Wednesday, 20 December 2023

Lembrar de esquecer

Stephen P. White

No início do Século XVI o Papa Júlio II decidiu demolir a Basílica de São Pedro. A antiga basílica, construída por Constantino por cima do túmulo do apóstolo, no Século IV, tinha servido bem, mesmo segundo os padrões romanos. Mas depois de doze séculos de terramotos, pilhagens e descuido generalizado, a antiga Basílica de São Pedro estava em risco de desabar. Por isso, o Papa Júlio desistiu dos seus planos de renovar o edifício e mandou-o demolir e substituir.

A basílica que conhecemos hoje, com a sua majestosa cúpula – a basílica de Bramante e de Miguel Ângelo e Bernini – começou a ser edificada em 1506 e foi consagrada em 1626. Ou seja, a Basílica de São Pedro que conhecemos hoje só existe há um terço do tempo que a sua antecessora.

Como se não bastasse a demolição de um dos mais sagrados santuários da cristandade, o mármore usado para a fachada da nova basílica veio de um local próximo e barato, a pedreira preferida dos romanos: o Coliseu. Os romanos da idade média, e até bem mais tarde, nunca tiveram problemas em reutilizar pedras de antigos edifícios e monumentos.

Retirar mármore do Coliseu pode-nos parecer hoje um acto de vandalismo histórico e cultural, mas fazê-lo para construir algo tão grandioso como a Basílica de São Pedro é certamente louvável quando comparado com os outros usos que os romanos contemporâneos davam às toneladas de mármore do Coliseu, que costumavam esmagar e queimar para fazer cal viva.

Que cultura é esta que tem a audácia de usar o Coliseu (e não apenas o Coliseu, mas a maioria dos antigos edifícios romanos) como pedreira? Que cultura tem a temeridade de demolir um dos edifícios mais veneráveis do mundo, a antiga Basílica de São Pedro, mas tem também a confiança, capacidade e visão para construir algo tão magnífico como a basílica actual?

Lembro-me de ficar a pensar nesta incongruência há uns anos, quando estava em Roma. Por um lado, não podemos se não lamentar a aparente indiferença para com a preservação de monumentos que agora consideramos de significado histórico e cultural insubstituível. Porém, esta mesma disposição para pilhar o passado produziu alguns dos maiores feitos de arte e arquitectura em toda a civilização ocidental.

Hoje jamais nos passaria pela cabeça arrancar nacos do Coliseu para construir uma nova igreja. Mas também não parecemos capazes de construir nada que tenha o significado e a beleza duradouras da Basílica de São Pedro. Podemos tentar manter e restaurar um edifício antigo, mas é difícil imaginar simplesmente demoli-lo, quanto mais de imaginar a nossa cultura a construir um substituto que possa rivalizar com o original, ou exceder a sua beleza intemporal e a sua magnificência original.

Naquele dia em Roma dei por mim a pensar se não existirá alguma ligação causal entre a disposição de uma cultura para largar o passado – deixar que esse passado esvaneça na memória, ou ser mesmo esquecido – e a capacidade para o tipo de criatividade e confiança necessárias para construir algo tão novo e tão magnífico como a actual Basílica de São Pedro.

O nosso mundo tem uma grande dificuldade em desligar-se do passado. Os museus que construímos para albergar coisas belas, mas também curiosas ou apenas antigas, são uma invenção relativamente recente. Os mundos antigos e medievais não tinham nada como museus, pelo menos no sentido que lhes atribuímos hoje. Sim, havia colecções de arte e de escultura, e por aí fora, mas a preservação em larga escala até dos mais pequenos artefactos do passado é um fenómeno distintivamente moderno.

Estudamos atenciosamente os detritos de eras passadas, mas, no entanto, construímos pouco que mereça ser preservado daqui a mil anos, se é que dure tanto tempo. O que criamos hoje em dia raramente é pensado para durar para sempre, ou sequer mais do que uma ou duas gerações. E não é só na arquitectura. Pensem em quanta da nossa arte e literatura contemporânea se resume ao comércio da nostalgia, sequelas e prequelas infinitas, reedições de filmes antigos, mas com efeitos especiais modernos.

Não pensem que estou a subvalorizar o passado. A memória é uma parte fundamental da existência humana, de certa forma, é a melhor parte. Agarramo-nos àquilo que amamos e estimamos, e conhecemos muito bem a dor da perda. O desejo de explorar o passado e aprender dele é perfeitamente saudável. E o anseio por preservar e sustentar o que é bom surge naturalmente, tal como o esquecimento – pelo menos daquilo que é verdadeiramente importante – é a morte de qualquer sociedade ou civilização.

Ainda assim, não consigo se não pensar que uma preocupação pouco natural com a preservação – a exagerada fixação pelas coisas boas deste mundo – anda de mão dada com uma imaginação diminuta daquilo que ainda está por vir. O horizonte da nossa experiência abre-se diante de nós e fecha atrás.

“O que foi, o que será; o que foi feito, o que será feito. Nada há de novo debaixo do sol!”. Assim fala Qohélet.

Entretanto, estamos todos presos algures no meio. A transitoriedade deste mundo, de nós mesmos e de tudo o que podemos construir e estimar, permanece como um facto teimoso da existência humana. Isso, pelo menos, não se pode atribuir aos males próprios da modernidade.

O esquecimento é, também, parte da providência divina. O esquecimento pode também ser libertador, tal como quando a misericórdia apaga o arrependimento. Talvez a nossa cultura, na qual tudo é catalogado e armazenado para sempre “na nuvem”, e que parece nunca se esquecer de nada excepto aquilo que é importante, tivesse a ganhar com o esquecimento de algumas coisas, ou com a contemplação de algumas novas.

O Advento é um bom tempo para reflectir sobre tudo isto. Durante o Advento a Igreja recorda-nos do fim de todas as coisas enquanto se prepara para a celebração da única coisa genuína e radicalmente nova que aconteceu em toda a história da criação. Que alegria em poder contemplar aquela criança na manjedoura! É o suficiente para nos abandonarmos nas mãos de Deus e esquecer tudo o resto.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing no Domingo, 17 de Dezembro de 2023)

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