Wednesday, 31 May 2023

Sóbria Embriaguez

Pe. Paul Scalia

Coitado de São Pedro. A primeira mensagem Urbi et Orbi, por assim dizer, do primeiro Papa, começou de forma pouco auspiciosa. Não foi com uma audaz proclamação de Cristo, mas sim com um desmentido de que os discípulos estivessem bêbados. “Homens da Judeia e todos vós que residis em Jerusalém, ficai sabendo isto e prestai atenção às minhas palavras. Não, estes homens não estão embriagados como imaginais, pois apenas vamos na terceira hora do dia” (Actos 2, 14-15).

É uma cena com bastante piada, e merece estar incluída na primeira leitura do Domingo de Pentecostes – mas não só pelo humor. São Pedro toca aqui num aspecto antigo, mas essencial da devoção ao Espírito Santo: a sóbria embriaguez. Talvez mais valia ter dito que de facto os apóstolos estavam embriagados, mas não da forma como as multidões supunham. Estavam sob o efeito da sóbria embriaguez do Espírito Santo que mais tarde seria encorajada por São Paulo: “E não vos embriagueis com vinho, que leva à vida desregrada, mas deixai-vos encher do Espírito” (Efésios 5,18).

Santo Ambrósio pegaria mais tarde neste tema e escreveria o verso: Laeti bibamus sobriam ebrietatem Spiritus – “Alegres bebamos a sóbria embriaguez do Espírito”, enquanto ensinava que “aquele que se embriaga de vinho cambaleia; aquele, porém, que se inebria do Espírito Santo é enraizado em Cristo. Verdadeiramente excelente é esta embriaguez que produz a sobriedade da alma!” Esta é uma embriaguez que não conduz ao cambalear a arrastar da voz, mas à estabilidade e à clareza. Temos de deixar que o Espírito a produza em nós.

Tal como qualquer paradoxo, é preciso que ambas as partes sejam professadas com igual força. A embriaguez que não seja do espírito é devassidão, ou, na melhor das hipóteses, patetice. A sobriedade sem esta embriaguez é rígida e morta, sem a liberdade que o Espírito concede.

Talvez a característica mais evidente de uma pessoa embriagada seja a alegria. Isso condiz bem com o fruto que o Espírito Santo deseja produzir em nós, a distintiva alegria dos seguidores de Cristo. Trata-se da própria alegria de Deus que a alma possui, independentemente das circunstâncias, e até por entre grandes sofrimentos.

Isto é o que encontramos ao longo dos Actos dos Apóstolos, protagonizados pela Igreja animada pelo Espírito Santo. Os Apóstolos deixam o sinédrio “cheios de alegria, por terem sido considerados dignos de sofrer vexames por causa do Nome de Jesus” (Actos 5,41). O Espírito leva Paulo e Silas a cantar na prisão de Filipos. E assim continuou a ser ao longo da história da Igreja, nas vidas de todos os que se entregaram ao Espírito. São Francisco de Assis e Madre Teresa de Calcutá alegraram-se na sua pobreza. Tal como Paulo e Silas em Filipos, também São Maximiliano Kolbe cantou na câmara da morte em Auschwitz.

Vivemos num tempo zangado, sem humor. E há muitas coisas sobre as quais devemos estar zangados. Ainda assim, embora toda a gente deseje a alegria, a maioria das pessoas contentam-se com o prazer. Embriagados pelo Espírito, os cristãos devem revelar a alegria que só Ele traz e que Deus deseja para todos.

Mais, o homem embriagado fala livremente – aliás, até demasiado livremente para boa companhia. Há um descuidado nas suas palavras e acções. Está inconsciente ou despreocupado com o que as pessoas pensam ou dizem dele. Não busca a aprovação dos outros com as suas palavras. Assim também, todos os que são conduzidos pelo Espírito devem falar com a mesma candura e sem se preocuparem com o respeito dos homens. Deve haver uma certa negligência e audácia quando se fala da fé.

Não é que isso nos permita sermos ordinários ou arrogantes. Disso já temos o que baste. Antes, dá-nos a coragem de falar com alegria sobre as questões difíceis e complicadas da fé, sem procurar adequá-las ao pensamento do mundo. Ao fazê-lo, encontramo-nos em boa companhia – não só a de Pedro e dos Apóstolos no Pentecostes, mas também do Senhor quando a sua própria família anunciou “está fora de si” (Marcos 3,21).

Mas também é preciso sobriedade. Esta não é uma embriaguez que arruína vidas e leva ao arrependimento. Pelo contrário, traz maior sobriedade, uma razoabilidade mais profunda e uma maior claridade de pensamento e de palavra. Em Éfeso os artesãos revoltaram-se contra Paulo e os outros discípulos que tinham “virado o mundo de pernas para o ar” (Actos 17,6). O Cristianismo virou de facto o mundo pagão às avessas. Mas fê-lo apenas para introduzir uma nova forma de pensar, que já não estava alinhada só com o pensamento humano, mas com a sabedoria divina. Se esta embriaguez vira as coisas às avessas, é só para as colocar numa base mais firme.

Um outro paradoxo desta sóbria embriaguez é o facto de nos ter sido adquirida pela triste Paixão de Nosso Senhor. Na sua própria hora de sóbria embriaguez, Cristo conquista para nós o Espírito ao verter o seu Sangue na Cruz. Assim, o dom do Espírito está associado ao Precioso Sangue de Jesus. “Sangue de Cristo, inebria-me”, cantamos no Anima Christi. E na Missa Votiva do Preciosíssimo Sangue, o padre reza depois da comunhão que “sejamos sempre lavados pelo Sangue de nosso Salvador; torne-se ele em nós uma fonte que jorra para a vida eterna.”

E hoje no altar, onde se re-apresenta o verter do seu sangue, rezamos que o Espírito produza nas nossas almas aquela sóbria embriaguez através da qual levamos aos outros a chocante alegria do Evangelho que estabiliza o mundo.


O Pe. Paul Scalia é sacerdote na diocese de Arlington, pároco da Igreja de Saint James em Falls Church e delegado do bispo para o clero. 

(Publicado pela primeira vez no domingo, 28 de Maio de 2023 em The Catholic Thing

© 2023 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.   



Friday, 26 May 2023

A lei é má, mas Deus é Bom

A lei da eutanásia já foi publicada em Diário da República. A partir de agora não há nada a fazer. Ou há? Foi isso que tentei saber neste artigo publicado no The Pillar, em inglês, cuja leitura recomendo.

Uma das pessoas que entrevistei para esta reportagem foi a presidente do Conselho de Ética, que apontou duas grandes falhas na lei, que os deputados ignoraram. Dada a importância das suas palavras para se entender tudo isto, decidi publicar na íntegra a transcrição do que ela me disse, em português, claro. Está aqui, não deixem de ler.

Ainda em inglês, tenho uma pequena nota sobre o assunto na edição desta semana do The Tablet, aqui.

Há anos que escreve sobre a questão da eutanásia. Era bastante evidente que este dia ia chegar, se calhar há sete anos poucos acreditavam que demoraria tanto… Desta vez, notei alguma saturação por parte das pessoas em relação ao assunto, daí que seja importante reafirmar muitas vezes, e de forma clara, que a eutanásia é sobre muito mais do que o direito de alguém escolher como e quando morrer e tem muito mais implicações do que apenas acabar com o sofrimento. A eutanásia estabelece que há vidas que são indignas, e isso é uma monstruosidade. Temos a obrigação de continuar esta luta. Não é fácil, pelo contrário, é muito difícil. Mas ainda bem! Se fosse fácil deixávamos para os outros.

O Papa vai estar em Portugal mais dias do que originalmente previsto. É, claro, uma excelente notícia!

Francisco pede liberdade para a Igreja na China, algo que tarda em manifestar-se!

Recentemente partilhei que o meu filho fez a primeira comunhão. Tenho outro, o mais velho, que será crismado no final do mês. Muitos de vocês estarão na mesma situação, tendo filhos, irmãos ou netos que estão a passar importantes marcos nesta altura, que é também tempo de ordenações. Leiam, por isso, este artigo do Stephen White no The Catholic Thing de hoje. É um texto simples para ler numa altura de incessantes polémicas e guerrinhas, para nos recordarmos de que Deus é Bom. Não é bonzinho, é mesmo Bom. Com B grande e tudo! Louvado seja!

Thursday, 25 May 2023

Doentes poderão pedir eutanásia só para ter direito a cuidados paliativos

Esta é a transcrição integral, no português original, da minha entrevista a Maria do Céu Patrão Neves, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, para a reportagem que publiquei recentemente no The Pillar

Incomoda o facto de os sucessivos pareceres negativos do Conselho terem sido ignorados?

O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida não deu um Parecer negativo ou positivo; apreciou os textos das propostas de lei que lhe foram enviados, identificou os aspectos eticamente problemáticos e apontou caminhos alternativos a considerar, através das suas recomendações.

O facto de entidades públicas, nomeadamente as que detêm competências legislativas, solicitarem parecer ao CNECV, no âmbito das suas competências específicas, e posteriormente não o tomarem em consideração, evidencia que contributos que poderiam ser efectivamente integrados em prol de uma melhoria da qualidade legislativa não foram. São oportunidades perdidas.

 O Conselho tem um largo espectro de sensibilidades ideológicas, filosóficas, com um largo espectro de formação académica, científica, profissional, funcionando quase como uma micro sociedade. Por isso o parecer do conselho e os consensos que são possíveis de construir ao nível do Conselho, reflectem em grande parte a sensibilidade do que seria a sociedade portuguesa, se fosse possível ouvir cada um dos cidadãos.

Daí a nossa convicção de que as recomendações do Conselho deveriam merecer uma atenção maior por parte do legislador. Receamos que, por vezes, quando a lei exige um pedido formal de parecer, quando os processos democráticos de decisão estipulam como conveniente a solicitação de pareceres, nos quedemos pela formalidade, isto é, o parecer é oficialmente solicitado, mas não substantivamente acolhido. Importa reflectir sobre o teor desses mesmos pareceres e integrá-los, mesmo que não necessariamente na íntegra, atendendo a outros valores ou interesses que os legisladores tomem em consideração. Em todo o caso, surpreende-nos que, no mínimo, as grandes questões éticas apontadas pelo Conselho sobre o diploma da eutanásia, bastante sólidas do ponto de vista ético, e consensualizadas entre conselheiros que são a favor e contra a eutanásia, tenham sido ignoradas ou descartadas.

Esta não é uma realidade constante. Há outras situações em que os pareceres do conselho foram acolhidos, ainda recentemente, na regulamentação sobre a gestação de substituição: na segunda proposta de regulamentação, encontramos muitas das recomendações do Conselho à primeira proposta bem integradas. No que diz respeito à eutanásia, lamentavelmente, descartaram-se as recomendações do Conselho, não obstante serem absolutamente estruturantes.

Qual é a principal preocupação do CNECV agora?

Em relação a esta matéria, aguardamos a respectiva regulamentação. A lei já foi promulgada, e fica como está. Agora vamos apreciar a proposta de regulamentação na expectativa que possa vir a acautelar alguns aspectos, certamente menores, que apontámos anteriormente. Quanto aos estruturantes omissos…, perdeu-se a oportunidade. Identifico dois. O primeiro diz respeito ao facto de o texto aprovado e já promulgado sobre a eutanásia prever que quem solicita a eutanásia tem efectivamente acesso a cuidados paliativos. O Conselho pergunta se realmente a solicitação da eutanásia constitui uma porta facilitadora do acesso a cuidados paliativos sabendo-se que, em Portugal, apenas 30% da população que carece de cuidados paliativos tem acesso aos mesmos. 70% dos que necessitam de cuidados paliativos não têm acesso a eles. Agora temos uma lei da eutanásia que afirmar solicitar a eutanásia dá acesso aos cuidados paliativos. Parece francamente discriminatório e, no limite, quase que encorajador da solicitação da eutanásia, mesmo que depois se revogue esse pedido, utilizado como acesso a cuidados paliativos. Claro que esta interpretação é absurda, mas resulta do texto da lei.

O segundo aspecto é também bastante gravoso. Sendo ao abrigo do princípio da autonomia que se descriminaliza a eutanásia, verificamos que todo o poder ao longo do processo está nas mãos do médico orientador. Esta sua quase hegemonia tem o seu corolário no facto de ser ele a escolher e /ou a autorizar quem estará presente no acto de eutanásia. A pessoa que vai ser eutanasiada pode propor as pessoas que gostaria de ter presente nos seus últimos momentos de vida, mas a autorização tem de ser dada pelo médico assistente. Isto é um contrassenso, que não respeita de todo a autonomia de quem solicita a eutanásia.

Estes são apenas dois dos mais graves erros estruturantes que a actual lei apresenta, tendo havido extensa oportunidade para serem corrigir, o que não foi feito.

Vai nomear alguém para a Comissão de Avaliação?

O Conselho nomeará um conselheiro para integrar esta comissão quando tal nos for solicitado.

Wednesday, 24 May 2023

Deus é Bom

Stephen P. White

A minha filha mais velha foi crismada esta Primavera e escolheu como padroeiro o Papa João Paulo II. Foi uma escolha dela, mas da qual eu não poderia aprovar mais. O bispo veio à nossa paróquia e selou-a com o Espírito Santo. A sua cabeça ficou com a fragrância do Crisma, tal como no dia do seu baptismo. Cresceu tanto, como as crianças tendem a fazer, para a eterna alegria (mas também tristeza) dos seus pais.

Agora entrámos na época das Primeiras Comunhões. Na nossa paróquia, tal como noutras paróquias por todo o país, meninos e meninas estão a receber Nosso Senhor na Eucaristia pela primeira vez. O meu filho fez a sua Primeira Comunhão no passado fim-de-semana, juntamente com muitos dos seus amigos e colegas. Foi um momento de grande alegria, com pais e avós cheios de orgulho, a babarem-se com a inocência dos pequenos.

Chegámos meia hora antes da missa começar. O meu filho voltou-se para mim e perguntou: “Pai, quando chegar a hora da Comunhão, já terá passado uma hora desde o pequeno-almoço?” Disse-lhe que seriam quase três horas, não tinha de se preocupar com isso hoje. Sorrimos os dois, mas por razões diferentes: ele, porque tinha cumprido o jejum eucarístico, eu por causa da sua inocência.

Disse-lhe que quando ele recebesse a Eucaristia estaria a receber o próprio Deus – o Deus que criou o universo, que fez tudo o que é bom, que nos criou a nós. Disse-lhe que estaria a receber o mesmo Deus que libertou o seu povo da escravatura no Egipto e que cuidou dele mesmo quando os israelitas pecaram. Disse-lhe que estaria a receber o mesmo Jesus que nasceu a Maria, em Belém, que trabalhou lado-a-lado com José, que curou os doentes e deu vida aos mortos – que sofreu, morreu e ressuscitou para nos libertar do pecado.

E disse-lhe que quando recebemos o corpo e sangue de Jesus, quando estamos unidos tão intimamente a Ele, estamos também unidos a todos os que estão unidos a Ele – aos grandes santos, aos nossos antepassados no céu, à nossa família e amigos, de longe e de perto. Disse-lhe que penso muitas vezes no meu pai, que morreu quando o meu filho era ainda muito pequeno, e como posso sempre encontrar-me com ele no Senhor, na missa. Disse-lhe que por causa disso nunca me sinto sozinho, e que ele, o meu filho, nunca estará sozinho.

E penso para comigo: Ele sabe tudo isto, mas compreende? Compreende verdadeiramente tudo o que eu gostaria que ele percebesse? Sabe o que tudo isto significa? É tão novo. Mas depois lembro-me da expressão na sua cara quando voltou para o seu banco depois de comungar. Radiante. Até brilhava. E não posso se não pensar: Será que eu compreendo? Será que eu compreendo mesmo o que tudo isto significa? Ou tornei-me demasiado sofisticado para o meu próprio bem? “Em verdade vos digo, se não vos transformardes e tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus”. Graças a Deus pela inocência das crianças.

Estamos na época das ordenações. Na minha diocese o bispo ordenará nove novos padres este fim-de-semana. Conheço alguns destes homens. São bons tipos, serão excelentes padres. Somos abençoados.

Esses nove homens foram chamados pelo seu bispo para servir a Igreja com toda a sua vida. Ao responder a esse chamamento estão, sem dúvida, a sacrificar muito mais – e a ganhar muito mais – do que até eles podem verdadeiramente compreender. Serão mudados para sempre, conformados através do sacramento da Ordem ao sacerdócio do Sumo Sacerdote.

Alguém me disse em tempos que se um homem nunca sentiu alguma vontade de ser padre é porque simplesmente não compreende o que é um padre. Acredito que seja verdade. Que homem não compreende o desejo de ser posto de parte, para defender o seu rebanho, para guiar e pastorear as suas ovelhas, até dar a vida por elas?

Que homem não deseja aquela liberdade de compreender aquilo pelo qual está a dar a vida? Que homem não quer dar àqueles que lhe foram confiados um dom maior do que qualquer dom feito por mãos humanas? Que homem não se comove com as palavras do salmo: “um sacerdote para sempre, na ordem de Melquisedeque”?

O matrimónio não é assim. O matrimónio termina na morte: “Na ressurreição eles nem casam nem são dados em casamento, mas são como os anjos do Céu”. Isto costumava entristecer-me. Não porque amo a minha mulher (e amo), nem porque imagino que o Céu será menor por não haver casamento. Sentia-me triste porque todos gostaríamos que as coisas boas perdurassem, até depois da morte. Ficava triste simplesmente porque um dom tão maravilhoso como é o casamento – um dom que nem se perdeu na queda, nem foi levado pelo dilúvio – não perdura na morte.

Mas para aqueles de nós que somos abençoados com filhos, pode-se dizer que perdura, sim. A aliança matrimonial poderá não perdurar para além da morte. O matrimónio poderá não afectar-nos de forma ontológica e indelével, como o baptismo e a ordem. Mas o meu filho será sempre meu filho e da minha mulher. As minhas filhas serão sempre filhas dos dois. A paternidade perdura. A maternidade perdura. Para além da morte.

O Pentecostes está a chegar. Este tempo pascal, tão cheio de graça para a nossa família, a nossa paróquia e nossa diocese terminará na grande solenidade do Espírito Santo. O nosso mundo está quebrado. A nossa Igreja também está ferida. Sobra pecado e sofrimento. Mas o “mundo real” de lá fora não é um mundo diferente daquele que está atravessado pelos ritmos da liturgia, dos sacramentos e da graça.

Não há dúvida de que o Espírito Santo se move pelo mundo. E no meio de todo este aparente caos Ele respira riqueza e a bondade e ordem: Ele renova todas as coisas. É uma maravilha de contemplar.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 18 de Maio de 2023)

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Friday, 19 May 2023

Não basta selo, é preciso não parecer ser do Estado Novo

A polémica religiosa desta semana foi a questão do selo. Os serviços postais da Cidade do Vaticano apresentaramu m selo comemorativo da JMJ que parecia decalcado do livro de leitura da terceira classe do Estado Novo e houve quem não gostasse. Também houve quem não gostasse do facto de no selo figurar o Padrão dos Descobrimentos. Como explico aqui, tenho alguma simpatia pelos primeiros, e nenhuma pelos segundos. A polémica – polemicazinha, vá – chegou de volta à Santa Sé, que decidiu retirar o selo de circulação, tornando-o de um momento para o outro uma joia para os coleccionadores, entre os quais não me incluo.
 
Nem toda a gente criticou o selo. Houve até quem gostasse bastante. O que tenho tentado explicar a essas pessoas é que o gosto pessoal pelo selo ou a sua estética involuntariamente Estado Novo, é irrelevante. A questão está em saber se um selo que remete imediatamente para uma época política divisiva em Portugal serve para representar um evento desta importância e magnitude. Parece-me evidente que não. Da mesma forma, eu gosto muito deste desenho alternativo que fiz usando tecnologia de inteligência artificial, que também evoca um importante símbolo nacional, mas duvido que ele seja consensual.
 
A maioria de esquerda no Parlamento, com a honrosa excepção do PCP, conseguiu finalmente que a eutanásia fosse legalizada e promulgada. Eu estou a preparar um artigo sobre o assunto que espero poder partilhar para a semana, mas entretanto podem ver várias reacções de grupos católicos e religiosos aqui.
 
O Patriarcado de Lisboa emitiu um comunicado pedindo a todas as vítimas ou testemunhos de abusos sexuais na Igreja para por favor contactarem a Comissão Diocesana. Também eu já escrevi sobre esta necessidade. Não basta desejar uma Igreja mais segura, é preciso fazer alguma coisa nesse sentido.
 
A Fundação AIS em Portugal inaugurou uma exposição sobre o drama dos raptos e violência contra raparigas cristãs em países onde estas são minoria.
 
Na semana passada falei do importante gesto que foi o Papa Francisco convidar o Papa Tawadros, da Igreja Copta Ortodoxa, a falar com ele numa audiência geral. Nessa altura ainda não sabia que o Papa iria decidir inscrever no martirológio católico os 20 coptas ortodoxos e um ganês de confissão desconhecida que foram mortos pelo Estado Islâmico em 2015. Um gesto ecuménico magnífico e belíssimo.
 
Não deixem de ler o artigo desta semana do The Catholic Thing em que Robert Royal alerta para a importância não só de identificar e combater os vícios que existem no nosso tempo, mas também as virtudes desordenadas que podem causar ainda mais prejuízos.É um texto importante para compreender o estado actual da nossa cultura, e vem com uma excelente citação de G.K. Chesterton.

Thursday, 18 May 2023

Reacções à legalização da eutanásia

Aqui pretendo juntar as várias reacções que vão surgindo, de organizações de teor religioso, à legalização e promulgação da lei da eutanásia. Agradeço que partilhem outras que possam ainda não constar, para acrescentar. 

Conferência Episcopal Portuguesa

Comungamos da tristeza do Papa Francisco manifestada no passado dia 13 de maio, após a confirmação parlamentar do diploma sobre a morte medicamente assistida: “Hoje estou muito triste, porque no país onde apareceu Nossa Senhora foi promulgada uma lei para matar. Mais um passo na grande lista de países com eutanásia”.

Como reafirmámos por diversas vezes ao longo do processo legislativo que agora chegou ao seu termo, com a legalização da eutanásia quebra-se o princípio fundamental da inviolabilidade da vida humana e abrem-se portas perigosas para um alargamento das situações em que se pode pedir a morte assistida.

Com a despenalização da eutanásia, a vida humana está desprotegida e sofre um grave atentado ao seu valor e dignidade. A morte passa a ser apresentada como solução para a dor e sofrimento, ao invés de uma promoção dos cuidados paliativos humanizantes até ao fim natural da vida.

Leia o comunicado na íntegra aqui

Associação de Juristas Católicos

[A AJC] quer também deixar claro que este combate em defesa da vida não termina agora.

Está ainda aberta a possibilidade de declaração, através da fiscalização sucessiva, de inconstitucionalidades da lei em aspetos ainda não analisados pelo Tribunal Constitucional.

Há que apoiar os médicos e profissionais de saúde que, de diferentes modos, tentarão preservar as ancestrais normas deontológicas que, mais do que quaisquer outras, definem a sua missão ao serviço da vida.

Porque em democracia não há leis irreversíveis, não desistimos de propor a revisão desta lei na primeira ocasião em que tal venha a ser possível. A experiência de outros países diz-nos que é muito difícil e reversão de leis como esta (pelo contrário, têm-se sucedido muito rapidamente leis cada vez mais permissivas). Mas considerar intocável e indiscutível a legalização da eutanásia e do suicídio assistido contraria todos os princípios e regras democráticas.

Leia o comunicado na íntegra aqui

Associação dos Médicos Católicos Portugueses

Portugal vive hoje um dia negro da sua história, uma ocasião de afrontamento à dignidade dos portugueses.

Manifestámos publicamente, por mais diversas vezes, mormente desde que o processo parlamentar se iniciou, em 2017, quer junto dos órgãos decisórios quer junto da opinião pública, a nossa radical oposição à legalização da eutanásia em Portugal. 

Esta firme oposição mantém-se hoje como então e assenta na ética médica e no Código Deontológico, que não pactuam com a lei aprovada.

De novo reiteramos que a eutanásia e o suicídio assistido atentam contra a própria Medicina, são atos vedados aos médicos, não são atos médicos.

Quando os médicos se deparam com um doente em sofrimento de grande intensidade, cuidam e acompanham-no com humanidade e proximidade. Dispomos hoje de meios muito eficazes, para apaziguar o sofrimento físico, psicológico e espiritual dos nossos doentes.

Leia o comunicado na íntegra aqui

Grupo de Trabalho Inter-Religioso | Religiões-Saúde

A aprovação da lei que agora se discute constituiria um tremendo e grave ato de demissão coletiva face aos membros mais vulneráveis da sociedade que constituímos, para com os seus membros mais frágeis. Ora, há um princípio ético que as religiões que representamos ofereceram à civilização que somos, de tal modo que, tendo origem religiosa, faz já parte do sentir comum da sociedade, constituindo um traço civilizacional essencial, determinante e estruturador: os mais vulneráveis têm no próprio facto da sua vulnerabilidade um título de especial dignidade e requerem especial solicitude.

(…) 

A situação que decorreria da legalização da eutanásia e do suicídio assistido, precisamente porque pode empurrar para a morte os frágeis e os vulneráveis, é um atentado aos seus direitos humanos fundamentais: a vida, a dignidade e a liberdade. Ainda que isto seja supostamente feito em nome da qualidade de vida, da dignidade da pessoa e da liberdade individual.

(...)

Aliança Evangélica Portuguesa; Comunidade Hindu Portuguesa; Comunidade Islâmica de Lisboa; Comunidade Israelita de Lisboa; Igreja Católica; Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias; Patriarcado Ecuménico de Constantinopla; União Budista Portuguesa; União Portuguesa dos Adventistas do Sétimo Dia

Leia o comunicado na íntegra aqui

Federação Portuguesa pela Vida

A Federação pela Vida lamenta o dia, que se vestiu de negro, por ter sido promulgada a lei da Eutanasia. Triste! Dor e tristeza!

O País foi esquecido, os cidadãos ignorados, os valores do Humanismo descartados, a Ciência envergonhada, os profissionais de saúde ostracizados e dezenas de creditadas Instituições que se pronunciaram, foram silenciadas.

A aprovação e promulgação desta lei é um retrocesso e um caminho para a barbarie.

Leia o comunicado na íntegra aqui

Wednesday, 17 May 2023

A que devemos comparar esta geração?

Robert Royal

Um dos aspectos mais impressionantes dos Evangelhos é a facilidade com que Jesus profere frases inesquecíveis, do género que grandes pensadores e poetas só muito raramente conseguem produzir. O escritor americano Randall Jarrell disse que: “Um bom poeta é alguém que, numa vida inteira de se colocar no meio de tempestades, consegue ser atingido cinco ou seis vezes por relâmpagos. Se for uma ou duas dezenas de vezes, então é verdadeiramente grande”. Jesus era – claramente – muito mais que um poeta. Mas não deixa de ser incrível que ele possa ter dito mais coisas memoráveis em poucos minutos de um dia normal do que qualquer outra figura na história. Coitados dos biblistas míopes – ou os muitos por eles influenciados – que crêem que uma boa parte daquilo foi inventada por um bando de pescadores, cobradores de impostos e pregadores itinerantes.

Os ditos, frequentemente simples, de Cristo, são tão grandiosos que mesmo uma multidão de teólogos, filósofos, santos, místicos, mártires, padres, bispos e até papas, ao longo de milénios, só conseguiram começar a compreender o que Ele disse. E, porém, ao mesmo tempo, as suas palavras têm atingido os corações de pessoas comuns, não só nos tempos dele, mas ao longo dos tempos, nas mais diversas culturas, apesar de obstáculos aparentemente inultrapassáveis. São Tomás de Aquino acreditava que um dos maiores milagres do Cristianismo era o facto de um grupo de homens humildes, de uma província longínqua, terem conseguido converter o maior império daqueles tempos, Roma. Trata-se de um mero facto histórico, e foi dito muito antes de a fé ter chegado à América, à maior parte de África, Ásia e ao mundo inteiro.

Esse facto é particularmente reconfortante agora que tudo parece estar ameaçado, pois sugere que por mais que as coisas pareçam ensombradas agora, tanto na Igreja como no mundo, o Evangelho tem mostrado ter um poder escondido e imprevisível. Sempre excedeu o que poderíamos “razoavelmente” esperar. E pode voltar a fazê-lo, a qualquer momento, ainda hoje.

Por outro lado, parece justo preocupar-nos com esta geração que parece não só estar submerso no lodo habitual de pecado e ignorância. A nossa incultura ocidental parece apostada em não só opor-se, como apagar mesmo a memória dos melhores dos nossos antepassados, que fizeram de nós quem somos.

Chega a pintar o passado como um conto irrepetível de opressão – escravatura, patriarcado, colonialismo, “privilégio branco”, etc. Mas todas essas acusações, embora parcialmente verdadeiras, estão a ser usadas não apenas para criticar elementos do passado, mas para obliterar o conhecimento da nossa tradição, que é uma combinação valiosíssima de elementos greco-romanos, bíblicos, medievais, renascentistas, iluministas e modernos. As nossas escolas e universidades dão a impressão de que não vale a pena ensiná-la, quanto mais recordá-la. Todas as culturas são agora “afirmadas” – excepto uma. Nunca aconteceu nada deste género.

Quando as coisas parecem estar mesmo mal, existe uma tentação humana de considerar que é uma situação sem precedentes. Mas esse parece ser mesmo o caso actual. Vale a pena, contudo, recordar um dos ditos de Jesus que parece referir-se ao passado, mas como em tudo o que ele diz, também se aplica a nós. “A que podemos comparar esta geração?” (Mt. 11, 16) No seu tempo, diz ele, as pessoas nem regozijam como deve ser perante as boas notícias, nem lamentam as más. As suas visões das coisas, e por isso as reações às mesmas, estavam distorcidas.

Também o nosso tempo revela reacções estranhas, de um tipo de que vale a pena tomar nota. Chesterton já tinha reparado em parte nisto há um século:

Chesterton
Quando se estilhaça um esquema religioso (como o Cristianismo foi estilhaçado com a Reforma) não são apenas os vícios que ficam à solta. Os vícios ficam, de facto, à solta, e deambulam, e prejudicam. Mas as virtudes também são libertadas; e as virtudes deambulam ainda mais, e as virtudes causam prejuízo ainda maior. O mundo moderno está cheio das antigas virtudes cristãs enlouquecidas. As virtudes enlouqueceram porque se isolaram umas das outras e estão a deambular sozinhas. Assim, alguns cientistas preocupam-se com a verdade; e a sua verdade não tem misericórdia. Assim, alguns humanitários preocupam-se apenas com a misericórdia, e a sua misericórdia (lamento dizê-lo) frequentemente não é verdadeira.

Isso explica muita da actual cultura “woke” e de “sinalização de virtudes”. Há muito que compreendemos que nas questões morais, como diz Santo Agostinho, o mal é a ausência de algum bem, qualquer coisa que devia estar presente mas não está, ou que está, mas num grau demasiado grande ou demasiado pequeno. Por outras palavras, é um afastamento da ordem plena do nosso universo. A Igreja é “Católica” precisamente porque é universal, “kata-holos”, em grego, “de acordo com o todo”.

Um excelente contraexemplo é a actual loucura do movimento “trans”. Trata-se de mais do que grupos e indivíduos radicais a promover a mutilação infantil sob o disfarce de “cuidados de afirmação de género”. Uma virtude – a compaixão por jovens com ideias confusas sobre género – cresceu e atingiu proporções tão monstruosas que eclipsou tudo, desde os simples factos da bilogia até milhares de anos de experiência humana. Basta pensar no que significa quando pessoal com formação médica fala em “género atribuído à nascença”, como se a observação normal de que um recém-nascido é rapaz ou rapariga fosse uma mera convenção, notada por um burocrata desconhecido e porventura tendencioso.

Seria fácil gozar com tudo isto, não fosse o facto de haver crianças a serem cirurgicamente desfiguradas ou a levar doses cavalares de químicos para evitar que os seus corpos se desenvolvam de acordo com as suas naturezas.

E é por isso que me parece que há outro factor em jogo, para além do enlouquecimento das virtudes, de que fala Chesterton. É cada vez mais evidente que há um elemento demoníaco em tudo isto.

O Demónio não tem nada de seu para nos propor, por assim dizer. Apenas pode recorrer aos bens criados pelo Criador para tentar criar desordem na criatura. Um dos grandes desafios para os cristãos na presente geração é conseguir identificar e resistir às virtudes desordenadas, e poder resistir às ofensas sobre preconceitos e ódio, reafirmando antes a plenitude da verdade – e do amor. Não é tarefa pequena, nem fácil. Mas foi a ela que a Divina Providência nos chamou.


Robert Royal é editor de The Catholic Thing e presidente do Faith and Reason Institute em Washington D.C. O seu mais recente livro é A Deeper Vision: The Catholic Intellectual Tradition in the Twentieth Century, da Ignatius Press. The God That Did Not Fail: How Religion Built and Sustains the West está também disponível pela Encounter Books.

(Publicado pela primeira vez na Segunda-feira, 15 de Maio de 2023 em The Catholic Thing)

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Tuesday, 16 May 2023

O selo do Vaticano para a JMJ

Está aí uma nova polémica, desta vez com o selo do Vaticano que comemora a Jornada Mundial da Juventude de Lisboa 2023.

Tanto quanto consigo perceber há duas razões pelas quais o selo está a ser criticado:

Por aqueles que simplesmente não gostam do desenho, nomeadamente porque tem tons inegáveis de arte do Estado Novo, com as criancinhas a seguir o líder – neste caso o Papa – enquanto abanam bandeiras nacionais. Neste contexto, o Padrão dos Descobrimentos não ajuda.

Por aqueles que identificam o próprio padrão dos descobrimentos como um símbolo fascista, e por isso opõem-se ao seu uso neste ou em qualquer outro contexto.

Sem me querer alongar, simpatizo com os primeiros e não tenho grande paciência para os segundos.

Em relação ao primeiro ponto, parece-me que bastaria que alguém em Portugal tivesse olhado para o selo para poder identificar as suas fragilidades estéticas. Isto não aconteceu? Noutros casos semelhantes a emissão de selos foi feita em conjunto com os serviços postais dos respectivos países, houve algum contacto com os CTT a este respeito? Já não seria expectável que o artista italiano que desenhou o selo tivesse conhecimentos para saber que o Padrão dos Descobrimentos, que é de facto um monumento magnífico e emblemático de Lisboa, tem esta associação tão grande ao Estado Novo e aos descobrimentos, que a Torre de Belém e os Jerónimos, por exemplo, não têm.

Por fim, cumpre dizer que esta polémica, por mais piada que possa ter, não é mais do que um fait divers. É um selo, não um manifesto político; é uma emissão do Estado do Vaticano, não de Portugal; é de um artista italiano, não português. O mundo continua e não será certamente isto que vai manchar as memórias que a JMJ vai deixar nas mentes dos lisboetas e dos portugueses.

Para permitir alguma comparação, junto aqui os selos de edições das JMJ anteriores. Penso que não há mais do que estes, pelo menos eu não encontrei.








Friday, 12 May 2023

Papas a preto e branco

A semana passada enganei-me no link to principal artigo que queria partilhar convosco, com novidades e comentários sobre as famosas listas de alegados abusadores, tanto das dioceses como dos institutos religiosos. Está aqui o link correcto.

O líder da Igreja Copta Ortodoxa, o Papa Tawadros II – Tawadros significa Teodoro, mas ele costuma ser referido pelo nome copta – esteve em Roma onde participou, de forma inédita, numa audiência geral com o Papa Francisco. Trata-se de um gesto ecuménico de enorme magnitude, que permitiu ter dois Papas lado-a-lado, um de preto, outro de branco. O ecumenismo faz-se de diálogo doutrinal profundo e intenso, mas também de gestos de amizade pessoal que ajudam a quebrar barreiras de desconfiança que às vezes têm vários séculos. Se nunca ouviu falar, ou não sabe nada sobre esta comunidade, recuperei e actualizei este artigo onde se explica o essencial de quem são os coptas.

No sábado passado tivemos a coroação do Rei Carlos III. Foram muitos os que viram a celebração na televisão e terão reparado em vários detalhes religiosos. Eu gostaria de ter visto, não só porque sou monárquico, mas porque enquanto descendente de ingleses e nascido no Canadá, Carlos é em vários sentidos o meu Rei também. Contudo, não o pude fazer porque tive a primeira comunhão de um dos meus filhos, e há um Rei que mais importantes que os outros. Já tinha partilhado o link para a entrevista em inglês que fiz ao antigo capelão real, sobre a espiritualidade de Carlos, e agora já posso partilhar o link para a entrevista portuguesa.

Por estes dias muitos são os que estão a caminho de Fátima (incluindo esta peregrina muito especial). As celebrações deste mês ficam a cargo do Cardeal Parolin. Podem ler aqui uma entrevista exclusiva que ele deu à Renascença.

Os médicos católicos estão a pedir voluntários para a área da saúde durante as JMJ. Se tem interesse, leia aqui para saber o que tem de fazer.

Um dos pontos altos da minha viagem ao Líbano em 2022 com a AIS foi o tempo passado com os seminaristas maronitas em Beirute. O artigo sobre essa parte da visita só foi publicado agora, e convido-vos a ler e a inspirarem-se com a alegria e a paixão evangélica destes jovens. Leiam também, se puderem, a história das freiras que acompanham os migrantes que passam pela Colômbia para tentar chegar aos EUA.

No artigo desta semana do The Catholic Thing o autor Casey Chalk explica como uma doutrina pouco conhecida, mas fundamental para os protestantes, levou este antigo seminarista calvinista a pôr tudo em causa e acabar por entrar para a Igreja Católica.

Por fim, têm aqui informação interessante sobre o ciclo de conferências que a Associação de Juristas Católicos está a organizar até novembro, sendo o próximo já na sexta-feira da semana que vem.

Thursday, 11 May 2023

Ciclo de Conferências - Juristas Católicos

A Associação de Juristas Católicos está a organizar um ciclo de conferências que vai tratar uma série de questões fundamentais para os nossos dias.

O ciclo subordina-se ao tema “Pensar a Constituição à luz da Doutrina Social da Igreja”, e pretende refletir sobre temas da atualidade constitucional, enriquecendo o debate em torno de uma possível revisão constitucional. A próxima conferência será no dia 16 de maio, 3ª feira da próxima semana, e será subordinada ao tema “Direitos, Liberdades e Garantias”. Contará com o Prof. Jorge Pereira da Silva (numa intervenção sobre Direitos Fundamentais na era digital), e o Dr. José Maria Cortes (que falará sobre objeção de consciência). As conferências são abertas ao público e decorrem todas na UACS (Rua Castilho, n.º 14) às 19h e são transmitidas em direto no canal de Youtube da Associação.  




Quem são os Coptas?

Os coptas são os descendentes dos egípcios antigos e a sua presença no país antecede a invasão árabe do século VII.

O Cristianismo existe no Egipto desde a sua aurora. A tradição atribui a evangelização naquela região ao Evangelista São Marcos, que terá sido bispo de Alexandria.

Desde os primeiros tempos da era cristã Alexandria assumiu uma enorme importância na Igreja Universal. Era um grande centro de educação cristã e só se encontrava atrás de Roma na hierarquia dos primeiros quatro Patriarcados – Roma, Alexandria, Antioquia e Jerusalém.

Foi na região do Egipto que nasceu a tradição do monaquismo, preconizada por Santo Antão. Ainda hoje os mosteiros são uma pedra angular da cultura e espiritualidade cristã copta, incluindo uma iconografia muito rica e distinta. Um exemplo é o ícone de São Minas e Cristo, que foi adoptado pela comunidade ecuménica de Taizé.
A palavra Copta deriva do egípcio Aegiuptos, que significa nada mais nada menos que “egípcio” e desde a invasão árabe passou a designar os habitantes originais do país, que na sua maioria mantiveram o Cristianismo.

Não há estatísticas fiáveis, mas calcula-se que os cristãos coptas representem entre 10% a 20% da população, o que equivale a entre 8 e 16 milhões de fiéis. A esmagadora maioria pertence à Igreja Copta Ortodoxa, liderada pelo Patriarca de Alexandria, Papa Tawadros II eleito em Novembro de 2012. Esta Igreja separou-se da Igreja Universal depois do concílio de Calcedónia, devido a divergências teológicas sobre a natureza de Cristo. Faz parte da comunhão de Igrejas Ortodoxas pré-calcedónias juntamente com a Igreja Arménia Ortodoxa, a Igreja Siríaca Ortodoxa, a Igreja Ortodoxa Etíope e a Igreja Malankara, da Índia. As divergências que levaram à separação já foram sanadas através de declarações conjuntas entre estas igrejas e a Igreja Católica, mas a separação mantém-se. A utilização do título "Papa" pelo líder dos coptas é antiga e nada tem de pretensão ou usurpação da autoridade do Papa da Igreja Católica. 

Existem ainda outras confissões cristãs no Egipto, incluindo algumas igrejas coptas protestantes e uma pequena Igreja Copta Católica, com umas centenas de milhares de fiéis.

Há também uma importante diáspora copta em países ocidentais, tal como a Austrália, Estados Unidos ou Reino Unido. Em Portugal os cristãos coptas, de diferentes confissões, contam-se pelos dedos.

Há longos anos que os coptas se queixam de discriminação política, religiosa e social. A comunidade praticamente não está representada nas forças armadas, na polícia ou no sistema judicial. Desde o regime de Mubarak que é extraordinariamente difícil construir ou sequer restaurar igrejas, enquanto as leis que regem as mesquitas são muito mais permissivas. 

Mesmo assim, muitos coptas temeram as revoltas da Primavera Árabe, que levaram ao derrube de Mubarak, mas milhares de cristãos, sobretudo jovens, estiveram nas ruas a contribuir para a libertação do país. Os medos dos mais cépticos pareceram justificados quando um Governo da Irmandade Muçulmana venceu as primeiras eleições, e a situação começou a deteriorar-se para os cristãos que, sem grandes surpresas, apoiaram na maioria a revolta do general Sisi que levou ao derrube desse governo.

A situação interna melhorou sob a alçada de Sisi, mas a aparente colagem ao homem forte do Egipto tem servido para hostilizar ainda mais os jihadistas que, num dos piores episódios de violência contra os coptas, decapitaram 21 cristãos numa praia na Líbia, em Fevereiro de 2015. Seguiram-se outros atentados contra a comunidade copta dentro do Egipto. Em 2017 morreram perto de 30 cristãos que estavam em peregrinação para um mosteiro no deserto quando foram interceptados por terroristas que abriram fogo sobre os civis desarmados.

Coptas etíopes?
Por vezes os cristãos da Etiópia são apelidados de coptas também. Isto deve-se ao facto de esta Igreja ancestral (a Etiópia é o país cristão independente mais antigo do mundo) ter estado na esfera de influência dos Patriarcas de Alexandria durante muitos séculos.

Eram estes quem nomeava um bispo para reger a Igreja Etíope, ordenar sacerdotes e resolver disputas teológicas e litúrgicas. A Igreja Etíope apenas se tornou independente em 1959, com a nomeação de um Patriarca próprio.

Em bom rigor, porém, o termo copta apenas se aplica correctamente aos cristãos de origem egípcia.

[Texto publicado originalmente a 13 de Outubro de 2011, actualizado no dia 11 de Maio de 2021]

Wednesday, 10 May 2023

A Instrutiva Obscuridade das Escrituras

Quando as pessoas descobrem que eu já fui um seminarista calvinista, a reacção típica é perguntar-me porque é que decidi tornar-me católico. A razão inclui referências a uma doutrina de que a maioria dos católicos – e mesmos os protestantes – nunca ouviu falar: perspicuidade, também conhecida como claridade.

A perspicuidade não é uma das cinco “solas” que compõem as doutrinas centrais da Reforma Protestante: sola scriptura, sola fide, sola gratia, solus Christus, e soli deo gloria. Não obstante, ela foi afirmada por todos os principais pensadores da Reforma, Lutero, Calvino, Zwingli e Cranmer. E, ainda que não seja frequentemente pregada a partir dos púlpitos protestantes, ela é a doutrina que destranca todas as outras doutrinas protestantes, como defendo no meu novo livro “The Obscurity of Scripture”. Passo a explicar.

Pese embora não exista uma definição única sobre a qual todos os protestantes concordam, a perspicuidade significa, de forma geral, que a Bíblia é clara. Alguns defendem que a Bíblia é clara no que diz respeito às “verdades essenciais da fé cristã”, outros que é clara no que diz respeito ao Evangelho e outros ainda que é clara em todo o seu conteúdo.

Em todo o caso, a definição mais comum de perspicuidade é aquela que se lê na Confissão de Fé de Westminster, um documento dos presbiterianos ingleses, publicado em 1647, onde se lê:

Na Escritura não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos; contudo, as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação, em um ou outro passo da Escritura são tão claramente expostas e explicadas, que não só os doutos, mas ainda os indoutos, no devido uso dos meios ordinários, podem alcançar uma suficiente compreensão delas.

Por outras palavras, a Bíblia é clara pelo menos no que diz respeito ao que é necessário para a salvação. A primeira vez que encontrei esta doutrina foi na universidade, quando estava a ler as obras do pensador reformado R.C. Sproul. A ideia fez imediatamente sentido para mim: se nós, protestantes, acreditamos que a Escritura é a única medida infalível da fé, então claro que deve haver algum princípio que o torna acessível ao cristão individual. De outra forma regressaríamos ao paradigma em que precisaríamos de recorrer a alguma autoridade externa. Mas não era precisamente isso que a primeira geração da reforma estava a repudiar na sua revolta contra Roma?

Mas havia um dilema: os protestantes discordam sobre quase tudo, incluindo aquilo que é necessário para a salvação. É verdade que isto pode parecer um problema fácil de resolver, mas algumas interpretações protestantes parecem contradizer não só o pensamento dos primeiros reformistas, como até mesmo o direito natural. O meu curso sobre as Epístolas de São Paulo, por exemplo, incluía um livro com interpretações pró-LGBTQ, o que me pareceu altamente improvável.

Mas outros debates entre protestantes eram um pouco mais complicados. Nos meus estudos religiosos na Universidade de Virgínia, e depois no seminário calvinista, aprendi sobre algo chamado “Nova Perspectiva sobre Paulo” (NPP), cujos defensores questionavam (se é que não atacavam abertamente) a doutrina de sola fide como não sendo bíblica. Enquanto defensor da sola fide, eu não gostava da NPP, mas este não era um qualquer movimento académico politizado que pudesse ser facilmente descartado. Mesmo o bispo N.T. Wright, um bispo anglicano e bastião da ortodoxia em assuntos como a veracidade da ressurreição, estava no campo da NPP.

Tentei chegar ao fundo da questão sobre a NPP, li livros a favor e contra, tentei aprender grego bíblico para poder interpretar sozinho as cartas de Paulo, e passei literalmente anos a tentar adquirir a certeza completa de que os defensores da NPP estão errados.

Mas quando cheguei ao verão de 2010 estava num impasse. Não estava mais próximo de determinar se os académicos da NPP estavam certos ou errados sobre São Paulo (e por extensão sobre a sola fide e todo o projecto da Reforma Protestante). Os académicos de ambos os lados eram mais instruídos do que eu, mais inteligentes do que eu e tinham pensado muito mais a fundo sobre São Paulo do que eu alguma vez poderia.

Foi então que me ocorreu. O ponto do protestantismo não era de que as verdades bíblicas essenciais, aquelas que dizem respeito à salvação, são claras, até para os cristãos menos instruídos, desde que as abordem como humildade e procurem a ajuda do Espírito Santo? Mas aqui estava eu, imerso num debate cultural, histórico e arqueológico sofisticado, para não falar da tentativa de compreender o vernáculo para compreender uma Bíblia supostamente “clara”.

E isto era só a ponta do icebergue. Os calvinistas discordam sobre se os bebés devem ser baptizados (os presbiterianos dizem que sim, os baptistas reformados que não). Lutero e Zwingli tiveram uma discussão muito pública (e muito feia) sobre o significado da Eucaristia no Colóquio de Marburgo. O baptismo e a Eucaristia não são também doutrinas essenciais? Segundo algumas tradições cristãs são essenciais para a salvação.

Foi então que, para mim, o protestantismo colapsou enquanto sistema coerente e intelectualmente defensável. Claramente a Bíblia não é clara sobre aquilo que é necessário para a salvação. Os protestantes não estão apenas em desacordo com os católicos sobre estas coisas, estão em desacordo uns com os outros.

Mas sem a perspicuidade, a doutrina que permite ao cristão individual fazer sentido da Bíblia, esse mesmo cristão precisaria de recorrer a alguma autoridade interpretativa. Compreendi então que no seu cerne, o protestantismo é individualista. Estava por minha conta na compreensão do Cristianismo, livre para decidir o que significa e o que constitui o Cristianismo autêntico, mas já não sentia confiança para o fazer. Que mandato é que Cristo me tinha dado a mim, Casey Chalk, de Virginia, para exercer autoridade infalível sobre a interpretação da Bíblia?

Mas sabia que havia uma instituição que reivindicava, de forma pelo menos plausível, essa autoridade. Tratava-se da instituição religiosa em que eu tinha sido formado. Essa instituição, a Igreja Católica, afirmava ter uma autoridade interpretativa extra-bíblica, uma que eu poderia avaliar sem afirmar ser o juiz final do significado da Bíblia.

Nesse mesmo ano estudei essa posição. Em Setembro de 2020 tinha-me decidido a regressar à Igreja da minha infância. A claridade, compreendi eu, não era clara. Mas a Igreja Católica, possuindo aprovação divina – algo em que podemos confiar através daquilo que o Catecismo apelida de “motivos de credibilidade” – podia dizer-me o que a Bíblia significa verdadeiramente. Confiando nos seus motivos de credibilidade, nunca mais olhei para trás.


Casey Chalk escreve para a Crisis MagazineThe American Conservative e a New Oxford ReviewÉ licenciado em história e ensino pela Universidade de Virgínia em tem um mestrado em Teologia da Cristendom College.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no Domingo, 7 de Maio de 2023)

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Friday, 5 May 2023

Listas fechadas e cabeças coroadas

A semana passada a Comissão Independente entregou as listas de suspeitos de abusos aos líderes dos institutos religiosos. Com estes dados já temos as duas listas fechadas, mas continuamos com algumas falhas de informação. Passei os últimos dias ao telefone a tentar suprir algumas dessas falhas e tive algum sucesso, embora não total. Por exemplo, consegui determinar a que dioceses pertenciam os padres que estavam listados em dioceses erradas, o que conduziu a umas conclusões inesperadas… Está tudo aqui, vejam por vocês.

Recordo que podem sempre consultar esta análise mais detalhada das listas e aqui verem em detalhe todos os casos que são públicos em Portugal, pré e pós relatório e listas, elencados por diocese ou ordem religiosa.

Há dias entraram em vigor as novas regras do Vaticano sobre situações de abusos. Fui entrevistado pelo Observador sobre este assunto, podem ouvir aqui.

Entretanto membros da Comissão Independente e dos bispos estiveram numa comissão parlamentar para falar dos abusos. A Comissão Independente repetiu a ideia de abrir excepções ao segredo de confissão e os bispos explicaram que isso simplesmente não vai acontecer.

Claro que este assunto não se limita a Portugal. Nos Estados Unidos saiu recentemente outro relatório, desta vez sobre a diocese de Baltimore e que teve umas conclusões muito interessantes. Leiam.

Estamos a dois dias da coroação de Carlos III, de Inglaterra. Em antecipação, entrevistei um clérigo da Igreja da Escócia, que foi capelão da Família Real no tempo de Isabel II, e que elogia a profundidade da fé de Carlos, e a sua dedicação à liberdade religiosa. Podem ler essa entrevista aqui, em inglês, mas entre amanhã e sábado aparecerá uma versão mais curta em português, na Renascença, que partilharei na próxima semana.

A AIS Portugal tem duas histórias tocantes, uma sobre a reconciliação entre tutsis e hutus no Ruanda, e outra sobre um novo sequestro de padres na Nigéria. Leiam e rezem por ambos os projectos, e não se esqueçam de apoiar a obra desta organização.

Termino com a recomendação de que comprem e leiam o mais recente livro de Aura Miguel, a vaticanista que recentemente acompanhou o Papa à Hungria, onde Francisco voltou a dizer que está dedicado a encontrar uma solução para a guerra na Ucrânia.