Neste artigo vou referir aspetos do relatório que me
parecem interessantes mas que não tenho visto sublinhadas na maioria da
comunicação social.
O relatório pode ser consultado na íntegra aqui.
Para quem lê inglês, convido a ver o meu artigo para o The Pillar, sobre o relatório. Podem ainda assistir ao meu comentário na SIC
Notícias, cerca das 8h20 de terça-feira, e na sexta-feira estarei no programa
da Ecclesia, na RTP2.
Testemunhos – 4812 vítimas.
Este número em si, diz pouco, sobretudo na medida em que é uma estimativa, e
uma estimativa que certamente peca por defeito. Mais do que o número total de
vítimas, que nunca vamos conhecer, impressiona ler os testemunhos de quem
sofreu abusos. Há muitos testemunhos que são especialmente emotivos, mas o que
mais me assombrou foi a do rapaz que foi violado, juntamente com colegas, numa
viagem de finalistas do sexto ano (Pg. 233). A descrição de como os rapazes se
consolaram, da impotência que sentiam perante o abusador, é aterradora. Não
chego ao ponto de dizer que toda a gente deve ler esse e outros testemunhos do
relatório, mas que deve ser leitura obrigatória para clérigos e para todos os
que trabalham com crianças e pessoas vulneráveis, sim. Estou apenas a sublinhar
um dos testemunhos que mais me marcou, há outros tão ou mais impressionantes e muitos
estarão ainda por contar.
Sete – Este relatório
tem muitos números, e muitos deles impressionam. Mas o "sete", que se refere ao
número de vítimas que se calcula terem-se suicidado é um que deve ficar para
sempre gravado na nossa memória.
O relatório – Um dos
grandes pontos a reter deste relatório é a existência do relatório em si. Não
nos podemos esquecer que para muitos bispos, e outros na Igreja, a criação de
uma Comissão Independente era vista como desnecessária, ou como um ataque à
Igreja. As dioceses, dizia-se, já tinham as suas próprias comissões, a que
qualquer um poderia recorrer. Ora, só em dez meses a Comissão Independente
recebeu dezenas de vezes mais testemunhos do que todas as comissões diocesanas
juntas em dois anos ou mais. A Igreja pode não ter culpa, e pode até ter as
melhores intenções, mas as vítimas simplesmente não confiam nela e nas suas
comissões – algumas chefiadas por bispos o padres – para acolher e tratar as
suas denúncias. Nesse sentido, e por mais defeitos que tenha – e tem alguns,
que já veremos – a existência do relatório é uma vitória e comprova a
necessidade de se ter criado a Comissão Independente.
Colaboração – Portugal
não é o primeiro a ter uma Comissão a estudar a problemática dos abusos sexuais
na Igreja, e se Deus quiser não será o último. Eu tenho acompanhado esta
questão em vários países e por isso posso dizer que é verdadeiramente admirável
e assinalável a forma como a Igreja e a Comissão colaboraram pacificamente ao
longo do ano que passou. Há mérito dos dois lados, mas merecem elogios os membros
da Comissão que sempre fizeram questão de sublinhar e agradecer a forma como os
bispos lhes facilitaram a vida, e de dizer que este problema dos abusos é um
fenómeno social, em primeiro lugar, e não deve se deve tomar a parte pelo todo.
Esta colaboração não impediu, porém, os membros da Comissão de criticar os bispos
onde isso lhes pareceu necessário. Uma das grandes vantagens disto é o facto de ser impossível a quem quer que seja na Igreja que tenha dois dedos de testa reclamar de uma caça às bruxas, ou uma perseguição anticlerical.
Bom senso - Noutros países estes relatórios têm servido para fazer exigências e recomendações estapafúrdias ou simplesmente persecutórias, como apelar ao fim do celibato como medida para combater os abusos, ou sugerir leis que obriguem os padres a violar o segredo da confissão. Não foi surpreendente, tendo em conta os sinais dados pela Comissão ao longo dos meses, mas é bom ver que este relatório evita essas tentações. [Já me chamaram atenção para o facto de, ao contrário do que aqui escrevi, o relatório sugerir que a Igreja "reveja" a questão do selo da confissão. Ainda assim, uma sugestão de revisão é diferente de um pedido explícito para acabar com ele, como aconteceu noutros lados.]
Falta de colaboração – Não
há regra sem excepção. É incompreensível que ao longo de dez meses um bispo, o de Beja, e
um administrador apostólico, de Setúbal, não tenham acedido às tentativas de contacto dos membros da comissão. O
relatório cita ainda um bispo que não identifica – mas cuja identidade torna
evidente com a informação que disponibiliza – que claramente não está alinhado
com o resto do episcopado no que diz respeito à urgência desta questão, e
continua a alimentar a teoria da vitimização da Igreja, mas ele pelo menos
aceitou ser entrevistado. Os outros dois, nem isso. Não sei mais detalhes,
porque o relatório também não os fornece, mas espero que esta informação seja comunicada
à CEP e a Roma e que seja tomada devida nota, a não ser, claro, que haja algum
factor atenuante que não conhecemos.
25 e 100+ – Estes são
dois dos dados mais significativos do relatório e devem ser lidos em conjunto. Foram
enviados 25 relatos para o Ministério Público, por haver indícios de crime não
prescrito. Contudo, a Comissão sublinha a improbabilidade de uma parte significativa
destes casos poderem ser efectivamente investigados, por falta de informação. É
importante notar que estes 25 relatos não dizem necessariamente respeito unicamente
a padres, nem a 25 abusadores diferentes. Pode haver leigos à mistura, e pode
haver múltiplos casos ligados a um só abusador. Depois, foi dito – já em entrevistas,
e não na conferência de imprensa – que a lista que vai ser enviada à CEP com os
nomes de padres suspeitos de terem cometido abusos e que estão ainda no activo
tem mais de 100 nomes.
Ora, juntando as duas peças,
podemos concluir que a esmagadora maioria dos suspeitos nessa tal lista
cometeram os seus abusos há tempo suficiente para terem prescrito. Isto leva a crer – embora não
possamos ter a certeza – que uma quantidade considerável desses casos dizem
respeito a eventos passados há várias décadas e que muitos dos padres
envolvidos possam estar já na idade da reforma, ou perto, e talvez até já sejam
de idade avançada.
Obviamente isso não significa
que não se investigue, mas devemos ter em conta que o facto de haver uma lista
com mais de 100 padres activos não implica que exista uma centena de ameaças
actuais dentro da Igreja.
Prescrições e expulsões
– Esta manhã, em entrevista à SIC Notícias, perguntaram-me o que achava que a
Igreja devia fazer com a tal lista de mais de cem nomes de potenciais
abusadores. O mais fácil, neste momento, é apelar à expulsão imediata do
ministério sacerdotal, mas essa pode não ser a melhor solução. Em primeiro
lugar, é preciso avaliar e determinar se a alegação é credível. Não nos esqueçamos
que houve mais do que um caso nos últimos anos em que um padre suspeito foi de
imediato suspenso enquanto o assunto era investigado, tendo-se concluído pela
impossibilidade da prática daquele crime. A presunção da inocência continua a
ser um bem valioso.
Felizmente, não obstante a
presunção da inocência, a Igreja tem mais margem de manobra nestes casos do que
o Estado. O Ministério Público investiga e se encontrar indícios leva a tribunal
e daí pode resultar uma absolvição ou uma condenação. No caso da Igreja, porém,
pode-se determinar que a denúncia é credível, ainda que não seja possível prová-la
sem margem para dúvida e, perante esses dois factos, tomar medidas para,
jogando pelo seguro, afastar o padre de qualquer contacto com pessoas vulneráveis,
obrigá-lo a receber acompanhamento psicológico, etc.,
O que deve então a Igreja
fazer com os padres sobre os quais pendem suspeitas credíveis, ainda que os
crimes tenham prescrito civilmente, ou que não seja possível provar a culpabilidade
sem margem para dúvidas? Nesses casos a expulsão do estado sacerdotal pode até
ser a solução mais fácil, mas não é necessariamente a melhor. É que um padre abusador
cujo crime tenha prescrito e que seja demitido – por imposição ou por vontade
própria – do estado clerical, deixa de estar sob a alçada da Igreja e já não
pode ser punido civilmente. Fica, assim, livre para seguir a sua vida. A Igreja
fica com menos uma dor de cabeça, mas a sociedade não fica mais segura. Aqui, pede-se
por isso que a Igreja evite as soluções fáceis e que continue a manter a segurança
das potenciais vítimas sempre no centro do seu agir e das suas preocupações.
Distribuição geográfica
– O relatório é bom, mas tem fraquezas. A principal, a meu ver, é a total falta
de representatividade de algumas dioceses, sobretudo as do norte e centro
interior do país, bem como Angra e Funchal. Olhando para o mapa que o relatório
disponibiliza na página 118, a realidade é aflitiva. Há vários distritos de
onde a Comissão recebeu menos de cinco chamadas, da Madeira recebeu zero. (O que não significa que não tenham sido feitas denúncias relativas a essas dioceses.)
Isto não põe em causa a validade
dos testemunhos já recebidos, mas deixa o relatório e a Igreja abertos a críticas
por os números finais não serem fiáveis. Por tudo isto é ainda mais urgente a
criação de uma segunda comissão, de preferência permanente, que vá aprofundando estes
resultados e para que outras vítimas, que ainda não tiveram a coragem, se possam
apresentar.
Números confusos – Uma outra
crítica a fazer ao relatório é que, apesar de milhares de dados, há informações
bastante básicas que não constam. Em lado nenhum, por exemplo, se refere o dado
dos mais de 100 padres ainda no activo, que Pedro Strecht depois mencionou em
entrevistas. Mas há mais. Em lado nenhum se refere o total de padres suspeitos.
Existe uma série de tabelas que permite calcular por alto o número, nas páginas 385-388. Nestas tabelas pode ver-se o número de casos que a
Comissão encontrou em cada diocese. Está lá o total de casos revelados nos
testemunhos, o total de casos reportados pelas próprias dioceses e o total de
casos encontrados pelo grupo de investigação histórica. A metodologia depois
repete-se para as ordens religiosas masculinas, femininas e algumas instituições,
como escuteiros e Opus Dei. Uma vez que existe o risco de duplicação de casos,
existe uma outra coluna que mostra quantas duplicações é que há, o problema é
que não se percebe se a duplicação é com leigos ou padres, etc.,
Ainda assim, fazendo as contas
cheguei à seguinte conclusão: Os casos no relatório incluem 497 abusadores, dos
quais 414 padres/religiosos, 79 leigos e 4 freiras.
Se detectarem algum erro com
os números digam-me… Não esquecer que sou de humanidades.
E os bispos? –
Apresentado o relatório, que dizer dos bispos? Tanto quanto vi, até porque não
são referidos nomes de dioceses ou locais, para proteger identidades, o
relatório não permite concluir se existe forte suspeita de algum bispo ainda em
funções ter encoberto conscientemente algum caso de abusos. Contudo, caso a
comissão tenha algum dado que aponte nesse sentido, isso deve ser comunicado
tanto à CEP como à nunciatura, e devem ser tiradas as devidas consequências.
Outro dado interessante é que
o relatório refere que, quando chamados a identificar os seus abusadores, menos
de 1% respondeu “chanceler, capelão, bispo ou diácono”. Sendo que 1% de 512 é
5.1, isto permite concluir que terá havido uma denúncia para cada uma dessas
categorias. Nesse caso, levanta-se a questão de saber quem foi o bispo que foi
denunciado? Ainda é vivo? Foi denunciado por abusos, ou por encobrimento? Certamente
não será a comissão a referi-lo – e nem sabemos se o tal bispo foi identificado
– mas a pergunta fica no ar.