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Daniel Gallagher |
Nota: Num artigo recente do The Catholic Thing, o autor
David Warren propôs a criação de um jornal inteiramente redigido em latim.
Fê-lo na esperança que um jornal desses fosse lido apenas por uma elite esclarecida,
podendo assim passar ao lado das polémicas e do politicamente correcto. No
artigo de hoje, o latinista Daniel Gallagher responde com humor, mas também com
dados muito interessantes, contrariando essa ideia de Warren.
Tendo redigido centenas de “cartas aos príncipes” no
gabinete de tradução para latim do Vaticano, sinto-me na obrigação de responder
à recente proposta de David Warren de se criar um jornal diário em latim. Se
alguém estiver disposto a financiar o projeto, mando a primeira edição para a
gráfica já amanhã.
Mas a minha motivação seria muito diferente da sua. Em
vez de oferecer “uma pequena ilha elitista de sanidade e tranquilidade
espiritual”, eu gostaria que o jornal gerasse as mais vivas discussões e
debate, como sempre aconteceu, e sempre acontecerá, em torno e através do
latim. Eu gostaria que o jornal fosse dirigido ao populus e não apenas aos
príncipes.
Mas mesmo que eu partilhasse o desejo de Warren por um
público limitado, ele engana-se se pensa que “um jornal em latim passaria por
baixo do radar progressista”. Qualquer pessoa envolvida no mundo dos clássicos
sabe até que ponto o progressismo penetrou este ramo.
Mary Beard, uma classicista brilhante de Cambridge, está
constantemente a levantar a voz progressista em relação a assuntos que variam
entre a imigração, o feminismo e o terrorismo.
Donna Zuckerberg acaba de publicar um livro
fascinante, chamado “Not All Dead White Men: Classics and Misogyny in the Digital Age”. São mulheres por quem
tenho grande admiração, por mais que discorde fundamentalmente delas em várias
frentes.
Seja como for, elas – e outras como elas – seriam capazes
de devorar um jornal em latim mais rapidamente do que muitos conservadores.
Na verdade, a atitude de Warren em relação ao latim
representa um dos fatores que contribuiu para a sua queda. A ideia de que é
apenas para os inteligentes, os sofisticados, os esclarecidos. Que é algum tipo
de código secreto que separa os certos dos errados.
Mas o latim nunca foi nada disso, nem deve ser. Eu já
tive o prazer de ensinar latim a alunos de muitas escolas diferentes, e em
várias universidades, públicas, privadas e algumas católicas.
Os que têm fundações sólidas em latim costumam vir de famílias
muito secularizadas e progressistas. Claro que também há católicos, e estes
costumam pertencer a dois grupos: os que adoram falar da importância do latim,
mas mal conseguem localizar um sujeito, quanto mais um objecto, e os que têm
grande fluência por terem aprendido bem em casa.
Infelizmente este grupo é significativamente mais pequeno
que aquele. Foi depois de termos recebido uma quantidade imensa de cartas – em
italiano, espanhol, inglês, francês, alemão e polaco – a perguntar “porque é
que o Papa não faz tweets na língua oficial da Igreja”, que eu e os meus
colegas do Gabinete de Latim do Vaticano, propusemos que o passasse a fazer. Os
autores das cartas diziam que não o fazer era uma mostra de desprezo pela
civilização ocidental – se me é permitido usar esse termo. E têm razão.
E então começámos a fazer
tweets em latim, e rapidamente
descobrimos que o latim era algo que – ao contrário das expectativas de Warren
– podia ser lido por praticamente qualquer pessoa. É verdade que algumas das
pessoas que seguem o Papa no Twitter o fazem apenas por ser uma coisa nova, mas
a nossa pesquisa mostrou que pelo menos uma maioria conhecia algum latim.
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Professor e três alunos |
Talvez a melhor prova seja o facto de que os comentários
e os retweets da conta em latim são muito mais civilizados, pensados e humanos
do que os das contas em vernáculo. E talvez seja isso que representa um modelo
alternativo à terrível polarização que existe em quase todo o resto das redes
sociais.
No seu artigo, Warren cita o meu incomparável professor e
antecessor no Gabinete de Latim, o padre Reginald Foster: “Se não sabes as
horas, nem o teu nome, nem onde estás, não tentes aprender latim, porque ele
borra-te na parede como se fosses uma mancha de óleo”.
Mas acontece que não há falta de pessoas que queiram ser
borradas na parede. São pessoa que anseiam pela “ordem mental” e a “consistência
intelectual” que Warren tão correctamente louva.
É verdade que o latim privilegia a razão e a consistência
intelectual, e é por isso que se devem empreender todos os esforços não só para
divulgar o conhecimento do latim, mas para que as pessoas sejam fluentes. Deve
promover a discussão, e não abafar ou escondê-la. Pode e deve ser lida por
quase toda a gente porque é uma forma civilizada e focada de abordar tópicos “perigosos”.
O padre Foster sempre insistiu que os seus cursos não são
sobre religião, teologia, filosofia e muito menos sobre “teoria literária”. Mas
qualquer pessoa que tenha frequentado os seus cursos terá sido obrigada a
pensar e a aprender sobre estes tópicos e muitos outros. Sim, mesmo a teoria
literária.
Pode-se fazer qualquer uma dessas coisas, insiste Foster,
mas primeiro é preciso saber latim. O
Instituto Paideia, edificado sob o
legado do padre Foster, foi fundado “para fornecer oportunidades para o estudo
rigoroso e intensivo do latim e do grego de todos os períodos históricos, para
inspirar os estudantes a formar relações pessoais próximas com os clássicos
através de experiências de aprendizagem extraordinárias e para aumentar o
acesso a, e interacção com, as humanidades clássicas através de todos os
sectores da sociedade.”
Os instrutores e os alunos são uma misturada de ateus
seculares, agnósticos curiosos, católicos radicais e reaccionários e muita
coisa pelo meio. As discussões nos eventos da Paideia, que frequentemente se
fazem em latim, invariavelmente abordam as questões mais profundas da vida, mas
fazem-no porque, em primeiro lugar, têm por objectivo o domínio do texto em
latim.
Sim, é verdade. Precisamos de um jornal em latim porque,
como Warren sugere, isso facilitaria “o diálogo entre pessoas de diversas
tradições linguísticas” e restaurava o “verdadeiro cosmopolitismo”. Mas
atenção: se quer juntar-se ao “latinosfério” encontrará tudo menos um grupo
elitista de conservadores. Pelo contrário, encontrará todas as raças, classes
sociais, orientações e opiniões que existem à face da terra.
A diferença é que estas pessoas estão dispostas a entrar
num diálogo educado e humano, baseado no conhecimento histórico, prático e
teórico que se alcança através da leitura de excelentes livros na sua língua
original.
Assim, um jornal em latim seria um catalisador magnífico
para essa sanidade, mas uma sanidade que acolhe a diversidade e adora uma boa
discussão.
Daniel Gallagher é professor de latim na Universidade
Cornell. Trabalhou durante dez anos na Secção de Latim do Secretariado do Estado
do Vaticano.
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