Wednesday, 30 November 2022

O Senhor da História

Pe. Paul Scalia
A discussão em torno da proposta de lei do suposto “Respeito pelo Casamento” voltou a colocar o assunto do casamento homossexual na agenda mediática e, juntamente com ele, o lema “O lado certo da história”. Esse mantra é uma forma inteligente de obrigar as pessoas a aceitar uma ideia política ou uma agenda social. Ou se concorda com a proposta em cima da mesa, ou estamos do lado errado da história. Não há pior forma de pressão social. Ninguém gosta de se sentir deixado de parte, mas estar do lado errado da história? Ora aí está uma proposta assustadora.

Na verdade, esta expressão encapsula a visão errada da história que a nossa cultura abraça. Nomeadamente, a ideia de que se trata de uma evolução da humanidade em constante melhoramento; de que toda a história se dirige rumo à perfeição. É evidente que temos assistido a progresso em determinadas áreas. Quase que erradicámos certas doenças. Temos formas extraordinárias de comunicação e de transporte. A câmara do novo iPhone é incrível, etc..

O problema está em pensar que o mesmo se aplica a nós mesmos e à nossa sociedade. Presumimos que, tal como a nossa tecnologia, também nós estamos constantemente a melhorar, através dos nossos próprios esforços e criatividade. Assim, a história não é mais do que uma marcha rumo à perfeição humana. Quem discorda está do lado errado, não apenas da discussão, mas da história.

Claro que todo o conceito é terrivelmente ingénuo. Sim, temos conseguido grandes avanços no ramo da ciência, da tecnologia e da medicina. Mas para que é que os usamos? Para o bem, em alguns casos, e para o mal, noutros. Por mais que tenhamos avançado em determinadas áreas, ainda temos a mesma capacidade para o mal que tinham os nossos antepassados e esse mal não é algo do qual nos possamos libertar apenas com os nossos esforços.

Outro problema é que os líderes tendem a estar sempre com muita pressa para chegar ao lado certo da história. E isso até faz sentido. Se é esse o objectivo final, porquê esperar? Nada se deve meter no caminho. Assim vimos que durante a Revolução Francesa o Reino do Terror guilhotinou todos aqueles velhacos que não prestavam culto à República e ao Culto do Ser Supremo. Lenin e Stalin correram atrás do paraíso dos trabalhadores, à custa de milhões de vidas dos seus próprios cidadãos. A mortandade provocada por Mao Tsé Tung conseguiu ser ainda maior que o Grande Salto em Frente. Chegar ao lado certo da história tem um grande custo em sangue.

Esta visão da história também escraviza espiritualmente e intelectualmente as pessoas. Uma vez que o lado certo da história está sempre no futuro, nada do passado tem valor. Qualquer apelo à história ou à tradição, à sabedoria do passado, é proibido. As estátuas devem ser removidas, a história purificada, os nomes das ruas e das escolas alterados.

Mas esse tal futuro nunca chega. É sempre uma utopia, mesmo para lá do horizonte. Claro que os líderes não têm qualquer interesse em que esse momento perfeito chegue, porque aí perderiam os seus trunfos. Então as pessoas são roubadas quer do seu passado, quer do seu futuro. Sem tradição que os alimente, nem futuro realístico por que esperar, tornamo-nos órfãos do imediato.

E o que é que isto tem a ver com o Primeiro Domingo do Advento?

O ponto de viragem da história
É que a Igreja tem uma visão radicalmente diferente da história. Nós não acreditamos que o momento mais importante esteja nalgum futuro “lado certo”. Acreditamos que o ponto de viragem da história está no evento passado, para o qual agora nos preparamos agora: o nascimento de Cristo. Tudo o resto ou estava a convergir para aí, ou parte daí. Aquilo por que ansiamos no futuro, no final dos tempos, não é uma coisa nova mas a plenitude, o desvendar, de tudo o que começou com o seu nascimento.

Nem estamos propriamente à espera que as coisas melhorem entretanto. Há incontáveis passagens das escrituras que nos mostram que para o povo de Deus as coisas não melhoram, antes pioram, à medida que o fim se aproxima. Então o Senhor aparecerá para salvar o seu povo e retribuir a sua fidelidade.

É verdade que isto pode parecer desencorajador e pessimista. Mas é também realístico e libertador: as coisas não estão sempre a melhorar. Existe grande sabedoria no passado e haverá grandes males no futuro. Isto ajuda-nos a colocar aquilo que vemos à nossa volta em perspectiva. As confusões culturais, as guerras, a doença, a fome e tudo o resto devem entristecer-nos. As injustiças devem deixar-nos zangados. Mas nem umas nem outras nos devem surpreender ou desorientar. Porque não esperamos a contínua perfeição do mundo nem procuramos a perfeição em todas as coisas deste mundo.

Esta visão bíblica também clarifica o nosso propósito. Devemos procurar construir uma sociedade melhor, cuidar dos doentes e ajudar os pobres. E isso é precisamente o que os cristãos têm feito ao longo da história, mais do que qualquer outro. Mas fazemos essas coisas como expressão de fé, como obras de misericórdia, e não por pensarmos que podemos aperfeiçoar o mundo. Não nos cabe a nós dobrar o arco da história. Nós não procuramos a perfeição das coisas presentes, mas sim mantermo-nos fiéis àquele grande evento do passado, enquanto esperamos o seu cumprimento no futuro.

Assim, para o cristão, toda a história tem sentido, e não apenas um momento fugaz no futuro. O momento definidor da história está no passado, e por isso podemos olhar para o passado em busca de sabedoria, verdade e sentido. O passado não nos está vedado. E olhamos em frente também. O culminar da história está no futuro e por isso devemos aguardar com esperança – não a perfeição deste mundo – mas a vinda de Cristo em sua glória.


O Pe. Paul Scalia é sacerdote na diocese de Arlington, pároco da Igreja de Saint James em Falls Church e delegado do bispo para o clero. 

(Publicado pela primeira vez no domingo, 27 de Novembro de 2022 em The Catholic Thing

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.  

Friday, 25 November 2022

De bola e de fé

Estamos todos – ou quase todos – com a cabeça no Mundial. Mas devíamos? Um cristão devia estar a ver os jogos, ou devíamos boicotar o Mundial por estar a ser disputado num país que não respeita os direitos humanos? E até onde pode ir a paixão pelo futebol? Foi sobre isto que conversámos no episódio do Hospital de Campanha que foi hoje para o ar. Eu, o Duarte Valle de Castro e o Padre Nuno Coelho. Não percam, que foi uma conversa muito gira!

Ainda sobre o mundial, gostaria de recomendar que leiam esta entrevista que fiz ao Fernando Santos, e que foi publicada no jornal americano The Pillar. O seleccionador fala da importância da fé na sua vida, da compatibilidade com o futebol e de como ultrapassou as superstições, tão comuns nesse mundo.

Falei também com o Vigário Apostólico da Arábia do Norte, que inclui o Qatar, sobre o impacto do mundial para a comunidade cristã local e sobre a questão dos direitos humanos.

Mudando de assunto, aproxima-se o Natal e como todos os anos está presente em Lisboa uma venda de artesanato da Terra Santa. Cliquem aqui para saber tudo sobre esta mostra, que está na Basílica dos Mártires.

Por falar em cristãos aflitos no Médio Oriente, leiam aqui o meu artigo sobre os universitários cristãos no Líbano que sentem que já não têm espaço para viver no seu próprio país. Foi um texto duro de escrever.

Na próxima semana estarei com o Pe Peter Stilwell na sede da Brotéria, no Chiado, para falar sobre o diálogo inter-religioso, no seguimento da mais recente viagem do Papa Francisco ao Cazaquistão. Começa às 19h e acaba às 20h30. Apareçam! Mais informação aqui e aqui.

E por fim, não percam o artigo desta semana do The Catholic Thing em português, em que Elizabeth Mitchell explica como somos todos o homem assaltado a caminho de Jericó, mas também podemos ser para os outros o Bom Samaritano, em “O Caminho do Amor Misericordioso”.

Thursday, 24 November 2022

Ajude os cristãos da Terra Santa neste Natal

Visitem a mostra de artesanato de oliveira feito por cristãos da Terra Santa. 

Esta é uma forma muito fácil e importante de apoiar uma comunidade que tanto precisa da nossa ajuda. E as peças são belíssimas!

A mostra está, como é costume, na Basílica dos Mártires, no Chiado. 

Basta clicar na imagem para ter mais informação. 



Hospital de Campanha #14 - Edição especial Mundial 2022

Pe. Nuno Coelho
O futebol move paixões, mas até onde é que é saudável ir essa paixão? 
Um cristão pode ser um apaixonado por futebol? 
O que dizer das superstições tão comuns neste meio? 
Para este episódio convidámos o Pe. Nuno Coelho, amigo e pároco de Fernando Santos e o Duarte Castro. Falámos da fé do seleccionador, partilhámos histórias das nossas próprias vivências no futebol e discutimos a dimensão ética de este torneio ser no Qatar. 
Este é para ouvir entre jogos, com uma cerveja e uns tremoços à mão.


Leiam também: 

Wednesday, 23 November 2022

O Caminho do Amor Misericordioso

Elizabeth A. Mitchell

Talvez já tenhamos lá estado. Deitados com o homem à beira do caminho, espancados pelo Acusador, feridos pelos nossos pecados, sentindo-nos inanimados e sós. Os espíritos da confusão, da discórdia, ira, insulto, dúvida e medo atacaram-nos quando menos esperávamos. Submetemo-nos a elas e deram cabo de nós. Roubando-nos a alegria e a paz, partiram e continuam a “passear pela terra, a patrulhá-la” (Job 1,7), em busca da próxima vítima.

Cristo identifica a nossa condição na parábola do homem roubado por salteadores no caminho para Jericó – a parábola do Bom Samaritano – explicando que “caiu nas mãos de assaltantes. Estes lhe tiraram as roupas, espancaram-no e se foram, deixando-o quase morto”. (Lucas 10,30)

O abandono do pecado é real. Sentimo-nos isolados, incapazes de ser tocados pelo outro, entregues nas mãos dos salteadores mentirosos. Os ladrões espirituais destroçaram as nossas almas e partiram, deixando-nos a definhar.

E quando damos por nós nesta condição, juntos ao homem deitado à beira do caminho, incapazes de nos levantarmos e de restaurarmos a graça nas nossas almas, onde podemos procurar ajuda? Que mão amorosa nos procurará? Como podemos ser restaurados quando estamos já sem forças?

Recentemente estava à espera de me confessar e percebi que todos nós que estávamos na fila estávamos à beira daquele caminho. O caminho para Jericó. E que só uma pessoa é que iria parar, com toda a sua compaixão, e aceitar tocar nas nossas feridas e ligá-las: o padre, na confissão, agindo em nome de Cristo.

Com o seu vinho e óleo para os nossos pecados, o Espírito Santo ministra-nos através do sacerdócio sacramental. “Mas um samaritano, estando de viagem, chegou onde se encontrava o homem e, quando o viu, teve piedade dele. Aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo. Depois colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele.” (Lucas 10, 33-34)

A única coisa que nos pode sarar, que pode restaurar as nossas almas, é a graça de Deus. Ele vem ao nosso encontro com profunda misericórdia, no meio da nossa exaustão e a incapacidade de nos curarmos a nós mesmos, e unge-nos com compaixão. O Senhor Deus, no seu poder e na sua misericórdia, levanta-nos da beira do caminho.

No seu Tratado Contra as Heresias, Santo Ireneu descreve esta graça como o “orvalho divino”, explicando:

“Por isso necessitamos deste orvalho divino para produzirmos fruto e para que não sejamos lançados ao fogo; e já que temos quem nos acusa, tenhamos também um Advogado, pois que o Senhor encomenda ao Espírito Santo o cuidado do homem, sua propriedade, que havia caído em mãos de ladrões, compadecendo-se de suas feridas.”

Somos levantados do caminho, e colocados no animal de carga do Senhor, levados para a hospedaria e restaurados. Por pura compaixão. Pura misericórdia. Lucas continua: “No dia seguinte, deu dois denários ao hospedeiro e lhe disse: 'Cuide dele. Quando eu voltar, pagarei todas as despesas que tiver'”. (Lucas 10,35)

Ireneu chama a nossa atenção para as moedas “régias” que são dadas por nós: “para que nós, recebendo pelo Espírito a Imagem e a Inscrição do Pai e do Filho, consigamos multiplicar o denário que nos foi confiado, retornando ao Senhor com juros.”

Juros para o Senhor.

Pelo nosso encontro com Deus e com a Sua graça, somos restaurados. E somos restaurados para O servir. O facto de termos estado deitados à beira do caminho teve um propósito. Estávamos lá para podermos ser colocados mais plenamente e para sempre sob o comando de Cristo, para sermos postos ao seu serviço uma vez restaurados para a vida e para a força. Fomos marcados pela imagem e pela inscrição do Pai e do Filho, que nos deram a cura e a salvação divina. Foi-nos dada uma missão e um propósito.

Jesus termina o seu ensinamento, dizendo “vá e faça o mesmo”. (Lucas 10,37)

Vá e faça o mesmo. Nós podemos ser vasos de misericórdia, jorrando óleo e vinho sobre as almas feridas e maltratadas que nos rodeiam. Estão em todo o lado. Não é preciso ir procurar nos recantos. Enchem a autoestrada, estão na bomba de combustível, estão na sua casa, sofrendo, a precisar de serem amados debaixo de um exterior duro. Estão demasiadamente fracos para amar, mas precisam de ser amados. Precisam de compaixão pura, unilateral. Tal como o Bom Samaritano confia a alma ferida ao Espírito Santo, também nós devemos fazer o mesmo. Como recebemos, devemos dar.

E a nossa caminhada não termina na hospedaria ou no caminho para Jericó. Presumivelmente estávamos a viajar quando fomos assaltados. Recebemos misericórdia pura. Devemos continuar, diferentes, a nossa caminhada. Com um coração purificado, penitente e agradecido, partimos pelo nosso caminho no seu serviço, para ir e fazer o mesmo. “Assim como recebestes Cristo Jesus como Senhor”, diz São Paulo, sob inspiração do Espírito Santo, “continuai a caminhar nele… fortalecidos na fé como vos foi ensinada e a transbordar de gratidão.” (Col. 2, 6-7)

Já não nos encontramos prostrados à beira do caminho. Pela graça fomos renovados. Usando a moeda régia que foi entregue para o nosso cuidado, confiando-nos ao Espírito Santo, partimos de novo no caminho do amor misericordioso.


(Publicado pela primeira vez no Domingo, 20 de Novembro de 2022 em The Catholic Thing)

Elizabeth A. Mitchell, é doutorada em Comunicação Social Institucional pela Universidade Pontifícia da Santa Cruz, em Roma, Itália, onde trabalhou como tradutora para a Sala de Imprensa da Santa Sé e para o L’Osservatore Romano. É decana dos alunos na Trinity Academy, um colégio católico privado no Wisconson. A sua tese “Artist and Image: Artistic Creativity and Personal Formation in the Thought of Edith Stein,” trata o papel da beleza na evangelização pela perspetiva de santa Edith Stein. Mitchell faz ainda parte da direção do Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe em La Crosse, Wisconsin, e é conselheira do Centro Internacional St. Gianna e Pietro Molla para a Família e para a Vida.

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Thursday, 17 November 2022

Encontro Juristas com Fé

 Na próxima semana realiza-se o encontro Juristas com Fé. 

A Associação dos Juristas católicos é uma organização com já muitos anos e cujos membros desempenham um papel muito importante em várias das causas que preocupam a sociedade nos dias de hoje. 

Vejam aqui o cartaz e, especialmente se forem da área, apareçam!

Mais informação no site da AJC

Clicar para aumentar


Wednesday, 16 November 2022

O Problema do Sexo “Recreativo”

Anthony Esolen
Estou grato à fé católica por me ter feito mergulhar, apesar das minhas hesitações, mais a fundo na realidade, quando tantas coisas à nossa volta parecem dirigidas à abstracção, a roubar a pouca noção que já temos do que é verdadeiro, e não apenas das ideias sobre o que é real, ou pior ainda, de palavras que passam por ideias sobre coisas.

Recentemente fui repreendido por uma mulher que defendia o direito ao aborto porque, dizia, “algumas pessoas gostam de ter sexo recreativo” e não deviam ter de se preocupar com gravidezes e partos no caso das hormonas sintéticas falharem, como tantas vezes acontece.

Pensei nessa expressão, “sexo recreativo” e como é cansado, estagnado, chato e pouco rentável o fingimento de que um homem e uma mulher se podem unir naquele acto singular sem que haja qualquer outro significado, como se fossem apenas fitas de velcro presas uma à outra por umas horas.

Os nossos corpos são mais sinceros. Eles preparam-se de inúmeras formas que ainda estamos a descobrir para gerar a criança que poderá ser o fruto dessa união. Mas nas mentes abstraídas de quem apenas quer brincar não existe criança, não existirá criança, não há nada se não “recreação”.  

E essa tentativa de sintetizar o acto é tão esforçada que a deixa desprovida de verdadeira humanidade.

Não faz sentido. De facto, muitas coisas deixam de fazer sentido no preciso instante em que dizemos que são recreativas. Pode-se rezar durante um jogo de futebol, ou durante um picnic. Até devemos fazê-lo! Mas embora se esteja a rezar rodeado de divertimento e pessoas a descontrair, a oração em si não é recreativa, nem poderia ser sem deixar de ser oração. Se estou a brincar às orações, não estou a rezar.

A guerra pode fazer com que um homem se sinta mais vivo do que alguma vez se sentiu em tempos de paz, como me admitiu certa vez um velho sábio. Mas não se pode travar uma “guerra recreativa”. Se é recreação, então não é guerra, e se é guerra, certamente não é recreação. A não ser que se seja um mercenário insensível ou um monstro moral, não se parte para a guerra a não ser que seja a valer.

Poderá conhecer o seu futuro cônjuge num ginásio, num estádio, ou a subir uma montanha, e poderá gostar de aproveitar o ar livre com ele, mas não existe tal coisa como “amor recreativo”, sob risco de deixar de ser amor. O amor é refrescante, torna o nosso lazer mais doce; o amor está para lá das coisas do dia-a-dia.

Mas se aquilo a que chama amor é apenas algo que faz por ser divertido, então não há mesmo amor no que está a fazer. Os sorrisos são todos oferecidos, custam pouco, mas o coração não se dá de barato.

Porque o amor, como diz São Paulo, tudo suporta, tudo crê, tudo espera, tudo aguenta, e não existe amor maior do que a de um homem que dá a vida pelos seus amigos, diz Jesus.

E estes pensamentos trazem-nos de volta à questão fundamental: “O que é que andas a fazer?” A resposta não está numa manifestação de intenções, de motivos, de sentimentos ou de ideias, que frequentemente são apenas autorizações que passamos a nós mesmos para manter as consciências adormecidas.

Suponha que o João está a preparar um prato de restos traçados com veneno. “Toma Bobby”, diz, enquanto chama o cão do vizinho, “anda comer”. Queremos mesmo saber o que se passa na cabeça do João? O que o levou a querer fazer aquilo? O que pretende alcançar? As suas teorias pessoais sobre a alma dos caninos? Será que o deixaríamos dizer: “Isto para mim é apenas recreação. Estou a vingar-me do António. É um jogo. Ele está a ganhar por quatro pontos, mas com isto eu passo novamente para a frente”. Isso não seria ainda pior?

Este também pensava que era só recreação 
(linguagem explícita)

Duas pessoas jovens e apaixonadas cedem aos seus desejos, embora não estejam casadas. Aquilo que estão a fazer não é um mal em si, mas apenas pelas circunstâncias. Se fossem casados, seria uma coisa gloriosamente boa.

Isto nós compreendemos. Há algo do coração neste pecado, não obstante ser pecado, e embora o pecado não possa gerar nada de bom, os dois poderão, de uma forma confusa, estar a apontar para o bem. Mas quando os dois não estão apaixonados de todo, sem um pingo sequer de paixão, a fazer “desamor” por recreação? Isso já me custa mais a entender.

Uma das razões para isso, como já sugeri, é que a Igreja voltou a minha atenção para aquilo que é real. O que é que acontece quando os dois se fundem? Que ser poderão gerar? Que tipo de criatura será essa criança? Qual será a sua relação com o tempo e a memória?

Porque é que é errado que um ser que se recorda, que imagina, que providencia e que espera seja gerado por recreação? Nascer com um pai e uma mãe que não estão comprometidos um com o outro para a vida? Nascer sem uma família estável, numa longa linhagem de famílias em iguais circunstâncias que se estende para o passado e para o futuro?

Que ser é esse no útero? Não sem organização, como uma verruga; não inerte, como uma bolota no passeio; não inanimada, como um cristal; não morto, nem meramente vida em potência; nem canino, nem felino, nem nada para além de humano, com todas as capacidades de um homem, latentes, mas em desenvolvimento, com maravilhosa complexidade, exactidão e rapidez; uma criança, nossa irmã.

Quão misteriosa e bela é esta criança! A Igreja dirige-me os olhos e a alma para essa beleza objetiva.

O pecado mascara-se de “realismo”, no sentido em que assenta sobre a forma habitual do homem se ausentar da realidade. Mas as coisas que estão escondidas serão trazidas para a luz.

Algumas dessas coisas escondidas estiveram todo este tempo diante dos nossos olhos. Nem poderemos dizer ao nosso Juiz: “Se eu soubesse!”. Admitiremos a verdade. “Eu sabia, Senhor, mas não queria saber. Tem misericórdia da minha alma.”


Anthony Esolen é tradutor, autor e professor no Providence College. Escreveu, entre outros, Out of the Ashes: Rebuilding American Culture, and Nostalgia: Going Home in a Homeless World, e mais recentemente The Hundredfold: Songs for the Lord. É professor e autor residente na Magdalen College of the Liberal Arts, em Warner, New Hampshire. Pode visitor o seu site em: Word and Song.

(Publicado pela primeira vez no sábado, 5 de Novembro de 2022 em The Catholic Thing)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

 

Friday, 11 November 2022

Aquele que tem ouvidos, que ouça o Hospital de Campanha


Hoje temos novo episódio do Hospital de Campanha. Para esta conversa convidámos o Pe. Tiago Fonseca que nos fala da sua vocação, de como é ser padre numa altura em que tanto se fala dos pecados e dos crimes cometidos pelo clero, do perigo da solidão entre os sacerdotes e como se pode combater e termina com um apelo às famílias para apoiarem os padres, convidarem-nos para jantar ou, idealmente, para ir ver o Benfica.

Foi uma excelente e animada conversa e ainda por cima o som não nos pregou partidas desta vez, portanto aproveitem e partilhem!

Houve um novo caso de abusos em França, envolvendo um cardeal. É o 11º caso a envolver bispos neste país, mas o cardeal Jean-Pierre Ricard tem a particularidade de ter passado anos na Congregação para a Doutrina da Fé, a decidir sobre casos de abusos entre o clero. O que é que isto quer dizer? Que conclusões podemos tirar? Leiam aqui a minha análise e ouçam o Papa Francisco, que disse recentemente que é preciso coragem para combater este flagelo, mas que nem todos a têm.

O Cardeal D. José Tolentino acaba de publicar um livro sobre São Paulo. Uma boa recomendação para a altura do Natal, que se aproxima.

Por falar em Natal, a fundação Ajuda à Igreja que Sofre acaba de lançar a sua campanha de Natal, este ano focada no Líbano e na Síria. Foi para ajudar a preparar artigos para esta campanha que estive no Líbano em Abril do ano passado, por isso mantenham-se atentos ao site da AIS nas próximas semanas e, mais importante, contribuam para estas comunidades, que tanto precisam.

Entretanto continuamos com o processo do Sínodo sobre a Sinodalidade. O artigo desta semana do The Catholic Thing é de Stephen White, que coloca questões importantes sobre a sinodalidade e deixa avisos que não devemos ignorar.

Já sabem que no blog continuo a publicar as principais declarações sobre a guerra na Ucrânia de líderes religiosos relevantes, recentemente actualizei o Papa Francisco, o Patriarca Cirilo e o Metropolita Onófrio. Tenho também, em constante actualização, a cronologia de casos de abuso sexual em Portugal, que também podem ir visitando.

Thursday, 10 November 2022

Hospital de Campanha Episódio 13 - Pe. Tiago Fonseca

Para este episódio convidámos o Pe. Tiago Fonseca que nos fala da sua vocação, de como é ser padre numa altura em que tanto se fala dos pecados e dos crimes cometidos pelo clero, do perigo da solidão entre os sacerdotes e como se pode combater e termina com um apelo às famílias para apoiarem os padres, convidarem-nos para jantar ou, idealmente, para ir ver o Benfica.

Foi uma excelente e animada conversa e ainda por cima o som não nos pregou partidas desta vez, portanto aproveitem e partilhem!


Wednesday, 9 November 2022

Escutar a Comunhão dos Santos

Stephen P. White

As recentes festividades de Todos os Santos e Fiéis Defuntos dão-nos a ocasião para nos afastarmos das circunstâncias presentes da Igreja e do mundo, e para ver as coisas com um horizonte mais alargado.

Mais do que uma constelação distante de exemplos morais, mais do que uma hoste de intercessores a rezar por nós diante do Trono da Graça, a Comunhão dos Santos é aquilo que espera cada um de nós cuja salvação foi alcançada pelo sacrifício de Jesus Cristo. A gloriosa diversidade de santos é aperfeiçoada pelo esplendor de Deus Trino, cuja vida agora partilham em pleno, na mesma medida em que o relfecte.

Se fomos feitos para a beatitude, se é esse o nosso destino final e objectivo, então a comemoração dos Fiéis Defuntos é uma recordação de que o caminho é estreito. As almas no Purgatório irão para o Céu. Mas enquanto rezamos pela sua purificação e rápida entrada na beatitude, não podemos se não recordar a necessidade urgente de arrependimento e de conversão nas nossas próprias vidas.

O que nos traz de volta ao lugar onde estamos, esta Igreja peregrina na Terra. E a verdade é que por aqui as coisas não andam especialmente bem.

Ao longo dos últimos meses e até anos a Igreja tem estado a atravessar mais um dos seus períodos de autorreflexão, que às vezes mais parecem um exercício de umbiguismo do que de examinação de consciência, em particular em torno do Sínodo sobre Sinodalidade.

Roma parece estar a preparar-se para declarar que o sínodo foi um enorme sucesso, antes mesmo de ter começado – isto apesar de algumas sérias preocupações com os níveis de participação e ingenuidade, para usar um termo simpático, em relação a alguns dos fundamentos da fé.

Independentemente do sínodo, é desconcertante ver que muito poucos católicos parecem compreender o que significa “sinodalidade” ou o que este Sínodo pretende alcançar. E é ainda mais desconcertante que toda a gente envolvida no sínodo parece estar disposta a passar ao lado deste facto inconveniente.

Por meio do nosso baptismo, todos participamos da missão da Igreja. Cada um de nós participa desta missão de acordo com a nossa particular vocação e circunstância. E a natureza hierárquica da Igreja e da autoridade eclesial existe para servir, e não para contradizer, esta missão compartilhada. Não existe um sector do Povo de Deus a quem este imperativo missionário não diga respeito.

Esta é, de forma resumida, a visão da Igreja conforme o Vaticano II e o Lumen Gentium, e em todo o lado onde a Igreja floresce é essa a realidade que vemos em acção. Se é isso que significa sinodalidade, então não podia ser mais a favor.

Mas se é isso que significa a sinodalidade, não é certamente assim que o Sínodo tem sido “vendido” e “promovido”.

É compreensível que todos aqueles que são responsáveis por conduzir o processo sinodal queiram que este seja um sucesso. Mas ao enfatizar a radical novidade do Sínodo, numa tentativa aparente de o tornar “relevante” e “excitante”, estão a prestar-lhe um mau serviço. Todo esse marketing e os slogans, que se aproximam do triunfalismo, que estão a sair de Roma parecem quase pensados para exacerbar o problema.

Confiar no Espírito Santo é uma coisa. Confiar nas promessas feitas a Pedro de que as Portas do Inferno não prevalecerão contra a Igreja é uma coisa. Mas confiar cegamente no discernimento e no juízo de um grupo de pessoas escolhidas acima de tudo pela sua disponibilidade para dizer o que quer que seja – por mais implausível e inconsistente – para poder apresentar o processo sinodal, ainda em desenvolvimento, como um triunfo imaculado, é outra coisa completamente diferente.

Na conferência de imprensa de apresentação do Documento da Etapa Continental, um dos conselheiros do secretário-geral do sínodo disse que “a sinodalidade não é uma forma de ser Igreja, é a forma de ser Igreja”. Tudo bem, mas então é suposto acreditarmos que até agora a Igreja não tem sido verdadeiramente a Igreja? Devemos acreditar que todos os ensinamentos e a sabedoria da Igreja ao longo de mais de dois mil anos não foram também fruto de cuidadoso discernimento?

Devemos mesmo acreditar que o sensum fidelium consiste das opiniões de uma proporção minúscula dos católicos que estão vivos hoje, ignorando dois milénios de testemunhos cujo discernimento e santa sabedoria são agora tratados muitas vezes com desprezo e rancor simplesmente porque descobrimos uma coisa nova e brilhante para substituir o que é “antigo” e “atrasado”?

A sinodalidade ou tem raízes profundas na vida da Igreja, ou é radicalmente e totalmente nova, mas não pode ser ambos. Aqueles que enfatizam a segunda para tentar convencer os fiéis de que o progresso está a ser um enorme sucesso – apesar de poucos perceberem alguma coisa do sínodo ou se preocuparem sequer com o assunto – parecem ter vistas curtas. Certamente isso não é um exemplo do tipo de discernimento e reflexão sóbrios dignos deste sínodo ou da Igreja.

A semana passada juntámo-nos ao resto da Igreja na celebração dos santos e para rezar pelas almas dos fiéis defuntos. Enquanto a barca de Pedro atravessa mares revoltos, podemos treinar ser uma “Igreja de escuta” voltando as nossas atenções para o testemunho daqueles que, pelas suas vidas, proclamaram a Verdade que salva. Ouvir, e imitar, aqueles que descobriram o caminho pela graça, através da porta estreita.

Uma vez que estamos rodeados por tão grande nuvem de testemunhas, livremo-nos de tudo o que nos atrapalha e do pecado que nos envolve e corramos com perseverança a corrida que nos é proposta, tendo os olhos fitos em Jesus, autor e consumador da nossa fé. Ele, pela alegria que lhe fora proposta, suportou a cruz, desprezando a vergonha, e assentou-se à direita do trono de Deus. (Hebreus 12, 1-2)

Eis uma palavra em que podemos confiar. Eis o Povo de Deus, determinado a livrar-se do pecado, com os olhos fixos em Jesus. Eis a Igreja da qual nós pecadores, aqui na Terra, somos apenas uma pequena parte. Ouçamos esta nuvem de testemunhas e caminhemos – ou corramos mesmo – juntamente com eles ao longo do caminho estreito.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 3 de Novembro de 2022)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

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Tuesday, 8 November 2022

Abusos na Igreja - O caso do cardeal Jean-Pierre Ricard

A revelação, feita ontem, de que um cardeal francês abusou sexualmente de uma jovem de 14 anos numa altura em que ainda era pároco, é muito mais grave do que pode parecer à primeira vista – e à primeira vista é já extraordinariamente grave.

O cardeal em causa é Jean-Pierre Ricard, bispo emérito de Bordéus.

Com este escândalo são pelo menos três os cardeais que na última década foram acusados de impropérios sexuais. O cardeal Keith O’Brien, da Escócia, que foi revelado pela imprensa mesmo antes do último conclave, no qual não chegou a participar, embora nunca tivesse deixado de ser cardeal; o cardeal Theodore McCarrick, de quem se soube em 2018 e acabou mesmo por ser laicizado, e agora Jean-Pierre Ricard. Pelo meio tivemos outro bispo afastado do Colégio dos Cardeais, Giovanni Angelo Becciu, mas por suspeitas de más-práticas financeiras, e não sexuais e mais recentemente tivemos o caso de D. Ximenes Belo, que não sendo cardeal é Nobel da Paz, o que o coloca também num patamar especial.

Em Portugal os bispos têm estado sob pressão por causa dos casos de abuso sexual na Igreja, mas nada que se compare com França. É verdade que o estudo apresentado em França, que aponta para centenas de milhares de vítimas de abuso infantil na Igreja local, é muito questionável, mas independentemente disso, a verdade é que Ricard não é o primeiro, mas sim o décimo-primeiro bispo a ser acusado no âmbito desta questão dos abusos sexuais.

Mas olhando agora mais de perto para a sua acusação em particular – ou melhor, a sua admissão, pois o próprio já admitiu os factos e pediu perdão à vítima, pondo-se ao dispor da justiça civil e canónica – um dos factos mais graves, e que ainda não vi merecer a devida atenção na imprensa portuguesa, é que Ricard fez parte, durante 14 anos, da Congregação para a Doutrina da Fé (agora Dicastério), que ainda é o órgão que trata da maioria dos casos de abuso sexual praticados na Igreja, decretando as sentenças para os padres que são condenados.

Isto significa que durante mais de uma década um homem que sabia ser ele próprio um abusador fez parte do painel responsável por lidar com casos de abusos. E isto é grave porque mesmo que ele tenha feito tudo bem – e não temos qualquer indício de que não tenha sido o caso – isto afecta gravemente a confiança dos órgãos da Igreja que mais precisam de ser insuspeitos para que ela limpe finalmente a sua imagem e vire uma nova página.

É evidente que nenhum sistema é perfeito, e haverá sempre padres e bispos corruptos, como existem polícias, juízes e políticos corruptos. Não há reforma que nos livre disso. Mas se há uma grande lição a retirar deste caso é mesmo para os clérigos.

Pode levar cinco, dez, vinte ou, como neste caso, trinta-e-cinco anos a saber-se. Mas o mais provável é que venha mesmo a saber-se. E quando se souber, quanto mais altos estiverem na hierarquia, quanto maiores as responsabilidades que assumiram, mais isso vai afectar a confiança dos fiéis que vos foram encomendados, mais as almas vão duvidar, mais pessoas virarão costas à mensagem salvadora de Cristo.

Depois de anos a cuidar da sua imagem e reputação, a Igreja está agora a perceber que é preciso colocar as vítimas em primeiro lugar. Mas lembrem-se que também o Povo de Deus merece respeito, merece integridade e verdade dos seus pastores e haverá um momento na vida de cada um dos que cometeu estes abomináveis crimes em que terá de decidir se aceita o cargo, a promoção ou a responsabilidade que lhe está a ser oferecida, apesar de carregar esta bomba relógio consigo, ou se recusa, para pelo menos poupar os fiéis de mais escândalos no futuro quando a verdade vier ao de cima.

Já que fizeram a coisa errada no passado – se for esse o caso – façam a certa agora. E de preferência submetam-se à justiça da Igreja e do Estado, já que a de Deus é certa. 

Monday, 7 November 2022

Arquivamentos sacerdotais e novidades (boas e tristes) episcopais

D. Armando Domingues
Com um dia de atraso, por motivo de aniversário de um filho e respectiva visita ao Oceanário, estou de regresso com mais informação de actualidade religiosa.

E começo com uma notícia fresquinha! A Arquidiocese de Évora informa que o padre que estava suspenso por suspeita de encobrir um caso de abusos não irá a julgamento civil nem canónico. Saiba porque é que este caso é um exemplo a seguir por outras dioceses, e espreite a cronologia para ficar a par dos mais recentes desenvolvimentos no campo dos abusos em contexto eclesial em Portugal.

Não era preciso este mais recente caso para sabermos que há acusações falsas e que, a seguir às vítimas, evidentemente, são os padres que mais estão a sofrer com o peso de toda esta polémica. Por isso repito o desafio feito a semana passada. Apoiemos os nossos padres!

Se, como é possível, estão fartos da conversa dos abusos, lembrem-se que o tema é mesmo importante, mas que felizmente não é o único e foi por isso que o último episódio do Hospital de Campanha foi sobre exemplos de sacrifício e dádiva que existem, felizmente, aos magotes entre os servos e servas de Deus!

Ao nível dos bispos temos uma notícia boa e outra triste. Morreu, de madrugada, o bispo auxiliar de Lisboa, D. Daniel. Rezem por ele, e pelo D. Manuel, que fica agora mais desapoiado na difícil tarefa de conduzir o Patriarcado. A notícia boa é que a Diocese de Angra já tem novo bispo, D. Armando Domingues, que até agora era auxiliar do Porto.

O Papa está no Bahrain, para uma visita carregada de importância ao nível do diálogo inter-religioso. A visita está a ser acompanhada a par e passo pela Renascença, que tem no local a inigualável Aura Miguel.

Por falar em diálogo inter-religioso, podem ler o que escrevi com base numa conferência do especialista no assunto, e líder da Igreja Católica na Arábia, bispo Paul Hinder. Aconselho ainda a lerem o meu artigo na edição deste mês da Brotéria, disponível online para assinantes, ou em papel, sobre a importância da visita do Papa ao Cazaquistão. No fundo, uma leitura mais profunda e mais desenvolvida deste artigo.

E termino com uma recomendação musical! O meu bom amigo Manuel Fúria lançou novos temas, entre os quais este, dedicado aos cristãos perseguidos. Ouçam, partilhem e ajudem a espalhar o trabalho de um roqueiro católico e bom pai de família!

Friday, 4 November 2022

Abusos - Um exemplo a seguir

A Arquidiocese de Évora informou esta sexta-feira que o padre que estava suspenso por suspeita de encobrir um caso de abusos não irá a julgamento civil nem canónico. Já o leigo, colaborador da paróquia de Samora Correia, vai ser julgado e encontra-se em prisão domiciliária, impedido de contactar com menores de 16 anos. Os detalhes estão já na cronologia.

Tanto o Tribunal como o Dicastério para a Doutrina da Fé entenderam que o padre poderá ter sido imprudente, por não compreender o risco de reincidência, mas não agiu com dolo nem com intenção de encobrir. 

Isto, pelo que me foi possível acompanhar, é o tratamento exemplar de um caso suspeito por parte da paróquia. Há uma suspeita, suspende-se preventivamente o envolvido, neste caso o padre, colabora-se com as autoridades, junta-se a informação e envia-se para Roma e no espaço de poucos meses está tudo resolvido, com transparência e em pratos limpos.

E isto tem uma vantagem adicional. O padre Heliodoro, que se viu no centro desta polémica, escusa de andar para o resto da vida envolto em suspeitas, porque o caso foi tratado com transparência. Não estou a sugerir que o que ele passou foi agradável, mas parece-me ser melhor que a alternativa, de ser tudo tratado em segredo, ou simplesmente abafado, e ser motivo de sussurros para o resto da vida. 

Um dos problemas evidentes da suspensão imediata preventiva é que se torna uma arma perfeita para vinganças pessoais. Tenho alguma coisa contra o padre Y? Escrevo uma carta, invento uma denúncia e tramo-lhe a vida. 

Mas mesmo isto torna-se mais difícil quando tudo é tratado de forma célere e transparente. Antigamente bastava pôr a circular um boato, e dificilmente ele se livrava para o resto da vida. Hoje, se tudo correr bem, a questão fica esclarecida, e bem, por quem tem o dever e o conhecimento de investigar.

Nem todos os casos serão tão claros, obviamente, mas já é um bom começo e parece-me que a Arquidiocese de Évora deve ser elogiada pela forma como agiu, dando um caso complexo por encerrado - no que ao sacerdote diz respeito - no espaço de menos de quatro meses. 

O mesmo poderia ser dito em relação ao caso do pároco de Massamá, no Patriarcado de Lisboa, que se resolveu de forma ainda mais rápida. 

É este o modelo a seguir! Que as outras dioceses ponham os olhos nestes resultados. 

Morte de D. Daniel, bispo auxiliar de Lisboa

Rezemos por D. Daniel, bispo auxiliar de Lisboa, que morreu esta madrugada depois de uma dura luta contra o cancro .

D. Daniel tinha apenas 56 anos. A sua morte prematura deixa o Patriarcado de Lisboa de luto e deixa o Patriarca, D. Manuel, mais desapoiado no seu trabalho. As nossas orações por ele também, que tanto precisa do nosso apoio. 

Segundo informação enviada pelo Patriarcado:

O corpo chegará à Sé de Lisboa esta sexta-feira, pelas 18h00, e às 21h30, a seu pedido, rezar-se-á a recitação do Terço, com os mistérios gloriosos, seguido do Ofício de Leitura.

A Missa exequial vai ser celebrada amanhã, sábado, às 11h00, na Sé, presidida pelo senhor Patriarca.

O féretro seguirá depois para Santo Isidoro e ficará na igreja paroquial até às 16h00, altura em que seguirá para o cemitério local, onde ficará sepultado.

Wednesday, 2 November 2022

Daqui até à Eternidade

Randall Smith

Poucas coisas desafiam a nossa tranquilidade e provocam em nós um sentido de temor existencial mais profundo do que a recordação da morte. Se tudo aquilo que procurámos alcançar – tudo o que aprendemos e experienciámos, toda a gente a quem amámos – se resume a nada, haverá, pensamos nós, algum sentido para a vida?

O Vaticano II observa, e bem, que: “É em face da morte que o enigma da condição humana mais se adensa. Não é só a dor e a progressiva dissolução do corpo que atormentam o homem, mas também, e ainda mais, o temor de que tudo acabe para sempre” (Gaudium et Spes, 18).

Ao longo da história muitas pessoas se convenceram de que deve haver uma vida depois da morte para que a vida tenha algum sentido. E, porém, algumas das concepções da vida depois da morte também tornam esta vida sem sentido.

Se o Céu é assim tão maravilhoso, porquê perder o nosso tempo na terra? E o que é feito de tudo aquilo pelo qual nos esforçámos? Todas as nossas relações, os nossos amores, a nossa dedicação aos outros? As coisas que amamos são simplesmente abandonadas quando morremos? Para muitos, mesmo aqueles que crêem na vida depois da morte, o maior medo que existe é de perderem as ligações com aqueles que amam.

Assim, também, a ideia do tipo de boa vida que devemos ter nesta vida não deve contradizer a vida abençoada no Céu, e vice-versa. Se a “melhor vida para o homem” é uma vida de virtude, então não podemos, sob risco de sermos culpados de grave inconsistência, afirmar que a vida dos bem-aventurados no Céu envolve relações sexuais dissolutas com setenta virgens.

De igual modo, se um cristão crê que o Céu é um reino de amor abnegado de Deus e dos outros, mas vive a vida presente em busca de riqueza, poder e estatuto, então essa pessoa não compreendeu a relação essencial entre esta vida e a próxima.

Uma das coisas que a divina Revelação nos mostra, e que se confirma de forma mais plena nas aparições de Jesus Ressuscitado, é que a promessa de Cristo de vida eterna inclui a ressurreição do corpo. Infelizmente, muitos cristãos parecem não ter noção desta crença central da nossa fé. Apesar de repetirmos em cada recitação do credo que cremos “na ressurreição da carne”, é raro o cristão que verdadeiramente se apercebe deste ensinamento cristão.

Se um cristão afirma que a morte implica a libertação da alma do corpo, como Sócrates parece ter defendido, então estariam em contradição não apenas com o ensinamento de São Paulo sobre a ressurreição da carne, mas também com o entendimento cristão da unidade intrínseca entre corpo e alma. Mesmo os cristãos que sabem que a fé implica acreditar na ressurreição da carne perguntarão o que é que isso significa.

Esta é, obviamente, uma questão muito importante, demasiado complexa para encaixar num curto artigo como este, por isso o leitor perdoar-me-á se eu aproveitar para falar do meu novo livro, From Here to Eternity: Reflections on Death, Immortality, and the Resurrection of the Body que acaba de ser publicado pela Emmaus Press. Deixem-me dar-vos só umas luzes, para que decidam por vós se é o género de coisa que gostariam de ler (ou de oferecer a muitos amigos – não que eu esteja a insinuar nada…).

No livro argumento que a revelação mais plena da visão cristã da vida depois da morte se dá na pessoa do Cristo ressuscitado. Há outras imagens de “Céu” nas Escrituras, e não estão desprovidas de importância, mas não deixam de ser apenas imagens. A revelação mais central e importante da vida após a morte é dada pelo próprio Cristo, no seu corpo ressuscitado.

Essa revelação assegura-nos que, depois da morte, podemos, se respondermos às graças que Deus nos deu, partilhar de forma plena no amor trino de Pai, Filho e Espírito Santo. Mas mostra também que estaremos unidos a Deus de tal forma que não perdemos a nossa identidade ou a nossa relação com aqueles que amamos. O Cristo ressuscitado que se revela a si mesmo no Cenáculo continua a ser Jesus, aquele que eles conheciam, e não um “espírito” gnóstico que se libertou depois da morte do seu corpo.

Maria e os Santos não foram “absorvidos” por Deus como uma gota de água a regressar ao oceano. Permanecem pessoas distintas, ainda ligadas a nós no amor, mas cada vez mais intimamente, não só junto a nós, mas agora acima e dentro de nós, rezando por nós de uma forma ainda mais potente a cada momento, unidos a nós precisamente porque unidos ao Corpo Ressuscitado de Cristo.

A Ressurreição de Cristo e a ressurreição geral dos fiéis dão-nos esperança – não apenas a esperança de uma fuga desta vida, deixando para trás todos aqueles que amamos, mas sim uma esperança na transformação e na redenção desta vida – uma caminhada que, ainda que apenas encontre o seu destino na próxima vida, começa agora, hoje, nesta vida.

“Fomos sepultados com ele na morte por meio do batismo”, escreve São Paulo aos Romanos, “a fim de que, assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos mediante a glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova.”

Tal como a Igreja há muito que ensina que a graça não viola a natureza, antes a aperfeiçoa, assim também a noção cristã da vida depois da morte não nega o valor desta vida, mas aperfeiçoa-a. A promessa cristã é de que, quando vivemos as nossas vidas em continuidade com Cristo crucificado e ressuscitado, estamos a viver agora uma antevisão da vida de que gozam os bem-aventurados – todos os santos que por estes dias celebramos – no Céu.

Assim, a mensagem crista é esta: Comecem a viver agora a vida do céu, que é a vida do Cristo crucificado e ressuscitado, uma vida purgada do nosso falso eu e do seu egoísmo, abrindo assim caminho para uma “vida eterna”, uma vida devotada ao amor abnegado por Deus e pelo próximo. A “Boa Nova” é o conhecimento de que nenhum poder no mundo, por maior que seja, nem mesmo a morte, pode separar-nos desse amor por Deus e pelo próximo.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 1 de Novembro de 2022)

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