Wednesday, 25 October 2023

Ser de Deus

Pe. Paul Scalia

Devolve a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. Com esta frase, Nosso Senhor evitou a armadilha que tinha sido montada pelos fariseus e os herodianos. Mas é mais do que apenas uma fuga inteligente, as suas palavras também estabeleceram um dos princípios mais importantes da história do pensamento humano: governo limitado e a distinção entre Igreja e Estado.

Para nós tudo isto pode ser um dado adquirido, mas o mundo antigo não conhecia tais distinções. Note-se que os fariseus e os herodianos juntam-se contra Jesus. Estamos a falar de dois grupos que, normalmente, não trabalhariam juntos. O que eles partilham neste contexto é a convicção de que o político e o religioso deviam ser uma só coisa, sem limites e sem distinções. Jesus não se limita a frustrar o objectivo imediato de o conseguirem entalar, consegue também obrigá-los a repensar essa mundivisão.

A primeira parte da resposta de Jesus – devolve a César o que é de César – indica claramente que o Estado desempenha uma função legítima e goza de autonomia. Mesmo os líderes pagãos devem ser obedecidos. Ninguém pode dizer: “Este não é o meu Imperador!”

Os apóstolos dão seguimento a este ensinamento de Cristo. São Paulo diz: “Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus”. E são Pedro escreve: “sede submissos, pois, a toda autoridade humana, quer ao rei como a soberano, quer aos governadores”

A Igreja reconhece, por isso, e respeita a função e a autonomia legítimas do Estado. A larga maioria dos assuntos políticos não carecem de uma resposta especificamente católica, e devem ser deixados aos que exercem cargos públicos. O papel da Igreja não é de exercer o governo, mas de formar consciências e identificar os princípios de discernimento na praça pública. Os detalhes devem ser deixados àqueles a quem foi confiado o serviço do bem comum.

Mas depois temos também a segunda parte da frase: devolver a Deus o que pertence a Deus. Isso estabelece um limite à autoridade do Estado. Portanto, existe uma linha a partir da qual a Igreja diz ao Estado: “Daqui não passas”. Mas que linha é essa?

Bom, se o que tem a marca de César pertence a César, então o que tem a marca de Deus deve pertencer a Deus. O Homem, criado à imagem e semelhança de Deus, pertence a Deus. Ele não pode ser submetido ao Estado. Assim, a verdade, a dignidade e os direitos da pessoa são os limites – e ainda o propósito – da autoridade do Governo. A Igreja não pede às autoridades públicas que traduzam em lei a doutrina e os morais católicos, mas sim que governem de acordo com a verdade da pessoa.

Mas quando o Estado ultrapassa os limites e assume sobre a pessoa uma autoridade que não lhe compete, como quando redefine o conceito de casamento, quando rejeita a realidade do homem e da mulher, quando mata os inocentes no seio das suas mães, ou quando viola a liberdade religiosa, então estamos perante casos em que César tomou conta daquilo que pertence verdadeiramente a Deus. Então os pastores da Igreja têm a responsabilidade de falar, de defender os direitos de Deus e a verdade do homem. 

Haverá quem critique, e recite os slogans antigos: que a política não tem lugar no púlpito; que devemos manter a religião fora da política; separação da Igreja e do Estado! Claro que ninguém acredita em nada disso. Afinal de contas, uma das críticas mais comuns que se faz da Igreja é de que os seus pastores não ergueram as vozes o suficiente para criticar a escravatura, ou Hitler, ou a segregação racial. E ninguém desculpa esses silêncios dizendo que a política não tem lugar no púlpito.

Evidentemente, um padre não devia absolutizar os muitos assuntos sobre os quais católicos fiéis podem exercer juízo prudencial e ter diversidade de opinião. Não existe uma solução especificamente católica sobre a imigração, ou o serviço nacional de saúde, ou a Ucrânia, etc. Podemos discutir legitimamente esses assuntos. Mas devemos discuti-los como filhos de Deus, de acordo com o ensinamento católico.

Mas quando os pastores erguem as vozes contra o aborto, ou a redefinição do casamento, ou os atropelos à liberdade religiosa, não estão a meter-se na política, estão a defender os direitos de Deus contra as intromissões dos políticos. O direito à vida, o significado do casamento, a realidade do masculino e do feminino – estas coisas pertencem a Deus. Não podemos colaborar em entregá-los a César. Quando a Igreja ergue a voz sobre esses assuntos está simplesmente a ecoar as palavras do seu divino Esposo: Devolve a Deus o que é de Deus.

Devolve a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Existe um outro sentido para este verso, mais pessoal. Tu pertences a Deus, não a César. Pertences à oração, não à política. Sim, deves estar informado e envolvido na política, até certo ponto, mas a política não é a única coisa, ou sequer a mais importante. Se investires mais tempo na política do que na oração; se lês mais sobre a próxima eleição do que sobre o teu Senhor; se estás mais preocupado com o governo da terra do que a do Céu – então destes a César o que pertence a Deus. César tornou-se o teu deus.

A primeira forma de defender os direitos de Deus contra as intromissões do Estado é de assegurar que estás a viver a tua vida como alguém que lhe pertence; a pensar mais no seu Reino do que na tua própria pátria; a passar mais tempo a contemplar as verdades eternas do que a ser absorvido por aquilo que passa por notícias. Quando colocas a oração e o serviço ao Deus eterno acima de tudo o resto, então relativizas a autoridade do Estado e dás a Deus aquilo que lhe pertence.


O Pe. Paul Scalia é sacerdote na diocese de Arlington, pároco da Igreja de Saint James em Falls Church e delegado do bispo para o clero. 

(Publicado pela primeira vez no domingo, 22 de Outubro de 2023 em The Catholic Thing

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