Wednesday, 15 February 2023

À Procura da Nossa Verdadeira Identidade

Peter Laffin
Um dos grandes dons da minha conversão ao Catolicismo foi o facto de me ter libertado do projecto fútil e aborrecido da auto-invenção. Como um autoproclamado “ateu sério” que se levava mais a sério ainda, eu levei a descrença em Deus até ao seu fim lógico: um mundo sem Deus é um mundo sem valores objectivos de qualquer tipo. Pela mesma ordem de razões, o indivíduo é uma tela em branco sobre a qual qualquer coisa pode ser pintada. Tendo engolido por inteiro as platitudes pós-modernas mais comuns sobre o romance da auto-invenção, arregacei as mangas e comecei a trabalhar no projecto do “eu” com particular vigor.

Mas tudo isso não passou de uma imitação juvenil de uma história que a nossa cultura não se cansa de repetir, a da criança cuja individualidade tem sido de alguma forma suprimida e que mais tarde aprendeu a encontrar a sua voz e a “dizer a sua verdade”. Mas o resultado é que me deixou amargurado, amassado e, no final de contas, aborrecido.

Hollywood faz com que esta história pareça glamorosa no grande ecrã, com imagens em câmara lenta que batem certo com a banda sonora. Mas na vida real o projecto da auto-invenção é marcado por fases sem qualquer glamour, que nos filmes são convenientemente ignorados. A criação da nossa própria identidade de raiz é um projecto limitador, frustrante e repleto de ansiedade. É o contrário da aventura de descobrir o nosso papel na grande história do cosmos, que expande a alma.

Este é um ângulo que devia ser mais explorado na evangelização: A Igreja oferece a promessa de aventura a um mundo irremediavelmente entediado pela sua própria reflexão no ecrã de um telemóvel.

Mais do que encorajar a miragem da auto-criação – como se fossemos suficientemente poderosos para nos criarmos a nós mesmos ou sequer alterar a substância das nossas almas – a fé revela a identidade humana como ela é, objectivamente, em relação ao Criador.

O Novo Testamento, em particular, oferece-nos pistas sobre a verdadeira identidade humana, na sua relação com Deus, na pessoa de Jesus Cristo. Na grande e variada quantidade de personagens que aparecem juntamente com Cristo, ou que surgem nas suas parábolas, reconhecemos partes de nós mesmos, e através das suas experiências discernimos verdades-chave sobre as diferenças entre o homem e Deus.

Se não lermos os Evangelhos apenas como exercícios académicos, mas como uma oportunidade para viver através dos olhos das suas personagens, damos por nós num constante estado de déjà vu. Os seus encontros com o Divino provocam um sentimento inquietante de acordar de um longo adormecimento. À Luz de Cristo um indivíduo é inteiramente exposto. A presença de Deus abre o alçapão do ego e vemo-nos lançados para um estado de autoconhecimento profundo.

As personagens individuais dos Evangelhos revelam-se-nos de acordo com as épocas inalteráveis do coração. Quando damos por nós numa grande tristeza por não conseguirmos largar os tesouros da terra pela eternidade identificamo-nos com o jovem rico. Quando sofremos com a ferida aberta do pecado não reparado identificamo-nos com a samaritana junto ao poço. Quando sentimos a tentação de abdicar das responsabilidades do nosso poder terreno, até nos identificamos com Pôncio Pilatos.

Até as personagens do reino animal nos transmitem verdades fundamentais sobre a natureza dos seres criados em relação à natureza de Deus. Na verdade, nenhuma personagem do Evangelho me diz mais sobre mim do que a personagem que dá o nome à parábola da ovelha tresmalhada.

As semelhanças superficiais entre mim e a ovelha tresmalhada saltam aos olhos. Em primeiro lugar, sempre me considerei demasiado individualista para correr com o rebanho. Pelo contrário, sempre tive a tendência para correr para a escuridão da floresta por impulso, nem que seja para provar que sou eu que comando o meu destino e que não preciso da ajuda nem da aprovação de ninguém. A ovelha tresmalhada era, como gostam de dizer os neopagãos, o meu “animal espiritual”.

Mas, como sempre, a história só ganha interesse quando Deus entra em acção. Num acto de desespero totalmente irracional o pastor – isto é, o Senhor – abandona o resto do seu rebanho, os noventa e nove que não se tresmalharam, para poder perseguir o que o fez. O coração do pastor sofre tanto com o desaparecimento de uma mera ovelha amada que ele se lança sem pensar duas vezes numa missão de socorro.

O leitor (este leitor, pelo menos) até fica admirado com a aparente irresponsabilidade. Pela lógica humana é algo que não faz sentido, não parece certo que o bem-estar de um deva ter precedência sobre o bem-estar de muitos. Também não faz sentido que um pastor deva agir contra o seu próprio interesse. Não deve ele preocupar-se com o valor geral do seu rebanho?

O que torna a parábola ainda mais estranha é o facto de, noutro lugar no Evangelho, Jesus nos dizer para sermos perfeitos como o Pai Celeste. Esta passagem não só revela a nossa identidade em relação a Deus, como ainda nos oferece um modelo de conduta. Será que o Senhor quer mesmo que imitemos o pastor nestas circunstâncias?

Mas a parábola não pode ser lida segundo a lógica humana. Os seus caminhos estão acima dos nossos caminhos, o seu amor tem uma lógica própria.

Se fecharmos os olhos e nos deixarmos submergir na Luz do seu amor, rapidamente compreendemos que, contra toda a razão, é claramente verdade. É tudo verdade. Deus corre imprudentemente atrás de cada um de nós enquanto caminhamos pelo vale da sombra da morte, pelas veredas escuras e as florestas profundas em que entramos devida à nossa própria ignorância e teimosia.

Ele persegue-nos porque Ele é amor e nós somos os seus amados. Ele está apaixonadamente envolvido nas nossas vidas, como se fôssemos o seu único amor. E como qualquer bom progenitor, aguentará tudo e dar-nos-á o que for necessário para que regressemos a casa em segurança. A sua bondade e a sua misericórdia acompanhar-nos-ão todos os dias da nossa vida.

Esta é a nossa verdadeira identidade: Na nossa fragilidade, afastamo-nos do caminho. Mas nunca estamos perdidos. Somos sempre procurados. Sempre amados. Isso é certamente melhor do que qualquer coisa que eu poderia ter inventado sozinhos.


Peter Laffin escreve de New England. O seu trabalho mais recente encontra-se no The Catholic Thing, The Washington Examiner, e The National Catholic Register.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no Domingo, 12 de Fevereiro de 2023)

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3 comments:

  1. Reflexão verdadeiramente inspiradora e apropriada para estes tempos. Muito obrigada.

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  2. Muito obrigada. É mesmo consolador...

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    1. Muito obrigado pela partilha

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