Wednesday, 23 February 2022

A Mea Culpa de Bento XVI

Stephen P. White

Com o aproximar do final da longa e extraordinária vida do Papa emérito Bento XVI, a luta pelo seu legado já começou. Na sua Alemanha natal o “Caminho Sinodal” parece apostado em apagar 50 anos de interpretação magisterial do Concílio Vaticano II – uma interpretação que deve mais a Joseph Ratzinger do que a qualquer outra pessoa, salvo, talvez, São João Paulo II. O Caminho Sinodal é uma espécie de referendo sobre a sua vida e legado.

E depois temos o relatório, publicado o mês passado, sobre a história dos abusos sexuais na Arquidiocese de Munique-Freising, que resulta de uma investigação conduzida por um escritório de advogados a pedido da arquidiocese. Joseph Ratzinger liderou a arquidiocese entre 1977 e 1982, quando foi chamado a Roma para chefiar a Congregação para a Doutrina da Fé. O relatório abrange quase 75 anos, mas, naturalmente, muita da atenção tem sido dada aos breves anos em que Ratzinger foi arcebispo.

Os autores do relatório identificam quatro casos em que o então cardeal Ratzinger não tomou as devidas acções contra padres acusados de abusos. Bento XVI sempre negou ter lidado erradamente com estes casos durante o seu tempo em Munique. Depois de ter digerido as quase 2.000 páginas do relatório de Munique, os assessores de Bento XVI responderam por ele.

A versão curta dessa resposta é: “Joseph Ratzinger não estava ciente de qualquer abuso sexual, ou suspeita de abuso sexual, cometido em nenhum dos casos analisados pelo relatório de peritos. O relatório não apresenta qualquer prova em contrário”.

Bento XVI forneceu aos investigadores uma longa declaração escrita enquanto eles preparavam o relatório. Mas essa declaração incluiu um erro significativo. Bento XVI disse que não estava presente numa reunião em que se aprovou a transferência de Munique para outra diocese de um padre acusado de abusos. O Papa emérito rapidamente emendou a mão e pediu desculpa. O erro não foi intencional, foi cometido por alguém da sua equipa durante a transcrição. Ratzinger esteve, de facto, presente na reunião, mas não sabia que o padre era abusador e não esteve envolvido na sua colocação ministerial.

Quem quiser acreditar nele acreditará, quem não quiser, não acreditará.

É quase certo que o Papa Bento lidou pessoalmente com mais casos de abusos sexuais praticados por padres do que qualquer outra pessoa. Laicizou 400 padres em apenas dois anos enquanto Papa e tratou de muitos outros, de forma célere, enquanto chefe da CDF – num período em que as primeiras ondas da crise de abusos começaram a chegar a Roma, antecedendo em poucos anos os tsunamis que têm atingido periodicamente a Igreja desde 2002.

Ratzinger estabeleceu um exemplo para outros clérigos e futuros papas ao pedir publicamente desculpas às vítimas de abusos e promovendo encontros regulares com vítimas. Quando resignou, em 2013, a resposta da Igreja aos abusos estava ainda longe de ser ideal. Mas era também incomensuravelmente melhor do que quando ele chegou a Roma como um jovem cardeal, em 1982.

Não estou com isto a dizer que as vítimas de abusos o deviam ver como um defensor, nem que devíamos ignorar as suas falhas (recordemos a forma desastrosa como lidou com o caso McCarrick). A questão é que ele colocou a Igreja no rumo certo no que diz respeito aos abusos sexuais praticados por clero por mais tempo, e de forma mais significativa, do que qualquer outra pessoa.

A Igreja e aqueles que foram lesados pela Igreja podem reconhecer isto sem se considerarem satisfeitos. Na verdade, vale a pena reconhecer que não há nada que a Igreja possa dizer ou fazer, nenhum pedido de desculpas que possa apresentar, nenhuma justiça que se possa fazer, que seja satisfatória.

Mas existe alguma satisfação, por mais que o digamos de voz trémula. E isso é algo de que Bento nos recorda, mesmo enquanto outros debatem o seu legado. Há semanas ele publicou uma carta curta, mas marcante. Os parágrafos finais são uma reflexão pungente sobre culpa, tristeza e exame de consciência diante da morte:

Em todos os meus encontros – sobretudo durante as numerosas Viagens Apostólicas – com as vítimas de abusos sexuais por parte de sacerdotes, observei nos olhos as consequências de uma tão grande culpa e aprendi a compreender que nós mesmos somos arrastados por esta tão grande culpa quando a negligenciamos ou não a enfrentamos com a necessária decisão e responsabilidade, como aconteceu e acontece com muita frequência. Como fiz naqueles encontros, mais uma vez posso apenas expressar a todas as vítimas de abusos sexuais a minha profunda vergonha, a minha grande dor e o meu sincero pedido de perdão. Tive grandes responsabilidades na Igreja Católica. Tanto maior é a minha dor pelos abusos e os erros que se verificaram durante o tempo do meu mandato nos respetivos lugares. Cada caso de abuso sexual é terrível e irreparável. Para as vítimas de abusos sexuais, vai a minha profunda compaixão e lamento cada um dos casos.

Em breve me encontrarei perante o último Juiz da minha vida. Embora ao olhar retrospetivamente a minha longa vida possa ter tantos motivos de susto e medo, todavia estou com o coração feliz porque confio firmemente que o Senhor não é só justo juiz, mas simultaneamente é o amigo e o irmão que já padeceu, Ele mesmo, as minhas deficiências e, consequentemente, ao mesmo tempo é juiz e meu advogado (Paráclito). Na perspetiva da hora do juízo, como se me torna clara a graça de ser cristão! O ser cristão dá-me o conhecimento, mais ainda, a amizade com o juiz da minha vida e permite-me atravessar com confiança a porta escura da morte. A propósito, retorna-me sem cessar à mente o que João conta no início do Apocalipse: vê o Filho do Homem em toda a sua grandeza e cai aos seus pés como morto. Mas Ele, pousando a mão direita sobre João, diz-lhe: «Não tenhas medo! Sou eu...» (cf. Ap 1, 12-17).

Rezem por Bento XVI. E rezem com ele pelas vítimas dos abusos.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 10 de Fevereiro de 2022)

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