Tuesday, 14 February 2023

Reflexões sobre o Relatório da Comissão Independente

Neste artigo vou referir aspetos do relatório que me parecem interessantes mas que não tenho visto sublinhadas na maioria da comunicação social. O relatório pode ser consultado na íntegra aqui

Para quem lê inglês, convido a ver o meu artigo para o The Pillar, sobre o relatório. Podem ainda assistir ao meu comentário na SIC Notícias, cerca das 8h20 de terça-feira, e na sexta-feira estarei no programa da Ecclesia, na RTP2. 

Testemunhos – 4812 vítimas. Este número em si, diz pouco, sobretudo na medida em que é uma estimativa, e uma estimativa que certamente peca por defeito. Mais do que o número total de vítimas, que nunca vamos conhecer, impressiona ler os testemunhos de quem sofreu abusos. Há muitos testemunhos que são especialmente emotivos, mas o que mais me assombrou foi a do rapaz que foi violado, juntamente com colegas, numa viagem de finalistas do sexto ano (Pg. 233). A descrição de como os rapazes se consolaram, da impotência que sentiam perante o abusador, é aterradora. Não chego ao ponto de dizer que toda a gente deve ler esse e outros testemunhos do relatório, mas que deve ser leitura obrigatória para clérigos e para todos os que trabalham com crianças e pessoas vulneráveis, sim. Estou apenas a sublinhar um dos testemunhos que mais me marcou, há outros tão ou mais impressionantes e muitos estarão ainda por contar.

Sete – Este relatório tem muitos números, e muitos deles impressionam. Mas o "sete", que se refere ao número de vítimas que se calcula terem-se suicidado é um que deve ficar para sempre gravado na nossa memória.

O relatório – Um dos grandes pontos a reter deste relatório é a existência do relatório em si. Não nos podemos esquecer que para muitos bispos, e outros na Igreja, a criação de uma Comissão Independente era vista como desnecessária, ou como um ataque à Igreja. As dioceses, dizia-se, já tinham as suas próprias comissões, a que qualquer um poderia recorrer. Ora, só em dez meses a Comissão Independente recebeu dezenas de vezes mais testemunhos do que todas as comissões diocesanas juntas em dois anos ou mais. A Igreja pode não ter culpa, e pode até ter as melhores intenções, mas as vítimas simplesmente não confiam nela e nas suas comissões – algumas chefiadas por bispos o padres – para acolher e tratar as suas denúncias. Nesse sentido, e por mais defeitos que tenha – e tem alguns, que já veremos – a existência do relatório é uma vitória e comprova a necessidade de se ter criado a Comissão Independente.

Colaboração – Portugal não é o primeiro a ter uma Comissão a estudar a problemática dos abusos sexuais na Igreja, e se Deus quiser não será o último. Eu tenho acompanhado esta questão em vários países e por isso posso dizer que é verdadeiramente admirável e assinalável a forma como a Igreja e a Comissão colaboraram pacificamente ao longo do ano que passou. Há mérito dos dois lados, mas merecem elogios os membros da Comissão que sempre fizeram questão de sublinhar e agradecer a forma como os bispos lhes facilitaram a vida, e de dizer que este problema dos abusos é um fenómeno social, em primeiro lugar, e não deve se deve tomar a parte pelo todo. Esta colaboração não impediu, porém, os membros da Comissão de criticar os bispos onde isso lhes pareceu necessário. Uma das grandes vantagens disto é o facto de ser impossível a quem quer que seja na Igreja que tenha dois dedos de testa reclamar de uma caça às bruxas, ou uma perseguição anticlerical. 

Bom senso - Noutros países estes relatórios têm servido para fazer exigências e recomendações estapafúrdias ou simplesmente persecutórias, como apelar ao fim do celibato como medida para combater os abusos, ou sugerir leis que obriguem os padres a violar o segredo da confissão. Não foi surpreendente, tendo em conta os sinais dados pela Comissão ao longo dos meses, mas é bom ver que este relatório evita essas tentações. [Já me chamaram atenção para o facto de, ao contrário do que aqui escrevi, o relatório sugerir que a Igreja "reveja" a questão do selo da confissão. Ainda assim, uma sugestão de revisão é diferente de um pedido explícito para acabar com ele, como aconteceu noutros lados.]

Falta de colaboração – Não há regra sem excepção. É incompreensível que ao longo de dez meses um bispo, o de Beja, e um administrador apostólico, de Setúbal, não tenham acedido às tentativas de contacto dos membros da comissão. O relatório cita ainda um bispo que não identifica – mas cuja identidade torna evidente com a informação que disponibiliza – que claramente não está alinhado com o resto do episcopado no que diz respeito à urgência desta questão, e continua a alimentar a teoria da vitimização da Igreja, mas ele pelo menos aceitou ser entrevistado. Os outros dois, nem isso. Não sei mais detalhes, porque o relatório também não os fornece, mas espero que esta informação seja comunicada à CEP e a Roma e que seja tomada devida nota, a não ser, claro, que haja algum factor atenuante que não conhecemos.

25 e 100+ – Estes são dois dos dados mais significativos do relatório e devem ser lidos em conjunto. Foram enviados 25 relatos para o Ministério Público, por haver indícios de crime não prescrito. Contudo, a Comissão sublinha a improbabilidade de uma parte significativa destes casos poderem ser efectivamente investigados, por falta de informação. É importante notar que estes 25 relatos não dizem necessariamente respeito unicamente a padres, nem a 25 abusadores diferentes. Pode haver leigos à mistura, e pode haver múltiplos casos ligados a um só abusador. Depois, foi dito – já em entrevistas, e não na conferência de imprensa – que a lista que vai ser enviada à CEP com os nomes de padres suspeitos de terem cometido abusos e que estão ainda no activo tem mais de 100 nomes.

Ora, juntando as duas peças, podemos concluir que a esmagadora maioria dos suspeitos nessa tal lista cometeram os seus abusos há tempo suficiente para terem prescrito. Isto leva a crer – embora não possamos ter a certeza – que uma quantidade considerável desses casos dizem respeito a eventos passados há várias décadas e que muitos dos padres envolvidos possam estar já na idade da reforma, ou perto, e talvez até já sejam de idade avançada.

Obviamente isso não significa que não se investigue, mas devemos ter em conta que o facto de haver uma lista com mais de 100 padres activos não implica que exista uma centena de ameaças actuais dentro da Igreja.

Prescrições e expulsões – Esta manhã, em entrevista à SIC Notícias, perguntaram-me o que achava que a Igreja devia fazer com a tal lista de mais de cem nomes de potenciais abusadores. O mais fácil, neste momento, é apelar à expulsão imediata do ministério sacerdotal, mas essa pode não ser a melhor solução. Em primeiro lugar, é preciso avaliar e determinar se a alegação é credível. Não nos esqueçamos que houve mais do que um caso nos últimos anos em que um padre suspeito foi de imediato suspenso enquanto o assunto era investigado, tendo-se concluído pela impossibilidade da prática daquele crime. A presunção da inocência continua a ser um bem valioso.

Felizmente, não obstante a presunção da inocência, a Igreja tem mais margem de manobra nestes casos do que o Estado. O Ministério Público investiga e se encontrar indícios leva a tribunal e daí pode resultar uma absolvição ou uma condenação. No caso da Igreja, porém, pode-se determinar que a denúncia é credível, ainda que não seja possível prová-la sem margem para dúvida e, perante esses dois factos, tomar medidas para, jogando pelo seguro, afastar o padre de qualquer contacto com pessoas vulneráveis, obrigá-lo a receber acompanhamento psicológico, etc.,

O que deve então a Igreja fazer com os padres sobre os quais pendem suspeitas credíveis, ainda que os crimes tenham prescrito civilmente, ou que não seja possível provar a culpabilidade sem margem para dúvidas? Nesses casos a expulsão do estado sacerdotal pode até ser a solução mais fácil, mas não é necessariamente a melhor. É que um padre abusador cujo crime tenha prescrito e que seja demitido – por imposição ou por vontade própria – do estado clerical, deixa de estar sob a alçada da Igreja e já não pode ser punido civilmente. Fica, assim, livre para seguir a sua vida. A Igreja fica com menos uma dor de cabeça, mas a sociedade não fica mais segura. Aqui, pede-se por isso que a Igreja evite as soluções fáceis e que continue a manter a segurança das potenciais vítimas sempre no centro do seu agir e das suas preocupações. 

Distribuição geográfica – O relatório é bom, mas tem fraquezas. A principal, a meu ver, é a total falta de representatividade de algumas dioceses, sobretudo as do norte e centro interior do país, bem como Angra e Funchal. Olhando para o mapa que o relatório disponibiliza na página 118, a realidade é aflitiva. Há vários distritos de onde a Comissão recebeu menos de cinco chamadas, da Madeira recebeu zero. (O que não significa que não tenham sido feitas denúncias relativas a essas dioceses.)

Isto não põe em causa a validade dos testemunhos já recebidos, mas deixa o relatório e a Igreja abertos a críticas por os números finais não serem fiáveis. Por tudo isto é ainda mais urgente a criação de uma segunda comissão, de preferência permanente, que vá aprofundando estes resultados e para que outras vítimas, que ainda não tiveram a coragem, se possam apresentar.  

Números confusos – Uma outra crítica a fazer ao relatório é que, apesar de milhares de dados, há informações bastante básicas que não constam. Em lado nenhum, por exemplo, se refere o dado dos mais de 100 padres ainda no activo, que Pedro Strecht depois mencionou em entrevistas. Mas há mais. Em lado nenhum se refere o total de padres suspeitos. Existe uma série de tabelas que permite calcular por alto o número, nas páginas 385-388. Nestas tabelas pode ver-se o número de casos que a Comissão encontrou em cada diocese. Está lá o total de casos revelados nos testemunhos, o total de casos reportados pelas próprias dioceses e o total de casos encontrados pelo grupo de investigação histórica. A metodologia depois repete-se para as ordens religiosas masculinas, femininas e algumas instituições, como escuteiros e Opus Dei. Uma vez que existe o risco de duplicação de casos, existe uma outra coluna que mostra quantas duplicações é que há, o problema é que não se percebe se a duplicação é com leigos ou padres, etc.,

Ainda assim, fazendo as contas cheguei à seguinte conclusão: Os casos no relatório incluem 497 abusadores, dos quais 414 padres/religiosos, 79 leigos e 4 freiras.

Se detectarem algum erro com os números digam-me… Não esquecer que sou de humanidades.

E os bispos? – Apresentado o relatório, que dizer dos bispos? Tanto quanto vi, até porque não são referidos nomes de dioceses ou locais, para proteger identidades, o relatório não permite concluir se existe forte suspeita de algum bispo ainda em funções ter encoberto conscientemente algum caso de abusos. Contudo, caso a comissão tenha algum dado que aponte nesse sentido, isso deve ser comunicado tanto à CEP como à nunciatura, e devem ser tiradas as devidas consequências.

Outro dado interessante é que o relatório refere que, quando chamados a identificar os seus abusadores, menos de 1% respondeu “chanceler, capelão, bispo ou diácono”. Sendo que 1% de 512 é 5.1, isto permite concluir que terá havido uma denúncia para cada uma dessas categorias. Nesse caso, levanta-se a questão de saber quem foi o bispo que foi denunciado? Ainda é vivo? Foi denunciado por abusos, ou por encobrimento? Certamente não será a comissão a referi-lo – e nem sabemos se o tal bispo foi identificado – mas a pergunta fica no ar.

2 comments:

  1. "Em primeiro lugar é preciso averiguar se a alegação é credível"...pois é, mas afinal esta comissão e relatorio + comentarios de "jornalistas" é afinal o quê?

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  2. https://www.religionenlibertad.com/europa/693650229/extranas-cifras-estudio-portugues-abusos-4800-victimas-solo-34-testimonios.html

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