Wednesday, 31 May 2023

Sóbria Embriaguez

Pe. Paul Scalia

Coitado de São Pedro. A primeira mensagem Urbi et Orbi, por assim dizer, do primeiro Papa, começou de forma pouco auspiciosa. Não foi com uma audaz proclamação de Cristo, mas sim com um desmentido de que os discípulos estivessem bêbados. “Homens da Judeia e todos vós que residis em Jerusalém, ficai sabendo isto e prestai atenção às minhas palavras. Não, estes homens não estão embriagados como imaginais, pois apenas vamos na terceira hora do dia” (Actos 2, 14-15).

É uma cena com bastante piada, e merece estar incluída na primeira leitura do Domingo de Pentecostes – mas não só pelo humor. São Pedro toca aqui num aspecto antigo, mas essencial da devoção ao Espírito Santo: a sóbria embriaguez. Talvez mais valia ter dito que de facto os apóstolos estavam embriagados, mas não da forma como as multidões supunham. Estavam sob o efeito da sóbria embriaguez do Espírito Santo que mais tarde seria encorajada por São Paulo: “E não vos embriagueis com vinho, que leva à vida desregrada, mas deixai-vos encher do Espírito” (Efésios 5,18).

Santo Ambrósio pegaria mais tarde neste tema e escreveria o verso: Laeti bibamus sobriam ebrietatem Spiritus – “Alegres bebamos a sóbria embriaguez do Espírito”, enquanto ensinava que “aquele que se embriaga de vinho cambaleia; aquele, porém, que se inebria do Espírito Santo é enraizado em Cristo. Verdadeiramente excelente é esta embriaguez que produz a sobriedade da alma!” Esta é uma embriaguez que não conduz ao cambalear a arrastar da voz, mas à estabilidade e à clareza. Temos de deixar que o Espírito a produza em nós.

Tal como qualquer paradoxo, é preciso que ambas as partes sejam professadas com igual força. A embriaguez que não seja do espírito é devassidão, ou, na melhor das hipóteses, patetice. A sobriedade sem esta embriaguez é rígida e morta, sem a liberdade que o Espírito concede.

Talvez a característica mais evidente de uma pessoa embriagada seja a alegria. Isso condiz bem com o fruto que o Espírito Santo deseja produzir em nós, a distintiva alegria dos seguidores de Cristo. Trata-se da própria alegria de Deus que a alma possui, independentemente das circunstâncias, e até por entre grandes sofrimentos.

Isto é o que encontramos ao longo dos Actos dos Apóstolos, protagonizados pela Igreja animada pelo Espírito Santo. Os Apóstolos deixam o sinédrio “cheios de alegria, por terem sido considerados dignos de sofrer vexames por causa do Nome de Jesus” (Actos 5,41). O Espírito leva Paulo e Silas a cantar na prisão de Filipos. E assim continuou a ser ao longo da história da Igreja, nas vidas de todos os que se entregaram ao Espírito. São Francisco de Assis e Madre Teresa de Calcutá alegraram-se na sua pobreza. Tal como Paulo e Silas em Filipos, também São Maximiliano Kolbe cantou na câmara da morte em Auschwitz.

Vivemos num tempo zangado, sem humor. E há muitas coisas sobre as quais devemos estar zangados. Ainda assim, embora toda a gente deseje a alegria, a maioria das pessoas contentam-se com o prazer. Embriagados pelo Espírito, os cristãos devem revelar a alegria que só Ele traz e que Deus deseja para todos.

Mais, o homem embriagado fala livremente – aliás, até demasiado livremente para boa companhia. Há um descuidado nas suas palavras e acções. Está inconsciente ou despreocupado com o que as pessoas pensam ou dizem dele. Não busca a aprovação dos outros com as suas palavras. Assim também, todos os que são conduzidos pelo Espírito devem falar com a mesma candura e sem se preocuparem com o respeito dos homens. Deve haver uma certa negligência e audácia quando se fala da fé.

Não é que isso nos permita sermos ordinários ou arrogantes. Disso já temos o que baste. Antes, dá-nos a coragem de falar com alegria sobre as questões difíceis e complicadas da fé, sem procurar adequá-las ao pensamento do mundo. Ao fazê-lo, encontramo-nos em boa companhia – não só a de Pedro e dos Apóstolos no Pentecostes, mas também do Senhor quando a sua própria família anunciou “está fora de si” (Marcos 3,21).

Mas também é preciso sobriedade. Esta não é uma embriaguez que arruína vidas e leva ao arrependimento. Pelo contrário, traz maior sobriedade, uma razoabilidade mais profunda e uma maior claridade de pensamento e de palavra. Em Éfeso os artesãos revoltaram-se contra Paulo e os outros discípulos que tinham “virado o mundo de pernas para o ar” (Actos 17,6). O Cristianismo virou de facto o mundo pagão às avessas. Mas fê-lo apenas para introduzir uma nova forma de pensar, que já não estava alinhada só com o pensamento humano, mas com a sabedoria divina. Se esta embriaguez vira as coisas às avessas, é só para as colocar numa base mais firme.

Um outro paradoxo desta sóbria embriaguez é o facto de nos ter sido adquirida pela triste Paixão de Nosso Senhor. Na sua própria hora de sóbria embriaguez, Cristo conquista para nós o Espírito ao verter o seu Sangue na Cruz. Assim, o dom do Espírito está associado ao Precioso Sangue de Jesus. “Sangue de Cristo, inebria-me”, cantamos no Anima Christi. E na Missa Votiva do Preciosíssimo Sangue, o padre reza depois da comunhão que “sejamos sempre lavados pelo Sangue de nosso Salvador; torne-se ele em nós uma fonte que jorra para a vida eterna.”

E hoje no altar, onde se re-apresenta o verter do seu sangue, rezamos que o Espírito produza nas nossas almas aquela sóbria embriaguez através da qual levamos aos outros a chocante alegria do Evangelho que estabiliza o mundo.


O Pe. Paul Scalia é sacerdote na diocese de Arlington, pároco da Igreja de Saint James em Falls Church e delegado do bispo para o clero. 

(Publicado pela primeira vez no domingo, 28 de Maio de 2023 em The Catholic Thing

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