Thursday, 6 July 2023

O novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé: Entre o medo, o mito e a realidade

No início deste mês o Papa Francisco nomeou um novo prefeito para o Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF). E assim nasceu uma nova polémica.

Dependendo de quem lemos, o novo prefeito, o arcebispo Victor Manuel Fernández, ou é o delfim do Papa Francisco, e principal inspirador das reformas que este está a tentar implementar na Igreja, ou é o malévolo génio por detrás de Francisco e da sua campanha de destruição da tradição e da moral.

Precisamente porque vivemos num tempo em que as pessoas acabam por receber informação essencialmente de fontes que estão já alinhadas com as suas ideias e os seus preconceitos, achei que seria boa ideia resumir alguns dos pontos principais sobre esta nomeação, e o que ela pode significar. Não entendam este artigo como o resumo definitivo da situação, mas sim como uma ajuda para entender quem é Fernández e qual o seu peso neste pontificado.

Fernández era até agora Bispo de La Plata, na Argentina. Há anos que é muito próximo do Papa Francisco, tendo sido o seu perito em teologia no encontro de bispos da América Latina, em Aparecida, no Brasil, que em larga medida tem sido um modelo para este pontificado.

Enquanto amigo e confidente do Papa, Fernández tem sido também influente na elaboração de algumas das posições teológicas de Francisco. Nomeadamente, terá sido o arquitecto teológico por detrás do Amoris Laetitia, que abriu caminho ao regresso aos sacramentos de pessoas em situação matrimonial irregular. Isso faz dele um santo para progressistas e o demo para os mais tradicionalistas.

Contudo, para melhor entender esta situação é preciso lembrar que Fernández vem de um contexto paroquial, do contacto directo com as vidas dos fiéis no terreno. As suas posições – e isto tem sido fundamental para o Papa – partem deste princípio, de que a teologia só serve para alguma coisa se for ao encontro das vidas concretas e reais das pessoas. Uma teologia aérea, de ideais que não são vividos no terreno, é um exercício vão.

Como disse o próprio Fernández, num texto publicado na sua página do Facebook, “tenho orgulho de ter sido aquele pároco jovem que tentava chegar a todos, usando as mais diversas linguagens. Por isso é que quando o Papa fala do meu currículo refere que fui reitor da Faculdade de Teologia, mas ao mesmo tempo diz que fui pároco de ‘Santa Teresita’. É porque para ele é importante que um teólogo se meta na lama e trate de usar uma linguagem simples e que chegue a todos”.

Até agora o cargo de prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé era entendido como uma espécie de “polícia teológico”, responsável por avaliar e censurar os trabalhos de teólogos em todo o mundo. Na carta que escreveu a acompanhar esta nomeação, o Papa diz a Fernández que outrora o departamento que ele agora chefia usava de “métodos imorais”. Alguns leram isso como uma crítica a Ratzinger, que se tornou conhecido precisamente por ser prefeito da então Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), ganhando o epíteto de “Rottweiler” de João Paulo II, mas é mais provável que seja uma referência directa aos métodos do Santo Ofício, ou Inquisição, que perseguia heresias e hereges, em muitos casos entregando-os às autoridades civis para serem executados.

Francisco, pelo contrário, quer que Fernández se preocupe em contribuir para a reflexão teológica, em vez de a atrofiar. O tempo dirá o que isto significa na prática.

Cultura de cancelamento e puritanismo

Uma das expressões que mais está na moda actualmente é “cultura de cancelamento”. Resumidamente, trata-se da manifestação de um tique puritanista, que de católico nada tem, de vasculhar o passado de alguém e depois expor os eventuais podres, ou erros, dessa pessoa, por mais antigos ou irrelevantes que sejam, para manchar a sua reputação para sempre, evitando que seja escutada. Digo que isto nada tem de católico precisamente porque o catolicismo defende a conversão e acredita num Deus que “faz novas todas as coisas”. Quantos santos que veneramos nos nossos altares sobreviveriam a esta metodologia?

Contudo, a cultura do cancelamento está bem viva dentro da Igreja e é usada por guerreiros de teclado de ambos os lados da barricada.

Recordemos para este efeito o que se passou com o cardeal Gerhard Müller. Müller, se bem se recordam, era o prefeito da CDF quando Francisco assumiu o Pontificado, tendo sido nomeado para esse cargo por Bento XVI, em 2012. Hoje, Müller é recordado com saudade pelos mais conservadores e tradicionalistas como um guardião da ortodoxia teológica. Mas o que é que os mesmos tradicionalistas diziam dele em 2012? Leiam este post do influente blog Rorate Caeli, que aquando da sua nomeação elencou todas as suas supostas heresias, que considerava mais graves até do que o facto de ele ser amigo de um influente defensor da Teologia da Libertação. Pois é, a vida dá muitas voltas!

No caso de Fernández, uma das armas de arremesso que tem sido usada é a sua autoria de um livro sobre o beijo, chamado “Cura-me com a tua boca”. Nos meios de língua inglesa até se chegou ao ponto de traduzir um dos seus poemas de forma enganosa, vertendo a palavra “bruja” para “bitch”. No mesmo post do Facebook que referi acima, Fernández explica que esse livro não era mais do que uma tentativa de fazer uma catequese para tentar alcançar um público jovem da sua paróquia. Não vou citar tudo, podem ir lá ler, mas admito que a sua explicação me pareceu mais plausível e sensata do que as críticas veementes que tenho visto.

Resumindo, basta olhar para as últimas décadas para perceber que as caricaturas que nos tentaram vender dos prefeitos para a Doutrina da Fé estavam invariavelmente erradas. Ratzinger não era um neo-nazi disfarçado de padre que perseguia furiosamente os teólogos liberais; Müller não era um hippie herege e Fernández muito provavelmente não é aquilo que muitos temem, nem aquilo que muitos esperam. Aliás, este artigo, escrito em 2018, sublinha o facto de a faculdade de Teologia de que foi reitor e o seminário a que presidiu serem consideradas das mais ortodoxas da Argentina, e ainda o facto de ele ter sido sempre defensor firme, mesmo indo contra a corrente, dos valores da vida e do casamento, defendendo os seus colegas e subordinados quando estes eram criticados por abraçarem as posições da Igreja neste campo.

Há que confiar que o novo guardião da ortodoxia seja isso mesmo, tendo noção também que o seu papel agora não é o de investigação ou proposição teológica, mas sim de avaliação do trabalho que vai sendo feito, nomeadamente dos textos que saem da Santa Sé, embora num espírito mais colaborativo do que talvez tenha sido usado pelos seus antecessores.

Por fim, e de forma mais sintética, dois apontamentos:

Abusos: Um dos papéis do DDF é lidar com casos de abusos na Igreja em todo o mundo. Fernández já admitiu que não se sente preparado para isso, e precisamente por isso Francisco pediu-lhe que se concentrasse mais na questão teológica, uma vez que o departamento que lida com as questões dos abusos já está montado e oleado, precisando apenas de supervisão.

Sucessor?: Uma das teorias que tenho lido é de que com esta nomeação o Papa lança Fernández como seu sucessor e herdeiro, tornando-o assim um dos principais candidatos a próximo Papa. Embora esta teoria seja proposta pelo único jornalista que eu conheço que sugeriu que Bergoglio tinha hipótese de ser eleito Papa em 2013, eu tenho sérias dúvidas de que tal acontecerá. Acho muito pouco provável os cardeais escolherem outro argentino, sobretudo um que – como será expectável – será bastante novo quando for o próximo conclave, uma vez que neste momento tem apenas 60 anos, prestes a fazer 61.

2 comments:

  1. "Contudo, a cultura do cancelamento está bem viva dentro da Igreja "; O exemplo que tentou dar para esta ideia não vingou pois a liberdade de expressão nada tem a ver com a verdadeira cultura de cancelamento que existe abundantemente fora dos meios católicos; pena é que não o tenha exposto.

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  2. Pontos prévios:
    - Não me pronuncio sobre o Card Fernandez, de quem só conheço as referências que li, vindas de sectores distintos.
    - Eu acredito que o Espírito Santo conduz a Igreja.
    - Eu acredito que o Papa Francisco foi escolhido pelos Cardeias sob a inspiração do Espírito Santo.
    - Por mais de uma vez, afirmações e escolhas do Papa Francisco provocaram em mim um grande desconforto e grande perplexidade. Mas nunca pus em causa que ele é o Papa a quem Deus confiou a Sua Igreja.
    Uma das perplexidades é exactamente a frase que o Papa usou na carta sobre esta nomeação: "outrora o departamento que ele agora chefia usava de “métodos imorais”. É demasiado vaga, ambígua, e por isso, demasiado abrangente.
    A tua interpretação é provavelmente a mais transversal: é "provável que seja uma referência directa aos métodos do Santo Ofício, ou Inquisição, que perseguia heresias e hereges, em muitos casos entregando-os às autoridades civis para serem executados."
    Nesta matéria, a ignorância é mãe de análises incorrectas, porque não só não têm em conta o contexto sócio-cultural-religioso da época, como omitem outros factos, tais como: réus de crimes nãop-religiodoso pedirem para serem julgados pela Inquisição, por ser mais justa que os tribunais daquele tempo; que sentenças condenatórias da Inquisição portuguesa e espanhola, terem sido anuladas pelo santo Ofício de Roma.

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