Wednesday, 5 June 2019

Aqui Lidam Bem com a Morte

Randall Smith
Há uns anos um amigo disse-me durante uma cerimónia fúnebre que “aqui lidam bem a morte”. E era verdade. Tudo, desde a colocação do caixão aberto, os cumprimentos à família e o terço, até ao próprio funeral, teve lugar na Igreja. Tudo foi feito à vista do altar, do crucifixo e de Cristo presente no sacrário. Reinava um ambiente de oração e respeito profundo.

Nunca compreendi o conceito de “casa funerária”. São locais perturbadores e o mais distante de uma “casa” que se possa imaginar. A mobília nunca é caseira, parece mais a mobília de casa de uma senhora velha e rica, em que não devíamos tocar nem sentar. O ar é parado, normalmente estagnado e as pessoas andam de um lado para a outro a sussurrar. Às vezes, se repararmos, há música a tocar no fundo, do género que mal se ouve, mas que depois de darmos conta não nos sai da cabeça. Qualquer elevador tem uma oferta musical mais alegre. E nem vou falar do problema dos caixões metálicos enormes e dos cadáveres embalsamados.

Esquecemo-nos de como enterrar os mortos. Quando uma igreja lida bem com a morte existe um sentido de memória, sem ter de passar a pente fino todos os detalhes da vida de uma pessoa. Há um sentido claro de que a pessoa pertencia, que ele ou ela era uma parte importante da comunidade; que agora há algo que faz falta, mas que a vida continua, apesar de tudo, porque a vida deles era dedicada à comunidade. Por isso quando nós damos seguimento ao seu trabalho (e não nos preocupamos apenas com as nossas tarefas) e dedicamos as nossas vidas à mesma comunidade que ele ou ela servia, cuidando dos seus filhos ou netos, do jardim, edificando as instituições com o mesmo espírito e com a mesma visão, permanecemos unidos a eles e eles a nós.

Este sentimento de ligação alimenta-se (e tem de ter as suas raízes) na crença na comunhão dos santos. Quando aqueles que amamos morrem, não nos limitamos a perdê-los, mas ganhamos com eles uma comunhão ainda mais profunda. A ressurreição de Cristo e a doutrina da ressurreição geral comprovam que as nossas acções, experiências e relações não se perdem nem são negadas quando morremos. Pelo contrário, são glorificadas. Podemos estar presentes de forma ainda mais dramática com as pessoas e as comunidades que amamos, sem limitações de tempo e de espaço.

Mas a ressurreição que pregamos é a ressurreição do corpo, não a libertação de um espírito gnóstico preso dentro do corpo. Os judeus ortodoxos e os muçulmanos partilham com os cristãos a crença na ressurreição do corpo. É por isso que eles insistem em sepultar os seus mortos. Não os queimam, para depois meter as cinzas numa caixa, na prateleira, dizendo às visitas: “Ainda não decidimos o que fazer com elas”. Nós esquecemo-nos de como sepultar os nossos mortos e saber como sepultar os mortos não é uma coisa menor.

Se a Igreja quiser recuperar o seu lugar na comunidade deve voltar a responsabilizar-se pela sepultura dos mortos. Deve estar pronta a tomar conta dos acontecimentos. Todas as coisas difíceis e melindrosas que as pessoas têm de passar para sepultar os seus entes queridos quando estão de luto devem ser tratadas pela igreja.

Tudo o que se passa naquelas sinistras “casas mortuárias” deve acontecer na igreja. O velório, o terço, os cumprimentos aos amigos e parentes, talvez até a refeição partilhada.

O Cardeal Ratzinger no enterro do Papa João Paulo II
A Igreja devia fornecer os serviços e ter um espaço para a sepultura perto. Devemos restaurar a prática, que se perdeu no Século XIX, de sepultar os nossos mortos no adro da Igreja. As pessoas não deviam ter de viajar vários quilómetros em ocasiões especiais para visitar as sepulturas dos seus familiares algures num lugar impessoal; deviam poder passar pelos sinais visíveis da sua presença continuada a caminho da missa. E assim os membros da comunidade devem estar unidos aos seus antecessores, todos os dias, consolando-se com o facto de também eles, um dia, virem a descansar com os que os antecederam.

Conheço um cemitério perto de um campus universitário onde a maioria dos membros de uma ordem religiosa estão sepultados debaixo de simples cruzes. Conheço várias pessoas, novas e velhas, que visitam esse lugar regularmente porque lá encontram conforto espiritual e sentem que os ajuda a colocar as coisas em perspetiva, recordando-os daquilo que é verdadeiramente importante na vida.

Claro que me vão responder: “Não podemos sepultar os nossos mortos no adro da Igreja, porque a lei não o permite”. Eu sei. Mas se já muitos advogados conseguiram dar a volta a estas regras antiquadas – que só faziam sentido quando as cidades não tinham forma de preservar corpos em decomposição – nós também conseguimos! Lutemos pelo direito a fazer aquilo que as igrejas fazem há séculos.

E continuaria a haver trabalho para as agências funerárias, claro. Não seria preciso as igrejas irem buscar cadáveres à morgue, embalsamar os corpos ou fornecer caixões – embora algumas forneçam caixões baratos de madeira, sobretudo a famílias pobres. E na verdade ninguém precisa de ser embalsamado (10 mil euros para enterrar alguém? Neste país é preciso ser rico para viver e para morrer).

Basta as igrejas reaprenderem a fazer bem esta coisa tão simples e passarão a merecer a mais profunda gratidão e admiração não só dos seus membros, mas mesmo dos ateus mais empedernidos, pela atenção revelada durante a sua hora mais negra. Se, por outro lado, as Igrejas não conseguirem fazer esta única coisa – estar presente com as pessoas quando mais precisam – então não se devem surpreender com o facto de se tornarem cada vez mais irrelevantes para a sociedade, e desprezadas pelo seu aparente desinteresse em levar a cabo um dos seus deveres mais básicos.


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Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quinta-feira, 30 de Maio de 2019)

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