Wednesday, 16 February 2022

Pro Deo et Patria

Francis X. Maier
Para muitas famílias, os ventos de guerra que nos chegam da Ucrânia nestes dias trazem memórias comoventes.

Bill Degnan nasceu no final da Primeira Guerra Mundial, o mais velho de dez irmãos numa família de católicos irlandeses. O seu pai trabalhou nos andaimes de Nova Iorque. Os Degnan viviam pouco acima da linha da pobreza. Winnie, o irmão mais novo do Bill, morreu de difteria na infância. Mas o Bill e o seu outro irmão Joe chegaram a adultos. Depois do ataque ao Pearl Harbour alistaram-se os dois na tropa. Nem hesitaram. Estavam ansiosos para ir. Era a coisa certa a fazer. O Joe serviu como radialista da Marinha num submarino no Pacífico. O Bill entrou para o exército como tripulante de um caça-tanques e esteve envolvido em combates na Europa. Ambos sobreviveram à guerra.

Eram meus tios. Conheci-os quando era criança. Eram bons homens, muito católicos, e eu adorava-os. Cresci à sua sombra, com uma dieta regular de filmes de heróis feitos na ressaca da vitória na guerra. Claridade moral, sacrifício pessoal e um sentido de propósito atravessam uma geração de filmes de combate. Neles eu via o reflexo de homens como o Bill e o Joe.

O cinema de guerra tornou-se mais escuro com a Coreia e o Vietname. No seu cinismo, os filmes tornaram-se uma espécie de imagem invertida dos melodramas que vieram substituir. Foi só com o brilhante “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), seguido da soberba minissérie “Band of Brothers” (2001), que o cinema arranjou forma de combinar a necessidade moral de uma guerra justa com o seu terrível custo em termos de sofrimento e violência. O patriotismo, bem entendido, é uma virtude. Mas pode ser acompanhado de uma factura muito alta e muito feia. 

Mais recentemente a HBO produciu “O Pacífico” (2010), uma minissérie que segue os fuzileiros que combateram nas selvas e através das ilhas do Pacífico. É inesquecível. Eu vi tanto o filme de Spielberg como as séries da HBO várias vezes. A guerra na Europa foi terrível e devastadora, mas travou-se nas ruínas de uma cultura ocidental comum. A guerra no Pacífico teve uma ferocidade incessante mais profunda e pura, livre de qualquer sistema de ética ou religião comuns e frequentemente agravada por ódio racial de ambos os lados. A Convenção de Genebra e as suas “regras de combate” foram largamente ignoradas. O resultado disto é que a violência representada em “O Pacífico” é de um realismo que tem tanto de historicamente correcto como de horrendo.

Onde é que eu estou a chegar com isto?

Horácio, o poeta romano, escreveu a famosa frase “Dulce et decorum est pro patria mori” no primeiro século antes de Cristo – uma fase tardia da República Romana, repleta de um intenso orgulho nacional, ambição e expansão territorial. Dois mil anos mais tarde essas mesmas palavras estão gravadas em pedra noutra república – a americana – por cima da entrada do Anfiteatro Memorial do Cemitério Nacional de Arlington, em Washington. A tradução é “É doce e adequado morrer pela pátria” ou, mais precisamente, “pela terra dos seus pais”.

As palavras do poeta perduraram pelos séculos porque, na sua melancólica nobreza, são verdadeiras. Defender as pessoas que amamos, e a nação que é a nossa casa, é uma coisa boa. É uma coisa boa arriscar o conforto e a liberdade e, em última instância, quando assim for necessário, a vida, para proteger os outros e resistir ao mal.

Batalha das Ardenas

É verdade que o patriotismo pode transformar-se de forma tóxica. A nação pode tornar-se uma espécie de ídolo. Como disse Chesterton, a expressão “o meu país, bem ou mal” faz tanto sentido como dizer “a minha mãe, bêbada ou sóbria”. Existem limites morais para a lealdade. Mas os seres humanos são criaturas de lugares e das relações que neles brotam raízes e dão fruto. Essa “pertença” a algo maior do que nós mesmos – o lugar e o povo que nos deram vida, que nos formaram e sustentam – é o que queremos dizer quando falamos em casa, e é por isso que os melhores ideais de uma “pátria” podem, de facto, exigir o nosso serviço.

Os católicos americanos sempre compreenderam isto. Tipicamente, os católicos encheram as fileiras das academias militares de forma desproporcional. O mesmo padrão pode ver-se (como bem notou o académico protestante Stanley Hauerwas) nas agências nacionais de segurança e de informação. A mais alta condecoração militar dos Estados Unidos, a Medalha de Honra, foi entregue a nove capelães ao longo da nossa história. Cinco deles eram padres católicos.

O amor pela pátria levou o Bill e o Joe Degnan a alistarem-se. No final da guerra o Joe regressou do Pacífico, criou uma família e teve uma carreira de sucesso na General Motors. A experiência do Bill foi diferente. Num combate de proximidade, nas Ardenas, o seu veículo antitanque foi atingido directamente. O combustível e as munições detonaram, incinerando a tripulação – todos menos o Bill, que foi lançado 10 metros pela explosão e ficou gravemente ferido.

Com o passar do tempo o Bill recuperou, pelo menos fisicamente. Regressado a casa, casou-se com uma boa mulher e tiveram uma filha linda, a minha prima Mary. O Bill era um bom trabalhador, mas tinha dificuldade em manter um emprego. Tudo lhe corria bem durante alguns anos, mas depois desaparecia para os hospitais de veteranos para aconselhamento e terapia de choque. Acabava sempre por regressar à família, bem e em paz. É assim que eu me lembro dele. Mas não durava. Nunca conseguiu esquecer a explosão, os gritos ou o cheiro. Quando a Mary morreu, ainda adolescente, num acidente de viação, ele nunca mais foi o mesmo.

O Bill Degnan era um bom cristão. Um marido fiel, um pai devoto, de comunhão diária. E depois chegou o dia em que desistiu. Entrou na garagem, fixou uma corda a uma trave e enforcou-se.

Há mais de cinquenta anos que rezo pelo Bill todos os dias. Não me preocupo muito com a sua alma, Deus é demasiado rico em misericórdia para esquecer um homem quebrado por um sofrimento que não criou, nem merecia. Antes de entrarmos numa guerra – qualquer guerra, mesmo uma “boa” guerra – precisamos de pensar muito seriamente sobre o verdadeiro custo humano. E eu não consigo deixar de pensar se o Bill terá combatido e sofrido por uma nação e um povo… que já não somos.


Francis X. Maier é conselheiro e assistente especial do arcebispo Charles Chaput há 23 anos. Antes serviu como Chefe de Redação do National Catholic Register, entre 1978-93 e secretário para as comunidades da Arquidiocese de Denver entre 1993-96.

Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Segunda-feira, 14 de Fevereiro de 2022)

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1 comment:

  1. Obrigado pela clara e lúcida apresentação que enriqueceu o meu saber.
    A Ucrânia é o cavalo troiano dela mesma e ao mesmo tempo o cavalo de Troia da Rússia e da Nato! Os interesses geo-estratégicos da Rússia e dos USA determinarão o futuro, com o apoio dos interesses económicos da EU. Sobre o assunto tenho um texto que se encontra também na minha página: https://antonio-justo.eu/?p=7116

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