeio o meu próximo”, assim também não podem dizer “Eu amo a Deus feito homem, mas odeio a carne”, ou “eu amo a Cristo ressuscitado, mas rejeito a ressurreição dos corpos”. Estas não são apenas doutrinas das quais podem escolher, são afirmações intrinsecamente ligadas à nossa fé em Jesus Cristo, que é o Filho de Deus Encarnado e Senhor Ressuscitado.

Tal como a Igreja não pode simplesmente desvalorizar o seu ensinamento sobre a mentira, apesar de haver muitas pessoas que mentem, ou contra odiar o nosso vizinho, ou contra as relações sexuais descomprometidas, apesar de haver muitas pessoas a fazer ambas essas coisas, assim mesmo a Igreja não pode simplesmente deixar de proclamar qualquer um dos ensinamentos que se baseia na sua compreensão da pessoa, derivada da autorrevelação de Deus em Cristo.

É certo que quanto mais membros de uma cultura se sentirem atraídos por coisas que a Igreja crê serem destrutivas do florescimento autêntico do homem, em vez de acreditarem nas coisas que são conducentes a esse florescimento, mais difícil será convencê-las a serem “católicas”. Assim também, quanto mais nazis convictos existirem numa sociedade, menos católicos sinceros haverá – a não ser que se falsifique o Evangelho para que se possam aceitar. 

Mas ninguém tem nada a ganhar quando a Igreja mente sobre aquilo que ensina, ou sobre as obrigações e proibições que derivam da crença em Jesus Cristo. Se uma mulher quiser matar bebés por nascer mais do que ser católica, tudo o que podemos dizer é: “Lamentamos. Amamos-te. Mas não podemos de forma alguma deixar-te dizer que aceitas a fé católica em Jesus Cristo quando claramente não é o caso. É um princípio básico da não-contradição: não se pode afirmar uma coisa e negá-la ao mesmo tempo. Não fomos nós que inventámos isso, é apenas um princípio básico de lógica. E temos de insistir em manter essa lógica, porque caso contrário as nossas palavras tornam-se disparates sem sentido”.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 5 de Setembro de 2023)

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