A situação de tensão que se vive neste momento na
Ucrânia, com a ameaça de uma invasão russa, não é um conflito religioso. Isso
deve ficar bem claro à partida. Mas tal não significa que não haja dimensões
religiosas para este problema. E há. Neste artigo vou tentar abordar algumas
delas.
1. Choque
de civilizações, mais ou menos
Depois de décadas de Guerra Fria o mundo convenceu-se de
que a religião tinha deixado de desempenhar um papel importante nas relações
internacionais. O mundo enganou-se. A destruição das Torres Gémeas foi apenas o
mais alto soar de um alarme que já se fazia ouvir desde os anos 80, quando os
movimentos árabes se começaram a transformar de marxistas em islamitas.
Muitos passaram então a adoptar a visão catastrofista do choque
de civilizações, antevendo como inevitável um conflito entre o mundo cristão e
o mundo muçulmano. É verdade que em muitas partes do mundo esse conflito
existe, basta ver a situação em muitos países do centro de África, onde o norte
muçulmano encontra o sul cristão.
Mas convém não esquecer que alguns dos piores conflitos
da história foram travados entre “irmãos de fé”. E isso não nos deve
surpreender, porque tanto a história macro como a história das famílias mostra
bem que as discussões mais severas, mais duradouras e muitas vezes mais sangrentas
– seja metaforicamente, seja literalmente – são entre irmãos. Isto acontece nas
famílias e acontece nos países. Olhemos para a Guerra Civil de Espanha, que se
passou aqui tão perto, mas também para a nossa própria história.
Não deixa de ser curioso, por isso, e trágico, que a
maior ameaça à paz mundial neste momento se passe no Leste da Europa, opondo dois
países que partilham um historial de Cristianismo intimamente ligado. Foi a
Kiev que chegou a fé em Jesus que depois seguiu para Moscovo e se espalhou por
toda aquela região. O conflito na Ucrânia pode ter, por isso, algumas dimensões
religiosas, que iremos ver com mais detalhe, mas não pode ser descrito como um
choque entre duas civilizações religiosamente diferentes.
Contudo, o problema pode ser visto de outro prisma, da civilização
não no seu aspecto religioso, mas cultural. Uma significativa parte da Ucrânia,
temendo a influência de Moscovo, quer voltar-se para o Ocidente, abraçando as
suas instituições e estilo de vida. Nesse sentido, ainda que passado a leste,
entre dois países de leste, o conflito pode ser visto como representando o
choque entre oriente e ocidente.
2. A
religião neste conflito
Disse no primeiro ponto que a Ucrânia e a Rússia
partilham uma história de Cristianismo. É verdade, mas a coisa não é assim tão
simples.
De facto, o Cristianismo bizantino entra naquela parte do
mundo através do Grão Príncipe Vladimir, de Kiev, que manda baptizar todo o seu
povo e envia missionários para leste. Em breve grande parte da actual Rússia
abraçou o Cristianismo.
Mais tarde, porém, Moscovo tornava-se o centro do
Cristianismo de leste que, depois do grande cisma de 1054 viria a tornar-se o mundo
ortodoxo.
Com o cisma, Constantinopla assumiu-se como a “nova Roma”,
uma vez que a verdadeira Roma teria caído em heresia, segundo a sua visão. Mas
quando Constantinopla cai nas mãos dos muçulmanos, tornando-se Istambul, começa
a circular por Moscovo a ideia de que a “terceira Roma” devia ser ali, na capital
de um grande império que era o garante da Ortodoxia cristã no mundo.
É assim que Moscovo continua a encarar-se não apenas como
mais um Patriarcado inter pares no mundo Ortodoxo, mas como a principal
Igreja. O problema para os Russos que partilham desta visão é que embora a
cidade tenha caído, o Patriarcado de Constantinopla manteve-se e o verdadeiro primus
inter pares ortodoxo continua a residir ali, apesar de ter na cidade pouco
mais do que cinco mil fiéis, comparados com os 200 milhões de Moscovo.
O período soviético veio congelar as pretensões da Igreja
Russa, que foi sujeitada a uma perseguição impiedosa, mas infelizmente quando
esta foi restaurada, em vez de insistir numa saudável separação e distância, a
Igreja deixou-se envolver com o Estado e em troca da protecção de que goza
corre sempre o risco de ser usada para benefício dos projectos e intenções do
Kremlin e do seu homem forte, Vladimir Putin.
Quando a Ucrânia se tornou independente a sua Igreja
Ortodoxa continuava sujeita à hierarquia em Moscovo. Mas a tradição na Igreja
Ortodoxa é de “uma nação, uma igreja”, e por isso alguns bispos ucranianos
começaram a reivindicar a criação da sua própria igreja ortodoxa.
O resultado foi uma confusão. Em 1990 formou-se a Igreja Ortodoxa
Autocéfala da Ucrânia e, dois anos mais tarde, a Igreja Ortodoxa da Ucrânia –
Patriarcado de Kiev. As duas eram rivais, unidas apenas na sua oposição à
Igreja Ortodoxa da Ucrânia – Patriarcado de Moscovo, que era, e é, a Igreja
Ortodoxa que se mantém ligada à igreja russa.
Nas bancadas, a observar estas guerras internas e a comer
pipocas, estavam os membros da Igreja Greco-Católica da Ucrânia, que é a maior
Igreja oriental autónoma em comunhão com o Papa, representando cerca de 10% da
população.
A resposta de Moscovo perante a criação das igrejas autónomas
russas foi de desprezo. Eram hereges e não reconhecidas canonicamente pelo
resto do mundo ortodoxo. O Patriarcado russo continuava a insistir que era a
única autoridade legítima ortodoxa na Ucrânia. Mas tudo isso mudou em 2018, quando
o Patriarca de Constantinopla concedeu à Igreja Ucraniana o tomos, isto
é, o reconhecimento oficial de autocefalia. Inteligentemente, as duas Igrejas
ucranianas fundiram-se nesse momento para formar uma única Igreja autocéfala na
Ucrânia, que imediatamente teve o reconhecimento e o apoio do Estado, ansioso
para se livrar de vez da influência de Moscovo. Claro que isso é mais fácil dizer
do que fazer, e houve muitos padres, monges, bispos e comunidades que se
mantiveram fiéis a Moscovo, por variadíssimas razões.
Como se pode ver a dimensão religiosa aqui não está na raiz
do conflito actual, que tem muito mais a ver com questões económicas (recursos naturais)
e geopolíticas (com a Rússia a querer manter e alargar a sua esfera de
influência), do que com igrejas, mas não sendo a causa é uma dimensão que
complica ainda mais um problema que já de si é difícil de resolver.
3. O
tribalismo no cristianismo oriental
E chegamos assim ao terceiro ponto, que é o perigo sempre
presente do tribalismo no Cristianismo oriental.
Os católicos de tradição latina têm uma certa aversão às
igrejas nacionais. Mas a história ditou que fosse essa a lógica a imperar no
cristianismo oriental. Assim vemos que os ortodoxos não têm uma Igreja, com um
líder, mas uma multiplicidade de igrejas nacionais ou étnicas, cada uma com o
seu próprio líder. Assim, existe a Igreja Ortodoxa da Grécia, da Roménia, da Bulgária,
da Letónia, etc., cada uma com o seu líder, seja Patriarca ou não, e todas em
comunhão umas com as outras, reconhecendo no Patriarca de Constantinopla uma
primazia de honra, que pouco tem a ver com a primazia do Papa na Igreja Católica.
Esta realidade leva a uma grande riqueza em termos de
tradição e liturgia, por exemplo, uma vez que a descentralização promove a
variedade. Mas tem também um enorme senão, que é a promoção do tribalismo cristão.
Este tribalismo tem duas grandes vertentes negativas. A primeira
é mais estrutural, que é o facto de criar obstáculos à evangelização. Uma
Igreja que se identifica com uma nação ou com uma etnia torna-se imediatamente
menos atractiva para um convertido do que uma igreja que é universal. O
resultado prático é que a Igreja Católica de rito latino, que sempre se viu
mais como universalista do que étnica, cresceu de uma forma absolutamente
desproporcional, enquanto as igrejas ortodoxas – não obstante alguns casos de
sucesso de evangelização – continuam remetidas muito à sua própria realidade étnica
ou nacional.
Isto é muito aparente nas Igrejas cristãs de países de
maioria muçulmana, como a Igreja copta ou a igreja maronita, melquita, ou
siríacas, no Médio Oriente. E assim vemos que quando um árabe muçulmano se quer
converter, normalmente acaba por entrar para uma igreja evangélica, ou para a
Igreja Católica, uma vez que as locais, apesar de serem originárias daquele
espaço geográfico, estão de tal forma identificadas com etnias e tradições
culturais próprias, que o convertido se sente sempre como um estrangeiro.
Mas o segundo aspecto negativo é mais conjuntural e
imediato no seu perigo, que é a cooptação da Igreja pelo Estado para servir
interesses que não são religiosos. É isso que estamos a ver na Ucrânia, onde as
Igrejas ucraniana e russa estão a ser arrastadas – ou a correr de livre vontade
– para um confronto, quando na verdade este nada tem de religioso. Esta promiscuidade
entre estado e religião tende a cobrar às religiões um preço muito mais alto do
que as eventuais vantagens a curto prazo que podem retirar. Esse é um erro com
o qual ucranianos e russos já deviam ter aprendido ao longo do último século,
mas que infelizmente parecem teimar em querer repetir.
4. E
a Igreja Católica nisto tudo?
|
Da próxima em Moscovo? |
Por estranho que pareça, a Igreja Católica é afectada por
esta crise que se passa entre dois países de esmagadora maioria ortodoxa.
A Igreja Greco-Católica da Ucrânia pode representar só
10% da população, mas é a maior comunidade católica no mundo tradicionalmente
ortodoxo. Para terem uma ideia, enquanto existem cerca de cinco milhões de católicos
na Ucrânia – mais uma significativa diáspora de greco-católicos em várias
partes do mundo – o número de católicos na Rússia é de apenas 140 mil.
Estes católicos ucranianos sofreram duramente, mais até
do que os seus irmãos ortodoxos, pela sua fidelidade a Roma. Num momento
destes, em que se sentem injustiçados, esperam poder contar com o apoio do Papa.
Mas não podemos esquecer que um dos grandes objectivos
ecuménicos deste pontificado é de conseguir visitar a Rússia e ter, lá, um
encontro com o Patriarca de Moscovo. É algo que o Papa Bento XVI e, sobretudo,
João Paulo II já queriam ter feito e não conseguiram. Se a Igreja Católica for
vista a manifestar demasiado apoio à Ucrânia ou a censurar a atitude da Rússia,
as probabilidades de esta visita acontecerem reduzem-se a zero. Já o contrário,
uma visita do Papa ao Patriarca Kiril num contexto de um cerco à Ucrânia e com
a Igreja russa firmemente ao lado de Putin, será vista por muitos católicos
ucranianos como uma traição.
Até agora o Papa tem feito aquilo que lhe cabe, que é
apelar incansavelmente para uma solução pacífica para esta crise. Se de facto
começar um conflito armado em maior escala, veremos se isso é suficiente.