Wednesday, 18 October 2023

Autoridade Apostólica e Prudência Cívica

Randall Smith

A capacidade de fazer juízos prudenciais sobre o bem comum de um Estado em particular, com as tradições, os hábitos e a forma de vida que o caracteriza, é algo que apenas se ganha com a experiência. Promulgar boas leis, que não sejam demasiado opressivas, nem demasiado liberais; que façam sentido para a maioria dos cidadãos e cujo cumprimento possa ser imposto de forma apropriada, requer uma capacidade de discernimento que normalmente se adquire através de aprendizagem paciente e longa experiência. Eu não nego que Deus possa, em certas ocasiões, simplesmente infundir num indivíduo a prudência necessária para desempenhar uma tarefa em particular, sobretudo quando se tratar de um assunto urgente. Mas que isso não seja uma desculpa para a preguiça ou falta de preparação.

Consideremos a posição daqueles que dizem que quem governa o estado deve obedecer às autoridades eclesiais. Se por “obedecer”, ou “ser governado por”, quisermos dizer que as autoridades civis devem, ao fazer os seus próprios juízos de prudência, deixar-se guiar pelos princípios morais revelados na Escritura e clarificados através de séculos de reflexão, passada ao longo das gerações pela tradição da Igreja, então, sim. O que também se aplica a quando as autoridades eclesiais avisam, com toda a autoridade dos seus cargos, que as autoridades seculares estão a violar os preceitos fundamentais do direito natural, que não admite exceções. Também aqui seria bom que as autoridades seculares fossem obedientes a esse juízo da Igreja.

Mas, se o que queremos dizer é que os juízos prudenciais das autoridades eclesiásticas devem governar ou sobrepor-se aos de líderes seculares bem-intencionados e com uma boa compreensão da justiça e do direito natural, então a resposta teria de ser não.

Os bispos não têm mais capacidade do que qualquer outra pessoa para julgar se devemos aumentar ou baixar os impostos, se o défice está demasiado alto ou não, qual é o número ideal de imigrantes, ou o ordenado mínimo adequado, ainda que sejam bispos verdadeiramente santos. O carisma da autoridade apostólica não é um garante de prudência cívica. Logo, as autoridades eclesiásticas que opinam publicamente sobre tais assuntos, enquanto ignoram outros como a matança de bebés por nascer, estão a confundir a natureza do seu carisma e da sua autoridade.

Seria melhor então afirmar que uma verdadeira prudência levaria a pessoa a reconhecer os limites das suas próprias capacidades e habilidades, de tal maneira que um bispo com uma prudência perfeita jamais assumiria a função (nem tentava impor publicamente) juízos prudenciais sobre assuntos em relação aos quais não possui qualquer conhecimento especializado. Presumivelmente, um tal santo bispo reconheceria que demorou anos a alcançar a sabedoria e a experiência necessárias para compreender o seu povo e governar sabiamente a sua diocese – sempre com a assistência e a orientação do Espírito Santo – e que pela mesma ordem de razões deve demorar anos a alcançar a sabedoria necessária para governar de forma sábia uma comunidade cívica.

Presumo que um verdadeiro estadista deve ter-se informado bem, estudado diligentemente a arte de governar e visto outros legisladores em acção, para aprender o que resulta e o que não resulta. Terá tido encontros suficientes com os seus concidadãos para compreender as suas necessidades e a sua tolerância pelas várias regras e imposições à sua liberdade. E os juízos prudenciais de tal legislador seriam ainda informados pela admoestação de São Tomás de Aquino de que “as leis impostas ao homem devem ser coerentes com a sua condição pois, como diz Isidoro, a lei deve ser ‘exequível, tanto no quadro da natureza como no quadro dos costumes do país’”.

Tomar decisões prudenciais deste género não é apenas uma questão de consultar uma lista de ditames morais num qualquer manual de justiça social e depois traduzi-las em leis. A prudência necessária para formar esses juízos requer treino e experiência, adquire-se com o tempo, através de tentativa e erro, aprendendo com os erros e com os bons exemplos dos outros. Os cristãos acreditam que este processo é possível com a orientação e graça do Espírito Santo. Mas nesta matéria aplica-se a frase de São Tomás de Aquino: “A Graça não viola a natureza, antes a aperfeiçoa”.

Mas não fará sentido pelo menos exigir que os nossos líderes cívicos também sejam católicos? Isso depende. O historial das universidades católicas sugere que contratar pessoas que se dizem católicas, ou mesmo praticantes, não é nenhuma garantia de compreensão da missão católica da instituição, ou de compromisso para com a mesma. É raro encontrar alguém mais anticatólico que um católico zangado ou alienado. Mais vale contratar um judeu devoto que se preocupa com a educação do que um católico que não se interessa.

Também convém dizer que a exigência de aceitar apenas líderes católicos aproxima-se perigosamente da visão calvinista de que apenas os eleitos são capazes de governar a cidade ou a nação. Os católicos nunca subscreveram esta ideia. Antes pelo contrário, sempre defenderam, como escreve Heinrich Rommen no magistral O Estado no Pensamento Católico:

A autoridade política assenta na lei natural. O governante, ou de forma mais genérica, a autoridade política não precisa de qualquer aprovação ou legitimação eclesial, nem o governante não-cristão necessita de qualquer tipo de consentimento específico por parte dos seus súbditos cristãos. Não existe uma libertas Christiana que proíbe os não cristãos de governarem os cristãos, como tem sido defendido por sectários desde os primeiros séculos da era cristã. A legitimação única e satisfatória da autoridade política é a lei natural em geral e, em concreto, o cumprimento do seu dever para com o bem comum.

Os católicos não devem procurar repetir os erros do Século XX, quando, na década de 30, por exemplo, muitos católicos apoiaram o austríaco Engelbert Dolfuss que dissolveu o Parlamento para edificar um estado “católico”, ou quando os católicos apoiaram o ditador António Salazar em Portugal, ou Francisco Franco em Espanha, que utilizaram a censura e a polícia secreta para suprimir a oposição. Nem me parece que os católicos devam recordar com saudade e orgulho o governo absolutista de Pio IX sobre os Estados Pontifícios.

Ter um governante ou um executivo católico, mesmo um que seja ortodoxo e santo, não é nenhuma garantia da virtude da administração cívica prudente.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 17 de Outubro de 2023)

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2 comments:

  1. "Ter um governante ou um executivo católico, mesmo um que seja ortodoxo e santo, não é nenhuma garantia da virtude da administração cívica prudente." --> claro que não é garantia, tal como não é garantia que um filho seja santo mesmo dando-lhe uma educação católica, mas que ajuda muito ajuda.

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  2. https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20021124_politica_po.html

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