|
James Matthew Wilson |
As grandes revoluções sobre o conhecimento religioso e
teológico dos últimos dois séculos começaram com a questão de como ler as
Escrituras. A nova ciência da geologia parecia pôr em causa uma leitura literal
do Genesis, que indicava que a Terra tinha cerca de seis mil anos. Depois chegaram
os esforços histórico-críticos da Alta Crítica Alemã e os livros da Bíblia
foram feitos em pedaços – milhares de pedaços, fragmentos da autoria de várias
mãos, juntados ao longo dos séculos, de forma a que a Sagrada Escritura parecia
mais uma manta de retalhos e menos uma soma das suas partes.
Como é que se determina um significado quando cada livro
é uma mescla de intenções prévias, frequentemente em conflito? Como é que se
pode confiar naquilo que nos chegou, quando os dados históricos contidos nos
livros não parecem ser fiáveis no que diz respeito à identificação de lugares e
datas?
Para leitores dos séculos XVIII e XIX esta última
pergunta era tudo menos tonta. Exames de teologia desse tempo – que eu já vi –
incluem questões como “Em que data foi o dilúvio de Noé?”
Mas aqueles de entre nós que já leram o poema de T.S.
Eliot “The Waste Land”, a questão parece estranha, no mínimo. O poema é
composto por 432 linhas, das quais pelo menos 100 são citações parciais ou
totais de uma variedade de fontes. Mas isso não nos impede de encontrar um
significado coerente no poema. Pelo contrário, este ganha profundidade e
significado por causa da inclusão deliberada de outras vozes. Se Eliot o fez,
Deus também pode.
As interpretações judaicas e, mais tarde, cristãs, das
escrituras têm sido tradicionalmente “figurativas” ou espirituais. O que isto
quer dizer é que sim, cada obra tem um sentido literal, se não num evento
histórico, pelo menos a intenção do autor. Mas cada obra tem também um significado
espiritual, um significado figurativo que talvez nem fosse pensado pelo autor,
mas que pode ser discernido nas suas palavras e que geralmente é muito mais
importante.
Só assim é que a Escritura se torna profética e
reveladora, ensinando-nos algo a que não teríamos conseguido chegar sozinhos,
chamando-nos repentinamente à conversão. Só assim é que podemos ler o Antigo
Testamento como apontando para Cristo como o seu próprio cumprimento. E, em
sentido contrário, só assim é que podemos ver Cristo como a lente através da
qual interpretar as palavras do Antigo Testamento e a obra da natureza.
Dificilmente podemos compreender qualquer um dos
Testamentos sem o sentido espiritual, pois até uma leitura diagonal de qualquer
passagem revela uma economia da linguagem que só é possível devido à densidade
do significado: se não está disposto a desempacotar cada frase como se fosse
uma mala de viagem, então não está pronto para ler.
Dois dos maiores teólogos do Século XX passaram as suas
carreiras a tentar ajudar a Igreja a recuperar esta forma de ler as Escrituras
– e, também, de ler o mundo. Os quatro volumes de Exegese Medieval, de Henri de
Lubac, dedicam-se a descrever a interpretação figurativa como tem sido
praticada ao longo da história. Pode parecer um bocado estranho ler aquilo a
que se pode chamar uma defesa histórico-crítica da interpretação figurativa: O
que de Lubac fez foi, na maior parte, elaborar uma teoria breve mas elegante e
depois multiplicar citações dos Padres da Igreja até se tornar claro que na verdade
a teoria era deles.
Hans Urs von Balthasar foi um bocado mais ambicioso que
de Lubac. Também ele era capaz de multiplicar citações, mas também avançou
sozinho e interpretou as Escrituras – e o resto da história – em termos
espirituais. De Lubac queria restaurar a autoridade interpretativa dos Padres
da Igreja; von Balthasar escrevia como se fosse um deles.
Mas isso não tem impedido a Igreja de se preocupar com o
facto de muitos acreditarem que a única forma “científica” de ler as Escrituras
é o método histórico-crítico e que, para o homem moderno, a interpretação
figurativa parece arbitrária e pateta.
Eu passei grande parte das últimas duas décadas a ler e a
escrever sobre exegese figurativa, e a praticá-la. Mas qualquer pensamento
sobre teoria evapora-se quando penso em apenas dois momentos destes últimos
anos.
Houve um verão em que decidi ler “A Cidade de Deus” de
Santo Agostinho. Esta é frequentemente considerada a obra prima do Santo, e a
julgar pela espessura do livro, certamente será. Mas para a maioria dos
leitores o seu interesse é menor quando comparado com as “Confissões” que –
para mim – é certamente o livro mais perfeito da nossa tradição fora das
Escrituras.
Admiro muita coisa em “A Cidade de Deus” e muita coisa
mudou-me, mas sobretudo num sentido académico. Impressiona-me a forma como
Santo Agostinho desenvolveu ou refutou alguns aspetos do pensamento clássico,
enquanto nos mostrava a verdade sobre as coisas.
Mas já numa parte adiantada do livro, durante uma
passagem longa que levaria a maioria dos leitores a abandonar o barco,
Agostinho descreve a Arca de Noé. Descreve, pacientemente, as dimensões da Arca
e a posição da sua porta lateral. E depois mostra-nos como é proporcional, em
grande escala, ao próprio Corpo de Cristo, de cujo lado jorraria água e sangue,
da porta aberta pela lança.
Cristo é a nossa Arca, carregando-nos através de mares
tempestuosos e de um mundo inundado de pecado. Ao ler isto senti não uma
aprovação pensativa, mas alegria. Não foi motivo de reflexão, mas de conversão.
“Sim”, pensei eu, “esse é o meu Senhor e o meu Cristo!”
Também há uns anos estava a ler uma Bíblia ilustrada aos
meus filhos, uma adaptação maravilhosa. Chegámos à história de Abraão e de Isaac.
Abraão recebe de Deus uma ordem para sacrificar o seu filho. É Isaac quem
carrega monte acima a lenha que, sem o saber, servirá para a sua própria
imolação. No final um anjo intervém para impedir Abraão de levar a cabo este
grande teste da sua fidelidade, e o texto explica:
“Isaac a carregar a lenha monte acima é uma imagem de
Jesus, que carregou a Sua cruz até ao topo do monte do Calvário, para se
oferecer pelos pecados do mundo. Embora Deus tenha salvo o filho de Abraão, por
amor a nós não salvou o seu próprio filho da morte”.
Sim, sim, sim! Isaac prefigura Cristo; o filho a carregar
a lenha é uma profecia do Filho que carrega a Cruz. Senti-me atraído para mais
próximo de Deus e a entrar no seu mistério ali mesmo, com os meus filhos
sentados ao meu colo.
Uns meses mais tarde, estava a recomendar esse livro a
outro homem com filhos pequenos e mencionei esta interpretação figurativa. A
sua resposta foi imediata: “Como é que alguém pode duvidar que Jesus é o
Senhor?”
E é assim que funciona a exegese figurativa; não nos
transporta até um momento histórico particular. Permite a Deus chegar até nós e
agarrar-nos pelas golas, e abanar-nos até à fé.
James
Matthew Wilson, é autor de oito livros, incluindo, entre os mais recentes, “The
Hanging God (Angelico) and The Vision of the Soul: Truth, Goodness, and Beauty
in the Western Tradition” (CUA). É professor associado de religião e
literatura no departamento de Humanidades e Tradições Agostinianas na
Universidade de Villanova e já foi editor de poesia para a revista
Modern
Age, e de series para a Colosseum Books, da Steubenville Press, na
Franciscan University.
Veja
aqui a sua página na Amazon.