Wednesday, 30 August 2023

As Duas Árvores de Santo Agostinho

O dia 28 de Agosto foi a Solenidade de Santo Agostinho, bem como o dia de anos da minha mãe. Acho que ela nunca leu uma palavra de Agostinho, mas poderá ter ouvido falar das lágrimas que Santa Mónica verteu sobre o seu jovem filho (como se conta nas Confissões) e sentido uma ligação com as deambulações adolescentes do seu próprio filho. Em todo o caso, quando se lê Agostinho é quase impossível não ver paralelos com a nossa própria vida, de uma forma muito pessoal. São Tomás de Aquino é o grande mestre da mente, mas Agostinho é um guia apaixonado para o coração.

Logo na primeira página das Confissões lemos a frase muitas vezes citada: fecisti nos ad te et inquietem est cor nostrum donec requiescat in te (“Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti”). Não há mal nenhum em ler isto como apenas uma expressão piedosa, embora eu avise sempre os meus alunos de que não devem presumir compreender o que Agostinho quer dizer aqui com a palavra “coração”. Mas se continuarmos a ler obtemos uma exposição profunda – por entre uma história de tentações e ambições mundanas, e confusões intelectuais e espirituais, que têm tanta força agora como tinham na altura – do que significam verdadeiramente essas palavras aparentemente tão simples.

Os comentadores costumam dizer que “o mundo perdeu a sua história”. O que querem dizer é que deixámos de saber porque é que existimos enquanto pessoas ou sociedades. No fundo, a história que perdemos é a visão bíblica da história. O resultado é que as narrativas com que a substituímos – o iluminismo, nacionalismo, progresso económico e até ciência – que na sua raiz dependiam da existência de um sentido e direcção para a vida, deixaram de ter verdadeira substância.

E isso vê-se nas tentativas desesperadas de estabelecer uma “identidade” através da raça ou de “comunidades” de género, no empenho em cruzadas políticas ou ambientais ou, por fim, nas manifestações modernas de corações inquietos.

De certa forma, mesmo uma obra hercúlea como “A Cidade de Deus”, que foi escrita para refutar a acusação de que foi o abandono dos deuses pagãos pelo Cristianismo que levou ao saque de Roma em 410 pelos Visigodos, reflecte a crença de Agostinho de que a confiança na nossa própria capacidade, independente de Deus, de estabelecer a justiça perfeita na terra não passa de uma ilusão para acalmar a nossa inquietude.

Nas Confissões, Agostinho começa por narrar o desnorte de quem perde a verdadeira história do mundo. Conta o drama da sua própria vida e conversão, intercalada com uma grande dose de filosofia, teologia e psicologia, introduzindo algumas das grandes personagens do seu tempo – filósofos proeminentes, líderes religiosos, políticos, Santo Ambrósio, até o Imperador Romano, bem como muitos amigos e até pessoas comuns.

Mas a sua história pessoal começa finalmente a fazer sentido apenas quando recupera a história macro, um assunto comum para autores de ficção. Louis de Wohl escreveu, há meio século, um romance sobre Agostinho, A Chama Inquieta, que ainda mantém o seu interesse, e a jovem concubina de Agostinho, que nas Confissões nunca é nomeada, foi tratada de forma imaginativa em As Confissões de X, de Suzanne Wolfe.

O Padre Aidan Nichols O.P. admite, com uma humildade que é rara entre os académicos, que “com a possível exceção de Cícero, sabe-se mais sobre Santo Agostinho do que sobre qualquer outra figura da Antiguidade. Sabemos demasiado sobre ele para que seja sequer possível lidar com esse conhecimento”.

Porém, o mesmo autor, em The Singing Masters: Church Fathers from Greek East and Latin West, lida maravilhosamente. (À nossa propria escala mais modesta, através dos cursos do The Catholic Thing, temos feito algumas introduções tanto às Confissões como à Cidade de Deus.)

Ainda assim, o que é que temos a aprender com um homem que morreu há 1600 anos, num local e num tempo tão diferentes que requer um esforço sério – quer de imaginação como de estudo – apenas para começar a compreender alguma coisa sobre ele?

Agostinho debaixo da Figueira
Bom, talvez a primeira coisa seja a compreensão de que apesar de todas essas diferenças há muita coisa que continua a tocar-nos de forma imediata, precisamente porque – não obstante os orgulhosos progressistas de todos os tempos – muitas das coisas humanas não mudam.

O Pe Nichols resume tudo na história das “duas árvores”.

A primeira árvore é a pereira da qual Agostinho e o seu bando de adolescentes roubavam fruta, como se lê cedo nas Confissões, não porque tinham fome ou porque as peras eram boas (não eram), mas por casual perversidade. A refutação mais profunda daquilo a que hoje se chama ser “woke” é a crença clássica cristã de que os corações dos homens – todos os homens, incluindo o mais woke – vacilam entre o bem e – para usar o termo correcto – o mal.

No mundo antigo as pessoas estavam tão cientes da existência do mal que surgiu uma religião – o Maniqueísmo – que defendia a existência de dois deuses, um bom e outro mau. Agostinho passou cerca de uma década envolto nesta falsa fé até conseguir pensar a coisa até ao fim, e sair. Mas muitos outros não saíram. Como escreve o Pe Nichols: “o maior conjunto de escritos maniqueus está em chinês, o que demonstra que a ‘Religião da Luz’ chegou tão longe no Oriente como no Ocidente. Da Argélia à China, este foi o principal concorrente do Cristianismo até ao surgimento do Islão.”

O episódio da pereira, tal como o da árvore da ciência do Bem e do Mal, conta uma história profunda. No final de contas não é a sociedade, ou as condições económicas, ou o contexto familiar que explica o nosso mau comportamento, porque as imperfeições que neles encontramos derivam da mesma fonte humana: corações inquietos atraídos pelo bem e pelo mal.

Mas existe outra árvore na história de Santo Agostinho. No momento da sua conversão, ele escreve: “mas eu, não sei como, me retirei para a sombra de uma figueira” (Livro VIII). O Pe Nichols repara aqui em algo que a muitos de nós poderá ter passado despercebido: que esta segunda árvore é uma figueira, e que foi das folhas de uma figueira que Adão e Eva teceram roupa depois de terem pecado, e se sentirem nus.

Agostinho tinha certamente isto em mente. E por isso aquilo que ele está a narrar é precisamente a inversão da direcção que tomámos naquele dia fatal no Paraíso.

Que é aquilo que acontece sempre que alguém se converte – que se volta para a direcção certa, que recupera a história do mundo, que é também a nossa história pessoal, e vê pacificado o seu coração.


Robert Royal é editor de The Catholic Thing e presidente do Faith and Reason Institute em Washington D.C. O seu mais recente livro é A Deeper Vision: The Catholic Intellectual Tradition in the Twentieth Century, da Ignatius Press. The God That Did Not Fail: How Religion Built and Sustains the West está também disponível pela Encounter Books.

(Publicado pela primeira vez na Segunda-feira, 28 de Agosto de 2023 em The Catholic Thing)

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Wednesday, 23 August 2023

Colaboração formal e material com o mal

Recentemente surgiu numa conversa a questão da colaboração formal ou material com o mal. O meu interlocutor ficou desconcertado quando eu exprimi uma certa relutância em relação ao assunto. Não é esta uma distinção comum na teologia moral? Porque não havemos de a usar?

Sugeri-lhe que lesse o livro Cooperation with Evil: Thomistic Tools of Analysis do Pe Kevin Flannery para perceber que as origens dessa distinção são pouco claras e a sua aplicação a casos específicos é contenciosa.

O caso mais clássico (muitas vezes discutido e alvo de muita discordância) envolve um servo a quem é dito que deve carregar um escadote que o seu senhor pretende utilizar para subir a uma janela para cometer adultério com a senhora da casa. Toda a gente concordava (pelo menos nessa altura, se não agora) que o adultério é um mal e um pecado, a questão em causa era o grau da colaboração do servo com o mal. Seria essa colaboração “formal” ou “material”? Os casuístas discordavam, mas as opiniões também variavam consoante os detalhes.

O servo sabia que era isso que o seu senhor tencionava fazer? Sabia e concordava com o plano? Ou sabia e estava resistente? Estava resistente e tentou convencer o seu senhor a desistir do plano? Ou estava resistente, mas não disse nada?

Ou será que não sabia do plano, mas devia ter sabido, sobretudo à medida que se aproximavam da casa? Nessa altura deveria ter-se questionado sobre se o mestre pretendia cometer algum mal? A sua ignorância era culpável ou não culpável?

Poderíamos dizer que a sua intenção era simplesmente de ajudar o seu senhor e evitar ser castigado, mas não de ajudar o homem a cometer adultério, sendo que nesse caso o adultério seria praeter intentionem (não intencional) – um resultado previsível, mas não desejado – inocentando-o de qualquer culpa?

Talvez agora se perceba porque é que estas questões deram cabo da cabeça dos teólogos morais durante séculos, como ainda acontece, aliás, embora com exemplos contemporâneos. Se um homem utiliza contraceptivos com o objectivo de evitar contagiar a sua mulher com HIV, e ela consente, estão os dois isentos de culpa?

Eu não tenho nenhuma sabedoria especial a partilhar sobre como desenvencilhar estes nós intelectuais de forma universalmente satisfatória. Apenas quero explicar porque é que acho que não é aconselhável seguir por esta via. A confusão gerada por este tipo de linha de pensamento é uma razão, mas outra é o facto de que esta abordagem conduz as pessoas a pensar sobre o quão longe podem ir, em vez de pensarem no bem que podem e devem fazer. Começam a regatear em vez de resolverem-se a fazer o que podem.

Pensemos num exemplo mais actual, que não é de mais fácil resolução e sobre o qual pode igualmente haver dificuldades e desacordos semelhantes. Digamos que eu tenho acções de uma empresa, pode ser directamente, ou pode ser através de um fundo. Agora, digamos que esta empresa (a) apoia o aborto; ou (b) abusa das suas empregadas; ou (c) não paga um salário justo aos seus empregados. É só escolher.

Não se trata de ser conservador ou progressista. A minha colaboração com o mal que a empresa está a cometer não é apenas “material”? Sendo assim não preciso de vender as acções, e posso continuar a receber os lucros?


Quando ponho a questão desta forma a primeira pergunta que me costuma fazer é: “E se eu não souber o que a empresa está a fazer?” Ao que respondo com a pergunta: “É sua responsabilidade saber?” E a resposta costuma ser: “A maioria das pessoas não sabe”. Mas isso não é um argumento, é uma admissão.

Mas as pessoas pensam: Se a minha colaboração for meramente “material”, faria diferença eu saber? Eu até posso saber que algum do aço fabricado pela minha empresa é usada em clínicas de aborto, mas isso torna a minha colaboração formal ou apenas material?

E se a minha intenção for de sustentar a minha família, mas não apoiar o aborto? Isso altera a moralidade ou a imoralidade de possuir aquelas acções? Bom, consideremos isto: Se a intenção do guarda alemão em Auschwitz for de sustentar a sua família, isso iliba-o de qualquer culpa?

Não tenho qualquer sabedoria salomónica para convencer toda a gente sobre essa questão. A minha preocupação é que em vez de perguntar “Que bem posso e devo fazer no mundo, ainda que isso implique sacrifício da minha parte?” estamos a perguntar: “Até onde posso ir sem ser culpável ou culpado?” Parece-me que a primeira é a questão que devíamos estar a colocar; a segunda é o caminho para a perdição.

Muitas vezes a chave está na forma como a pergunta é colocada. Assim, por exemplo, no caso do servo com o escadote, em vez de perguntar se isto seria colaboração “formal” ou “material”, poderíamos estar a perguntar o que queríamos que esta pessoa, com o seu escadote, fizesse caso fosse o marido daquela mulher, ou a própria mulher, num momento mais lúcido. Talvez pensasse assim: A regra é “faz aos outros o que gostarias que fizessem a ti”. A essa luz, como devo agir? O que devia fazer?

Ou então poderia perguntar-se: “O que é que Deus quereria que eu fizesse? Se Cristo aparecesse neste preciso momento e me encontrasse com este escadote, eu ficaria envergonhado? Seria capaz de o olhar nos olhos e tecer argumentos sobre colaboração formal e material?”

Nem sempre será possível evitarmos a colaboração com o mal, mas isso faz parte da vida num mundo decaído. Algumas das traves de aço que são usadas para fazer igrejas são também usadas para a construção de clínicas de aborto. É inevitável que haja alguma colaboração com o mal.

Mas não deveríamos fazer tudo ao nosso alcance para resistir ao mal e tornarmo-nos, na medida do possível, instrumentos do amor e da luz de Deus, brilhando na escuridão? Não estou a sugerir que eu sou um instrumento desses – longe disso – apenas digo que acho que seria melhor se todos fôssemos.

Por isso, embora as categorias da colaboração formal e material tenham o seu lugar, essa talvez não seja sempre a melhor forma de começar a pensar nas decisões morais que temos de tomar nas nossas vidas.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 22 de Agosto de 2023)

© 2023 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

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Friday, 18 August 2023

D. Rui Valério não é cardeal, a ponte pedonal também não será

O novo Patriarca de Lisboa, D. Rui Valério, publicou uma bonita mensagem para os fiéis do Patriarcado, que vale a pena ler.

Esta é uma boa ocasião para recordar a todos que D. Rui Valério não é o Cardeal-Patriarca de Lisboa!!

Entretanto esta semana tivemos uma trapalhada de uma situação, quando as Câmara se Loures e de Lisboa anunciaram que iriam chamar à ponte pedonal sobre o Trancão “Ponte Cardeal D. Manuel Clemente” e logo surgiu uma petição a denunciar esse gesto como um desrespeito pelas vítimas dos abusos. Depois surgiu uma petição contrária e por fim D. Manuel pediu para que se abandonasse a ideia, pois não queria estar no centro de divisões. Pensei bastante escrever sobre este assunto, nomeadamente sobre como os anticlericalismos acabam sempre por assumir os piores vícios das religiões, nomeadamente o puritanismo extremo, mas talvez fique para outra altura. Partilho antes este texto do meu amigo José Maria Duque, que revela bem porque é que este rasgar das vestes dos “activistas cívicos” é cínico e hipócrita. Leiam.

A semana passada escrevi um bonito texto a agradecer a todos os que tornaram possível a JMJ em Lisboa, e ajudaram a fazer daqueles dias uma graça tão grande. Depois, obviamente, esqueci-me de o incluir no newsletter. Mas partilho-o agora.

Leiam aqui sobre os projectos em curso para tentar reavivar a Igreja na Terra Santa; e aqui sobre o mais recente episódio de violência anticristã no Paquistão.

Também a semana passada publiquei um artigo no The Pillar que pretende ir ao fundo da “polémica” das tendas eucarísticas na missa final da JMJ, e das píxides usadas noutra missa. Podem ler aqui.

Têm ainda para ler o artigo desta semana do The Catholic Thing, que sendo sobre o processo de “reavivamento eucarístico” em curso nos EUA, toca também na JMJ uma vez que questiona a utilidade deste género de mega-eventos. Eu disse questiona, não disse arrasa nem critica. Leiam para verem por vocês as conclusões de Stephen P. White.

Thursday, 17 August 2023

Patriarca sim, Cardeal Patriarca (ainda) não, Cardeal-Patriarca ainda menos

Faz uma semana que D. Rui Valério foi nomeado Patriarca de Lisboa. Logo as manchetes, os pivôs e os apresentadores de rádio nos informaram que Lisboa já tem um novo "Cardeal-Patriarca". 

Esta é uma boa ocasião, portanto, para recordar a todos que D. Rui Valério não é cardeal, nem sabemos ao certo quando será. Por isso, ao contrário do que a imprensa insiste em dizer, ele não é o “Cardeal-Patriarca de Lisboa”. Aliás – e esta é uma embirração minha – eu não percebo porque é que se insiste em aglutinar os títulos, sobretudo quando é o próprio Patriarcado a fazê-lo.

Como aprendemos sempre que existe uma nova nomeação, uma coisa é ser Patriarca, outra coisa é ser cardeal, uma não implica necessariamente a outra, por mais que exista a tradição – e no caso de Lisboa um compromisso estipulado em bula – de o Patriarca ser feito cardeal.

A confusão é agravada pelo facto de existirem diferentes níveis de cardeal. Há o Cardeal-Diácono, o Cardeal-Presbítero e o Cardeal-Bispo, o que por sua vez indica apenas uma hierarquia, pois não tem nada a ver com os cardeais serem diáconos, padres ou bispos. E sim, há cardeais que são apenas padres, embora seja raro.

Portanto, nesta lógica, um Cardeal-Patriarca seria mais um nível na hierarquia dos cardeais, acima até de Cardeal-Bispo. Só que não é, porque isso não existe.

Se Deus quiser – mais precisamente, se o Papa quiser – D. Rui Valério será um dia Cardeal. E nessa altura será o Cardeal Patriarca de Lisboa, mas não o Cardeal-Patriarca de Lisboa. Até lá é “apenas” o Patriarca de Lisboa, o que já não é nada mau, embora não seja equiparável a patriarcas orientais, mas isso vai ter de ficar para outro artigo…

Wednesday, 16 August 2023

Como despertar um reavivamento

Stephen P. White
Há algum tempo que estão a ser feitas preparações para o Congresso Eucarístico Nacional que terá lugar no próximo verão em Indianapolis. O Congresso Eucarístico será o culminar de três anos de reavivamento eucarístico nos EUA, levado a cabo para despertar uma relação mais profunda com Nosso Senhor na Santa Eucaristia.

Para os fiéis, a razão da esperança num reavivar da devoção àquilo que é a fonte e o ápice da vida cristã, deve ser clara. Sondagens recentes indicam que a crença na Verdadeira Presença é preocupantemente baixa entre católicos (mesmo um em cada três dos praticantes acreditam que a Eucaristia não é mais do que um símbolo). Há muito tempo que a prática dominical está em baixo, e a tendência acelerou com as políticas de controlo da pandemia.

Se a devoção à fonte da fé católica está a enfraquecer, não surpreende que o resto da vida sacramental siga pelo mesmo caminho. Os índices de casamento pela Igreja estão em queda e, previsivelmente, os nascimentos e baptismos também. As primeiras comunhões e crismas estão a decrescer e as ordenações também desceram, embora não tão dramaticamente.

Os números, puros e duros, não são a única ou até a melhor forma de julgar a saúde da Igreja, mas a estes números desencorajadores podemos também acrescentar as profundas divisões políticas, culturais e sociais entre católicos americanos; os efeitos da crise dos abusos; profundo desacordo sobre questões de fé (incluindo, como já foi referido, sobre a liturgia e a natureza da própria Eucaristia). No meio de tudo isto a vontade urgente de se fazer algo – algo em grande, e rapidamente – torna-se fácil de compreender.

Mas se uma renovação da fé é desejável, vale a pena perguntar se um Reavivamento Eucarístico (e a Peregrinação Eucarística e o Congresso Eucarístico do ano que vem) são o género de coisa que pode despertar uma renovação genuína.

Simplesmente chamar à iniciativa um “Reavivamento Eucarístico” não faz com que o seja, tal como a “nova evangelização” e a “sinodalidade” também não o são só porque os termos são repetidos constantemente.

Poderá o Reavivamento Eucarístico ser um grande exercício de fogo de vista? Um grande espetáculo pensado para dar a ideia de que se está a “fazer alguma coisa” sem abordar os problemas de fundo que afectam a Igreja nos Estados Unidos?

Há críticos desta iniciativa que parecem convencidos de que será isso mesmo: uma distracção cara e vistosa do verdadeiro trabalho e missão da Igreja. Claro que se pode colocar a mesma questão (como se tem feito, há décadas) sobre as Jornadas Mundiais da Juventude.

Para serem bem-sucedidos, os grandes eventos como o Congresso Eucarístico ou a Jornada Mundial da Juventude, não podem ser autocentradas. Na melhor das hipóteses, tais eventos fornecem a ocasião para os seus participantes saírem dos seus ritmos de vida diária, para tomarem parte num espetáculo edificante, e não uso o termo “espetáculo” de forma pejorativa.

Lembro-me bem de quão emocionante foi ajoelhar-me no campo quente e poeirento de Tor Vergata, com mais dois milhões de pessoas, e de rezar na vigília antes da missa com o Papa João Paulo II na Jornada Mundial da Juventude, em Roma. Esse foi um espetáculo no melhor sentido da palavra. Não foi o género de coisa que se vê todos os dias, ou sequer mais do que uma vez.

Para mim, como para tantos outros, foi um momento edificante e de graça. Via-se o mesmo nas faces dos jovens nas fotografias da Jornada Mundial da Juventude em Portugal, a semana passada. Esses momentos têm efeitos profundos e duradouros. Há todo um lote de iniciativas e de ministérios, ainda pujantes, que remontam directa ou indirectamente à Jornada Mundial da Juventude de 1993, em Denver.

O grande desafio, claro está, é o que vem depois.

A medida segundo a qual os grandes eventos eclesiais como o Congresso Eucarístico ou a Jornada Mundial da Juventude devem ser julgadas é complicada de discernir. Nem tudo é quantificável, sobretudo em matéria de fé, como se fosse possível medir a eficiência da Providência. Ele conduz todos os corações de acordo com os seus próprios desígnios e a seu tempo. Se o nosso trabalho, por mais bem-intencionado que seja, não for o Seu, nenhum dos nossos esforços vingarão. Se escutarmos o Seu chamamento, e perseverarmos, nem a nossa fraqueza, nem o nosso pecado o deterão.

Um reavivamento duradouro e transformador raramente começa com um grande plano, pelo menos não com um plano nosso. E quase nunca acontece de cima para baixo (o que não significa que os líderes eclesiais não possam fazer muito para encorajar ou frustrar esse esforço). Em todas as eras da Igreja o reavivamento começa da mesma forma: homens e mulheres respondem ao chamamento de Deus de uma forma radical. Deus age, nós respondemos.

Se respondermos generosamente, podemos ter confiança de que o Senhor estará ao volante. Mas mesmo aí devemos esperar o reavivamento não de acordo com os nossos planos e ambições, mas de acordo com os estranhos caminhos da Providência. Aquilo que não podemos esperar é permanecermos iguais.

E, se vamos ser honestos, esse é o grande risco. Se forem como eu, a coisas mais assustadora que há é precisamente a ideia de estar constantemente em mudança. Mas esse é o risco inerente ao encontro com Cristo. Como Paulo encoraja os Efésios: “Renunciai à vida passada, despojai-vos do homem velho, corrompido pelas concupiscências enganadoras. Renovai sem cessar o sentimento da vossa alma, e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade.” (Efésios 4, 22-24)

E é assim, afinal, que se desperta um reavivamento. Começa com a corajosa resposta de um coração aberto, transformado por um encontro com o Senhor.

O Congresso Eucarístico – o evento em si – não é o objectivo do Reavivamento Eucarístico. Antes, é a convocatória. Os nossos pastores convidam-nos a renovar e aprofundar a nossa devoção a Cristo na Eucaristia. Eles sabem que não será uma convenção, por mais meritória e espetacular que possa ser, a renovar a Igreja, mas uma Pessoa: Jesus Cristo. Ele chama-nos a cada um pelo nome. Vamos responder com corações generosos? Teremos a coragem de responder ao convocatória?


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 10 de Agosto de 2023)

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Sunday, 13 August 2023

Habemus Patriarcham

A grande notícia do dia é a nomeação do novo Patriarca de Lisboa. D. Rui Valério foi o escolhido pelo Papa Francisco para suceder a D. Manuel Clemente. Escrevi aqui um pequeno artigo sobre o novo Patriarca, com alguns dados sobre a sua vida, mas também alguns dos desafios que ele terá pela frente.

De resto, estamos ainda a ressacar da incrível experiência que foi a JMJ. Durante a Jornada eu não tive tempo para ir actualizando o blog, ou para enviar o mail semanal, mas fui-me mantendo ocupado. Para além de ter entrado várias vezes em antena na SIC Notícias, com a qual estava a colaborar como comentador, ainda dei uma perninha na Rádio Observador e escrevi um artigo diário para o The Pillar.

Os artigos para o The Pillar estão em inglês, mas podem ser lidos aqui:

Sobre o diálogo inter-religioso na JMJ

Entrevista ao Pe. Francisco Crespo, pároco da Serafina

Diário do primeiro dia da JMJ

Diário do segundo dia da JMJ

Entrevista ao único padre do Butão, que explica como um cartão de Natal levou à suaconversão

Diário do terceiro dia da JMJ

Diário do quarto dia da JMJ

Diário do quinto dia da JMJ

Diário do sexto dia da JMJ

Houve ainda um relato de um milagre na JMJ. As informações que circulam são ainda bastante confusas, nomeadamente sobre onde é que se realizou o milagre, mas o meu colega Edgar Beltrán, do The Pillar, conseguiu chegar ao fundo da questão da Jimena, que recuperou a visão. Podem ler aqui em inglês, ou então em espanhol.

Quem também esteve presente na JMJ foi a fundação Ajuda à Igreja que Sofre. Podem ler mais sobre esse assunto aqui.

Fui também convidado pelo Expresso para escrever um artigo mais focado nas críticas que surgiram de alguns sectores à JMJ. Podem ler aqui se forem assinantes. Mas gostaria de sublinhar – como faço no artigo – que embora também houvesse críticas e guerrinhas nas redes sociais, uma das coisas que mais me tocou foi precisamente o facto de na JMJ terem estado tantas pessoas, de tantas tendências diferentes, unidas por uma só causa, a rezar, a adorar e até a dormir lado-a-lado.

No meio de tudo isto continuei a publicar artigos do The Catholic Thing em português. Esta semana temos Randall Smith a escrever sobre as lições que São Tomás de Aquino tem para os actuais pregadores, e no da semana passada temos Russell Shaw, que tem uma larguíssima experiência de participação em sínodos, a revelar as suas reservas sobre o Sínodo da Sinodalidade.

Thursday, 10 August 2023

Rui Valério: Um missionário para o Patriarcado de Lisboa

O Papa acaba de nomear como novo Patriarca de Lisboa D. Rui Valério, até agora bispo das Forças Armadas e de Segurança.

Não conheço pessoalmente o novo Patriarca, mas aquilo que me têm dito os que o conhecem é que é um homem de oração, de uma profunda espiritualidade, e um pastor. Isso são, claro, grandes trunfos.

D. Rui Valério é também um homem muito ligado à missão. Para além de ter sido formado e ordenado nos Missionários Monfortinos, foi um dos missionários da Misericórdia durante o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, em Lisboa. A sua nomeação pode, por isso, reflectir a questão de o Patriarcado ser hoje também terreno de missão, uma vez que grande parte da sua população se encontra descristianizada, se não abertamente, pelo menos na prática.

Ao contrário do que tem sido a norma no Patriarcado nas últimas décadas, D. Rui Valério é também um homem com uma significativa experiência paroquial. Foi pároco em Castro Verde, no Alentejo – certamente uma realidade muito diferente da que vai encontrar em Lisboa, mas que pode ter-lhe dado uma boa bagagem – e foi também pároco no Patriarcado, nomeadamente em Póvoa de Santo Adrião. Enquanto pároco teve de lidar com situações por vezes difíceis, o que é essencial para o trabalho que terá agora pela frente.

O novo Patriarca faz este ano 59 anos, por isso, em condições normais, terá pelo menos 15, talvez 17 anos à frente da Igreja lisboeta. Toma posse a 2 de Setembro, na Sé Patriarcal.

Abusos, legado da JMJ e reformas

Um dos principais desafios que D. Rui Valério terá agora pela frente é a de dar continuidade ao processo de lidar com a questão dos abusos sexuais. Nesta situação em particular, Lisboa já tem muito caminho percorrido e pessoas de confiança em lugares-chave, por isso terá o trabalho facilitado. Há que continuar a ir agilizando processos e, sobretudo, não atrapalhar.

A este respeito note-se que D. Rui Valério chega com uma folha em branco. A diocese das Forças Armadas é a única que não teve qualquer denúncia de casos de abusos, o que é aliás compreensível dada a sua natureza. Isso significa que ninguém tem nada a apontar ao bispo na forma como ele lidou com casos, mas significa também que não sabemos como é que ele lidará com o assunto no futuro. Só podemos esperar que tenha aprendido muito com os bons exemplos e, também, com os maus exemplos dos seus pares no episcopado, ao longo dos últimos meses.

A nível teórico, tem algumas palavras sobre o assunto. Na altura em que foram provisoriamente afastados cinco padres do Patriarcado de Lisboa, foi questionado pela CNN e preferiu falar das vítimas: “Acho que aquilo que é importante nesta altura é nós começarmos a falar das vítimas. Este é o tempo das vítimas. É o tempo de irmos ao encontro delas. Não sei se nós temos exata noção de que quem foi vítima de um abuso desta natureza está numa condição de sofrimento... Há traumas que estão ativos e tudo isso é preciso cuidar, é preciso tomar conta”, afirmou. São palavras atenciosas e firmes. Esperemos que não haja qualquer dificuldade em passá-las à prática.

O novo Patriarca terá também muitos outros desafios práticos. Há decisões e reformas que é necessário fazer no Patriarcado de Lisboa. Será necessário em primeiro lugar discerni-las e depois aplicá-las. Como podemos adaptar a estrutura paroquial a um presbiterado cada vez mais pequeno? É possível travar, ou mesmo inverter essa crise vocacional? Um dos grandes perigos em qualquer diocese é a divisão dos padres em grupinhos e tendências, de costas voltadas, conseguirá ele evitar que isso aconteça em Lisboa, promovendo a unidade? Existe no Patriarcado um grande tecido de respostas sociais, como podemos tornar o seu funcionamento mais eficiente, promovendo economias de escala numa altura de dificuldades e em que o Estado parece cada vez mais apostado em tomar o lugar da Igreja neste campo?

E depois, claro, temos o facto de a sociedade portuguesa olhar para o Patriarca de Lisboa – erradamente, é certo, mas é uma realidade – como a figura-de-proa da Igreja nacional. D. Rui Valério tem duas licenciaturas de prestigiadas universidades em Roma, não será certamente desprovido de inteligência, mas D. Manuel Clemente já tinha uma reputação de figura intelectual que o ajudava a impor as suas opiniões. D. Rui Valério terá, nesse campo, de começar do zero e conquistar esse espaço.

Do ponto de vista puramente pessoal, e como católico do Patriarcado de Lisboa, posso dizer que conheço pessoalmente D. Manuel Clemente, desde a minha infância. Tenho por ele uma estima enorme e nunca tive dificuldade em ver nele uma figura de paternidade episcopal, o que tornava mais fácil gostar dele e colocar-me ao seu lado, mesmo nos tempos mais difíceis, e sem que isso me impedisse de criticar, em liberdade, o que achava que devia ser criticado.

Já D. Rui Valério não conheço de todo. Mas a partir de hoje – ou mais precisamente a partir do momento em que for empossado – ele é o meu bispo, o meu Patriarca, e tem da minha parte toda a lealdade e afectividade que como tal sinto que lhe devo. 

Obrigado a todos, todos, todos

A JMJ terminou, e penso que o sentimento é geral de que foi uma experiência única, e extraordinariamente bonita para os envolvidos. Embora já se comecem a ver as habituais lamúrias daqui e dali, pessoalmente ainda não falei com ninguém que me dissesse que este não foi um evento transformador.

Eu tive o privilégio de poder viver a JMJ de uma forma muito intensa. Estando ao serviço como comentador da SIC, pude estar sempre presente sem ter a necessidade de andar sempre a correr para fazer reportagem ou cumprir prazos. Tive muitas oportunidades para andar pelos eventos, falar com peregrinos de todos os tipos e de dezenas de países, para recolher histórias e momentos engraçados para os artigos diários que escrevi para o ThePillar. Tendo credencial de imprensa, podia também andar livremente pelos diferentes espaços do recinto e apanhar uma visão mais global de tudo o que se estava a passar.

Dificilmente poderia destacar pontos individuais que não foram já sublinhados por outros, mais cedo, como o ambiente contagiante nas ruas, a simpatia demonstrada por toda a gente, aquele momento de profundíssimo silêncio na adoração ao Santíssimo, durante a vigília, e a profusão de bandeiras, que demonstra que é possível um saudável amor pelo nosso país ou região conviver com um sentimento de fraternidade universal, isto é, católica. Que importante lição numa era do recrudescimento dos nacionalismos.

Quem quiser ler mais atentamente as minhas impressões pode fazê-lo no diário que fui escrevendo para o The Pillar, embora estejam em inglês, mas este texto não é para isso. É para agradecer.

Agradecer do fundo do coração a todos os que vieram à JMJ, de outros países, nalguns casos do outro lado do mundo. Agradecer a todos os que abriram as suas casas para acolher peregrinos. Agradecer a todos os donos de cafés, restaurantes e outro tipo de lojas que ajudaram a fazer com que os peregrinos se sentissem acolhidos. Aos paramédicos, polícias, militares, agentes da Protecção Civil e Bombeiros. Quero agradecer profundamente ao Papa, que esteve tão bem e tão contente no meio dos jovens e restantes peregrinos. Agradeço ainda a todos os que foram acompanhando as minhas intervenções na SIC, na Rádio Observador, ou os meus artigos no The Pillar e que não deixaram de me elogiar e encorajar.

Mas acima de tudo quero agradecer a todos os que trabalharam na JMJ para que ela se realizasse. Aos voluntários, muitos dos quais sacrificaram a sua própria liberdade de movimentação na Jornada para estar ao serviço, nomeadamente aos que se ofereceram logo de início e tiveram tanto tempo longe de suas casas, nalguns casos, a trabalhar por todos nós. E também aos trabalhadores pagos, mas que também se sacrificaram tanto, que deram à JMJ o toque profissional que evitou que tudo se transformasse em caos.

Acima de tudo, quero agradecer profundamente a quem nunca deixou de acreditar nesta JMJ. Para muitos – entre os quais me incluo – depois de anos a ouvir falar disto a toda a hora e por qualquer razão, houve pontos de saturação a partir das quais dizíamos que já nem queríamos saber do assunto, não queríamos ouvir falar. Eu estive várias vezes nessa situação, por mais que soubesse que depois, na altura, iria entusiasmar-me outra vez. Os que nunca tiveram, os que nunca deixaram adormecer esse entusiasmo, esses são verdadeiros heróis e merecem os nossos aplausos.

Obrigado, obrigado, obrigado.

E depois disto fica só por fazer uma recomendação. Aos bispos, aos sacerdotes, aos funcionários paroquiais, aos líderes dos movimentos na Igreja: não deixem que este entusiasmo seja apenas uma onda que passa e dispersa na areia. Aproveitem a energia destes milhares de voluntários que acabaram de descobrir esta dimensão universal da Igreja e agora querem meter a mão na massa. Portugal tem uma oportunidade absolutamente única, que não pode mesmo ser desperdiçada, e todos temos a obrigação de contribuir para que assim seja.

Wednesday, 9 August 2023

Introdução à Pregação

Celebrámos recentemente o 700º aniversário da canonização de São Tomás de Aquino, que teve lugar no dia 14 de Julho de 1323, no Palácio Papal, em Avignon. Esta foi a época a que já se chamou o “Cativeiro Babilónico do Papado”, quando sete papas seguidos residiram em Avignon, França, em vez de em Roma. Mais tarde, infelizmente, isso conduziria a um cisma, levando a um período em que houve múltiplos pretendentes ao trono de Pedro. O problema não foi totalmente resolvido até ao Concílio de Constância, em 1417. É sempre bom ter isto em mente quando imaginamos que as coisas nunca estiveram tão mal como estão agora.

Lembrei-me deste aniversário há pouco tempo quando alguém me perguntou sobre a pregação de São Tomás. Tomás era, como se sabe, um dominicano, membro da “Ordem dos Pregadores”, fundada por São Domingos. Porquê uma ordem dos pregadores? Porque no princípio do Século XIII havia muito pouca pregação para os leigos na Igreja.

Em muitos locais não se fazia pregação de todo (o que não é tão bom como possa parecer). Ou quando existia pregação era mal feita e cheia de erros doutrinais (soa familiar?). Os padres do Quarto Concílio de Latrão (1215) decidiram que era preciso mudar isto, por isso encarregaram os bispos de alocar recursos para formar bons pregadores. São Domingos fundou a Ordem dos Pregadores em parte como resposta a este chamamento na Igreja.

Embora São Tomás pertencesse à Ordem dos Pregadores, surpreendentemente pouca atenção tem sido dada à sua pregação ao longo dos séculos. Felizmente, porém, a Comissão Leonina publicou recentemente uma edição crítica dos seus cerca de 20 sermões autênticos, e existe uma boa tradução para inglês do Pe Mark-Robin Hoogland, disponível através da Catholic University of America Press.

Tendo em conta o estilo bastante peculiar destes sermões, eu escrevi um livro chamado “Lendo os Sermões de Tomás Aquino: Um guia para principiantes”. O objectivo é compreender que cada palavra no versículo bíblico inaugural tem a função de uma mnemónica que permite ao ouvinte recordar o conteúdo de todo o sermão, simplesmente recordando o versículo bíblico.

Perguntam-me frequentemente o que é que São Tomás tem para ensinar aos pregadores modernos? É uma questão complicada. O seu estilo, embora fosse a norma para quase toda a gente no Século XIII, é difícil de compreender hoje em dia. Mas há algumas lições.

A primeira é evidente: uma boa pregação está ligada à própria santidade. E, porém, há muitos santos pastores que não são necessariamente bons pregadores. A pregação, tal como a escrita, a canalização ou a jardinagem, é uma capacidade que tem de ser treinada e aprendida.

A segunda lição, que é parecida, é que um bom pregador prepara-se. Não é possível pregar da forma como Aquino e Boaventura faziam, no que era chamado o estilo de “sermão moderno”, sem uma preparação séria. Era impossível simplesmente improvisar.

A terceira coisa que podemos aprender com este estilo de pregação é o valor de construir um sermão de forma a ser lembrado. Se os fiéis saem da missa e alguém pergunta sobre o que é que foi a homilia, e ninguém se lembra, então temos um problema. Mais importante ainda, se os fiéis não se recordam sequer das leituras, então o mais provável é que a homilia tenha sido um fracasso.

São Tomás Aquino

Alguns leitores devem estar a perguntar: “Recordar a homilia e as leituras? Quando é que isso acontece?”. Sim, isso é um problema, um problema grave. Uma das coisas que aprendemos com os inquéritos sobre a sinodalidade (e que não precisávamos de inquéritos para descobrir) é que quase todos manifestam desagrado com a qualidade da pregação. De tal forma que se pensaria que o sínodo teria adoptado o tema para ser discutido, tal como aconteceu no Quarto Concílio de Latrão.

Até o Papa Francisco tem sugerido que a pregação precisa de ser reformada, embora me pareça que ele se estivesse a referir à sua excessiva duração. Não me parece que esse seja o principal problema. As más homilias tornam-se aborrecidas depois de trinta segundos. As boas passam a voar. Mas para resolver um problema, primeiro é preciso reconhecer que ele existe.

Posso, contudo, oferecer mais um conselho. Eu argumento, no livro “Aquino, Boaventura e a Cultura Escolástica de Paris Medieval”, que as aulas sobre livros da Bíblia que eram dadas nas universidades medievais pelos mestres tinham como objectivo dar aos seus alunos recursos para pregar. Essa era a uma preocupação central.

Compare-se isso com a nossa prática moderna. Independentemente das suas forças e fraquezas, os estudos bíblicos segundo o método histórico-crítico raramente dão boa matéria de pregação. Já ouvi pregadores a tentar fazê-lo, e correu sempre mal.

Não me refiro a explicar o sentido de palavras-chave no Grego ou Hebraico original. Tenho um colega na universidade que o faz, e os seus alunos ficam fascinados. Mas isso deve-se mais à paixão que ele claramente tem por cada texto e cada palavra: “Eu adoro este versículo, é belíssimo!”, diz ele, e nós brincamos, dizendo, “o senhor padre diz isso sobre todos os versículos”. Não, estou a falar mais de comentários do género: “Na verdade esta epístola não foi escrita por Paulo”, ou “isto foi acrescentado ao Evangelho mais tarde, por um editor”. Muita da pesquisa em que isto assenta é demasiado especulativa, e o efeito que tem sobre a assembleia é como serrar o tronco em que estamos sentados.

“Bom, senhor padre, se não temos de prestar atenção às Escrituras, então também não temos de prestar atenção a si. Porque a única razão pela qual estamos a prestar atenção a si é porque achamos que nos ajudará a compreender melhor a palavra de Deus. Por isso, se nos está a dizer que isto não é a palavra de Deus, vamos desligar-nos”.

Se calhar estamos a precisar de um novo curso: A Bíblia para Pregação: Como não tornar a melhor história de sempre e o livro mis importante de sempre vazios, insignificantes e aborrecidos”. Podemos listá-lo no catálogo como Introdução à Pregação.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 1 de Agosto de 2023)

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Wednesday, 2 August 2023

Sobre sínodos

Entre Outubro de 1971 e Outubro de 1987 realizaram-se sete assembleias do Sínodo dos Bispos, seis ordinários e um extraordinário que analisou a implementação do Concílio Vaticano II, 20 anos depois do seu encerramento. Eu era o secretário de imprensa da delegação dos bispos americanos em todas essas assembleias, e até contribui para alguns dos textos sinodais. Mais tarde cobri outras assembleias sinodais como jornalista.

Embora nada disto me faça especialista em sínodos, dá-me uma certa perspectiva, assente na experiência, a partir da qual consigo apontar os problemas que ameaçam tornar o próximo encontro no Vaticano uma experiência em sinodalidade menos satisfatória do que os participantes, ou o Papa Francisco, possam querer.

O primeiro e mais evidente problema é o tamanho. Dizem-nos que o sínodo de Outubro vai ter 364 delegados eleitores, 120 nomeados pelo Papa em Julho. Em contraste, os sínodos passados tendiam a ter 250 participantes, ou menos – e mesmo isso era muito.

A principal questão que isto levanta é evidente. Como é que 364 pessoas, vindas de muitas nações e culturas diferentes, e sem qualquer conhecimento prévio uns dos outros, podem esperar chegar a um consenso – ainda que interino – sobre o que quer que seja em apenas 25 dias (tendo ainda em conta que uma boa parte do tempo será dedicado a liturgias e eventos cerimoniais)?

Claro que a resposta honesta é que não podem. E isso aponta para o segundo grande problema. Os organizadores do sínodo – presumindo que estão todos a agir de boa fé – provavelmente sentir-se-ão na obrigação de apresentar qualquer coisa, com base nas notas tiradas durante as discussões e nas suas próprias ideias preconcebidas.

Com o tempo a escassear, o resultado deste trabalho será apresentado aos participantes, já cansados, numa altura em que estes estarão à procura de alguma coisa – qualquer coisa – para mostrar como fruto da primeira fase do Sínodo da Sinodalidade. Infelizmente, porém, todo o processo contribuirá ainda para reforçar as suspeitas que já existem de manipulação.

E recordem-se, entretanto, que já está agendado para Outubro de 2024 um segundo sínodo, provavelmente definitivo. Se a primeira fase está a tornar-se grande e impraticável, é difícil ver como a segunda pode escapar a um destino igualmente infeliz e inconclusivo.

O terceiro problema tem a ver com secretismo – ou, talvez seja mais correcto dizer uma ausência demoralizante de transparência. Na preparação de sínodos passados, a Conferência Episcopal dos Estados Unidos optou por eleger os seus delegados em sessões abertas das suas assembleias gerais, na presença dos jornalistas. O Vaticano não gostava disso, mas os bispos persistiram.

Para além disso, durante as sessões do sínodo os americanos faziam conferências de imprensa regulares, e davam entrevistas. O Vaticano também não gostava disso, porque preferia limitar o fluxo de informação aos seus próprios briefings de imprensa. Mas também aqui os americanos persistiram e a coisa parecia correr bem. Aliás, a credibilidade geral do sínodo provavelmente saiu reforçada.

Desta vez, aparentemente para cumprir com as regras do Vaticano, os bispos americanos escolheram os seus delegados em sessões secretas e os nomes só foram divulgados quando a Santa Sé anunciou os restantes participantes. Quanto à informação durante o encontro de Outubro, resta saber como é que o Vaticano lidará com isso, mas a preferência por secretismo e centralização revelada até agora não dá grande confiança de que este encontro vai ser aberto e transparente.  

De acordo com o documento de trabalho para o sínodo, as consultas pré-sinodais revelaram vários temas mais ou menos sensíveis para colocar em cima da mesa, incluindo padres casados, diaconisas e o ministério para pessoas LGBTQ+. Nesse contexto, é de notar que para além dos cinco bispos americanos escolhidos pelos seus pares como delegados, o Santo Padre nomeou outros cinco que são normalmente considerados particularmente em linha com as suas opiniões. 

Claro que o Papa está no seu direito, mas há aqui uma certa tensão com a imagem do sínodo como um processo sem um desfecho predeterminado e onde todos são livres de manifestar a sua opinião.

Por fim, deixa-me oferecer uma observação pessoal sobre este exercício eclesial.

Temos ouvido dizer repetidamente que o resultado desejado de todo este processo é uma Igreja sinodal equipada para evangelizar as periferias. Muito bem. Mas que mensagem é essa que queremos fazer chegar às periferias? “Juntem-se a nós num enorme processo de consulta a que chamamos ‘Igreja’"? Espero francamente que não.

Em busca de uma resposta melhor, recorri à poderosa encíclica Fides et Ratio do Papa João Paulo II, de 1998. Aí encontrei algumas questões que, segundo João Paulo, as pessoas sempre colocaram: Quem sou eu? De onde vim e para onde venho? O que há depois desta vida? Porque é que existe o mal?

Estas podem bem ser questões perenes, mas há muitas razões para pensar que hoje muitas pessoas – incluindo muitas que estão nas periferias – já não as colocam. Em vez disso, o canto da sereia desta nossa cultura secularizada, distrai-os com imagens, sons e apelos constantes ao consumo que os movem a fazer outro género de perguntas: Como é que posso obter? Como posso guardar? Como posso gozar? O que é que eu quero, ainda sem o saber?

Se aquilo que eu disse está certo, segue-se que a Igreja sinodal deve reconhecer essas questões sobre obter, guardar, gozar e aprender a querer e tê-las como ponto de partida para levantar as tais questões perenes. Por outras palavras, muito mais do que as habituais questões prementes, terá de abordar – de forma urgente – a evangelização, como dizer às pessoas, com amor e convicção, que hoje, como sempre, as respostas que procuram têm um nome e uma face humanas: Jesus Cristo.


Russell Shaw é autor de Papal Primacy in the Third Millennium (2000). O seu mais recente livro é American Church: The Remarkable Rise, Meteoric Fall, and Uncertain Future of Catholicism in America (2013).

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Quinta-feira, 27 de Julho de 2023)

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