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Randall Smith |
A recente solenidade de São João Baptista apresentou-nos
com várias leituras especialmente interessantes. Uma das opções começava com
este texto de Jeremias 1,5:
“Antes que no seio fosses formado, eu já te conhecia;
antes de teu nascimento, eu já te havia consagrado,
e te havia designado profeta das nações.”
O salmo responsorial era uma seleção de versos do Salmo
70, que contém as seguintes linhas:
R. Desde o seio materno sois meu protector
Sede para mim um refúgio seguro,
a fortaleza da minha salvação.
Vós sois a minha defesa e o meu refúgio
meu Deus, salvai-me do pecador.
R. Desde o seio materno sois meu protector
Sois Vós, Senhor, a minha esperança,
a minha confiança desde a juventude.
Desde o nascimento Vós me sustentais,
desde o seio materno sois o meu protector.
A outra opção para o dia continha uma leitura de Isaías
49, que inclui estas duas passagens:
"O Senhor chamou-me desde meu nascimento; ainda no
seio de minha mãe, ele pronunciou meu nome." (Isaías 49,1)
“Meu direito estava nas mãos do Senhor, e no meu Deus
estava depositada a minha recompensa. 5.E agora o Senhor fala, ele, que me
formou desde meu nascimento para ser seu servo” (Is 49, 4-5)
O salmo responsorial que acompanha essa leitura vem do
salmo 138 e contém estas palavras populares: “Sede bendito por me haverdes
feito de modo tão maravilhoso”. O sermão que ouvi naquele dia partiu dessas
mesmas palavras. Estou sempre grato por qualquer homilia em que as leituras do
dia são referidas, mas ainda estou por ouvir alguém comentar as seguintes
palavras nesse mesmo salmo:
R. Sede bendito
por me haverdes feito de modo tão maravilhoso
Fostes vós que plasmastes as entranhas de meu corpo,
vós me tecestes no seio de minha mãe.
Sede bendito por me haverdes feito de modo tão
maravilhoso
Ambas estas escolhas de leituras fazem sentido enquanto
percursoras do Evangelho do dia, que recorda a história da atribuição do nome a
João. Quando Isabel anunciou que a criança no seu seio se chamaria João os
membros da família reclamaram, dizendo que mais ninguém na família tinha esse
nome. Quando recorreram a Zacarias, que tinha ficado mudo durante o seu serviço
no Templo, ele escreveu: “O seu nome é João” e soltou-se-lhe a língua.
Que dizer de tudo isto? Bom, uma das conclusões mais
óbvias a retirar é que os seres humanos são “conhecidos por Deus” desde o seio
materno. Ou, para usar termos mais modernos, que os fetos são pessoas desejadas
por Deus.
Estou ciente de que um argumento bíblico deste género não
seria credível para os não-cristãos da nossa sociedade. Tudo bem. Mas e o resto
de nós? E os católicos? E os nossos irmãos protestantes? O propósito da Reforma
Protestante não era de defender as Escrituras como Palavra inspirada e
autoritária de Deus?
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O feto humano, Leonardo da Vinci |
Vários estudiosos ao longo da história, tanto
protestantes como católicos, analisaram as Escrituras com atenção,
exaustivamente, procurando descobrir os seus segredos mais profundos na
convicção de que as Escrituras contém palavras de verdade e de vida. Haverá
algo escondido ou obscuro nas palavras que acabo de citar? Não será antes que a
verdade é aqui proclamada como o soar de uma trompeta? Cristo é inteiramente
homem e inteiramente Deus desde o momento da sua concepção, ou não é? Se é,
então decorre que toda a humanidade também é inteiramente humana desde o
momento da sua concepção. E se assim é, então essas vidas não podem ser
“interrompidas” sem violar o mandamento “Não matarás”.
Espero que fique claro que não estou a fazer um apelo
político. Coloco diante de qualquer leitor cristão esta opção existencial: As
Escrituras contém a palavra inspirada de Deus e a verdade, ou não? E se a
resposta for sim, estamos verdadeiramente a escutar a palavra de Deus para
compreender os seus ensinamentos e cumprir as suas diretivas? Ou estamos a
escolher as passagens que encaixam nos nossos preconceitos, evitando aquelas
que nos chamam a algo que possamos não gostar? Estaremos nós, como tantos
fizeram nos tempos de Cristo, a fechar os nossos ouvidos, as nossas mentes e os
nossos corações a uma mensagem que precisamos de escutar?
Porque se o ensinamento constante da Igreja, que há
séculos que condena inequivocamente o aborto, pode ser ignorado e se mesmo as
palavras das Escrituras se tornaram letra morta para nós, então já não sei
mesmo o que é que estamos a fazer em todas estas igrejas “cristãs”. Estamos
simplesmente a consolar-nos uns aos outros? A tentar ganhar pontos para merecer
o céu? – Ou talvez apenas o clube de golfe local?
Se não nos deixamos mover pela palavra de Deus, e
endurecemos os corações contra estes pequenos, podemos realmente apelidar-nos
de “Cristãos” em qualquer sentido da palavra? Não somos culpados da “graça
barata” de que nos avisou o grande Dietrich Bonhoeffer? Poderia algum dos
nossos bem-aventurados antepassados que deu a vida em defesa da fé não ficar
enojado pela hipocrisia desta geração, tal como nós sentimos vergonha da
hipocrisia dos cristãos alemães que não levantaram a voz contra o assassinato
de milhões de judeus?
O massacre de 66 milhões de crianças no ventre desde
1973, cada uma das quais (a fiar-nos nas Escrituras) é “conhecido por Deus” e
“feito de modo maravilhoso” é tanto “apenas mais um assunto” como foi o
massacre de 6 milhões de judeus. Ninguém quer saber das políticas laborais do
Governo alemão em 1937. Tudo o que nos interessa é que os cristãos não fizeram
o suficiente para proteger 6 milhões de judeus do genocídio.
Se fechamos os olhos a este massacre que se passa no meio
de nós, se não vemos em cada uma destas crianças por nascer uma obra do
Criador, podemos realmente enfrentar o Deus que nos fez a nós e a eles? Há mais
em causa aqui do que uma guerra política entre republicanos e democratas.
Randall Smith é professor de teologia na Universidade de
St. Thomas, Houston.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no Domingo, 4 de Julho de 2021)
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