Wednesday, 22 February 2023

“Esta Missa é celebrada em sufrágio pela alma de X”

John M. Grondelski
A frase que dá título a este artigo é tão comum que a maioria dos católicos nem se deve dar ao trabalho de pensar sobre o seu significado. Arriscaria dizer que muitos dos que estão presentes nas igrejas não conseguiriam explicar o que o padre está a dizer, para além de “estamos a rezar por X”. E embora isso seja verdade, há muito para além disso que uma geração anterior de católicos talvez pudesse articular, mas que, temo, a actual não consegue.

Porque é que rezamos por X?

Rezamos por X porque ele está morto e já não se pode valer a si mesmo. Isso não significa que os mortos estão simplesmente deitados, passivos. Invocamos os santos no Céu e pedimos as suas orações, eles também já morreram, mas acreditamos que nos podem ajudar.

Então porque é que rezamos por X?

Porque ele não se pode ajudar a si mesmo.

Teólogos de outros tempos poderiam ter escrito algo como “no mistério da economia da salvação de Deus, os mortos podem ajudar os outros através das suas orações, mas não se podem ajudar a si mesmos”. Essa explicação, porém, parece reduzir Deus a um fazedor de regras que “obriga” as pessoas a serem caridosas umas para com as outras, evitando que se possam ajudar a si mesmas. O problema é que isso não é verdade.

Podemos ajudar os outros porque é uma forma de caridade – no verdadeiro sentido teológico, e não apenas como quem dá dinheiro para uma boa causa. Mas mudar-nos a nós mesmos implica sermos verdadeiramente nós mesmos e, depois da morte, já não o somos. Os humanos são seres corporais e espirituais. A minha alma pode estar no purgatório, mas o meu corpo está no cemitério de Santa Gertrude.

É por isso que no Credo dizemos “creio na ressurreição dos mortos” e não apenas “na vida eterna da alma”. Foi toda a pessoa – corpo e alma – que me fez ser bom ou mau. Toda a pessoa – corpo e alma – deve agora partilhar o meu destino eterno.

Vemos, assim, que a alma não é capaz de se valer a si mesma, uma vez que é preciso a pessoa por inteiro – corpo e alma – para agir, o que já não é possível. Nós, porém, que continuamos a ser pessoas completas neste mundo e podemos por isso praticar a caridade, podemos ajudar os nossos entes queridos que já morreram.

O que por sua vez significa que devemos apreciar a absoluta importância da corporificação e da sua relevância para a vida neste mundo e no mundo que há de vir. Não obstante o cartesianismo e a dualidade que deturpam o pensamento ocidental, contrariamente a todas as ideologias da “identidade” que depreciam o corpo ou acreditam que este pode ser alterado através da vontade, o corpo tem valor.

(Claro que isto levanta uma série de questões sobre outras práticas funerárias actuais, desde a aceitação em larga escala da cremação à destruição deliberada – compostagem – do corpo para transformar o Tio Zé em solo. Mas deixemos isso para outro artigo.)

Percebemos, então, que devemos rezar pelos mortos. Mas porquê oferecer uma Missa?

Será porque “onde dois ou três se reunirem em seu nome” – e nós somos uma “comunidade”? Ou talvez porque algumas pessoas pensam que a oração comunitária multiplica a eficácia. Talvez para recordar o nosso antigo paroquiano que costumava vir à missa das 9h30, e se sentava ali mesmo?

Não.

Oferecemos “Missa por sufrágio da alma de X” porque a Eucaristia é um sacrifício, uma re-presentação do sacrifício de Cristo na Cruz, uma oferta do Preciosíssimo Dom que Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, ofereceu em e com o seu Verdadeiro Corpo e Sangue, que se torna verdadeiramente presente aqui e agora neste sacramento e que é verdadeiramente parte da grande dádiva de si mesmo “por nós e por nossa salvação”.

A compreensão, sequer, deste último parágrafo pressupõe uma compreensão da Eucaristia como sacrifício, e nos termos da Presença Real. Uma sondagem da Pew, de 2019, revelou que 69% dos católicos americanos contemporâneos pensam que a Eucaristia é apenas um símbolo. Se os autores da pesquisa tivessem perguntado, acredito que teriam descoberto uma iliteracia teológica equivalente no que diz respeito à Missa enquanto sacrifício.

Se não compreendermos a Eucaristia como um sacrifício em que Jesus Cristo se faz presente de novo, aqui e agora, corpo e sangue, alma e divindade, então também não podemos compreender a ideia do sufrágio pelos mortos, nem como ou porque é que a Missa pode contribuir de facto para o repouso da alma de X.

Se a Eucaristia não passa de uma refeição comunitária que nos une “simbolicamente” e nos recorda de Jesus, bem como dos nossos entes queridos, então na prática não passamos de protestantes. A ideia católica do verdadeiro valor da oração – em especial da Missa – pode, nesse caso, servir como pensamento piedoso, mas não é nada de real. Não faz sentido.

Tenho argumentado que a falta de uma compreensão católica do valor da Eucaristia como oferta sacrificial pelos mortos é a razão pela qual, sem saber verdadeiramente porque estamos num enterro ou numa Missa, os queremos transformar em “memoriais” que servem “tanto para os vivos como para os mortos”, uma mera recordação de boas memórias e frases sentimentais sobre “um sítio melhor” sem que as palavras tenham um verdadeiro sentido profundo. A necessidade dessas memórias alicerça-se hoje em dia na ausência de uma vigília tradicional, ou na substituição de corpos por fotografias em funerais pós-cremação.

Os bispos americanos começaram um “reavivamento eucarístico” em resposta ao escândalo de mais de dois terços dos católicos não compreenderem a Presença Real. Essas pessoas também não compreendem a Eucaristia como a Presença Real oferecida em sacrifício, e como isso agora serve para sufrágio da alma de X. Até que a verdadeira teologia eucarística seja recuperada e ensinada em larga escala, inteiras secções de doutrina católica continuarão a ser “mistérios”, não no sentido próprio das dimensões suprarracionais do divino, mas de iliteracia religiosa. Incluindo compreender porque é que “Esta Missa é celebrada em sufrágio pela alma de X”.  


John Grondelski (Ph.D., Fordham) foi reitor da Faculdade de Teologia da Seton Hall University, South Orange, New Jersey.  As opiniões expressas neste texto são apenas suas.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Segunda-feira, 20 de Fevereiro de 2023)

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