Wednesday, 20 September 2023

Toma o Comprimido

Francis X. Maier
O momento mais icónico do cinema do final dos anos 90 é a escolha que Neo tem de fazer no primeiro filme da série Matrix. Para quem não se lembra, o Matrix retrata um futuro em que os seres humanos vivem num mundo ilusório de aparente normalidade, mas na realidade cada pessoa está a flutuar num banho de narcóticos, administrado por máquinas sencientes. Os humanos criaram as máquinas e dotaram-nas de inteligência. Depois as máquinas escravizaram os humanos, que agora são usados como fontes vivas e anestesiadas de energia.

O enredo é bastante simples. Neo (um anagrama para “One”, o escolhido) é um programador e hacker que sente que há algo indefinível de errado no tecido da vida diária. Neo é contactado online por membros de uma resistência humana que procuram destruir as máquinas. Estes dão-lhe a escolher entre dois comprimidos. O azul levá-lo-á de volta aos prazeres da sua realidade imaginada, sem qualquer memória do que se passou. O encarnado abre-lhe os olhos para a dura verdade. Neo toma o comprimido encarnado e liberta a sua mente. Acabará por se tornar, para todos os efeitos, o salvador da humanidade.

Escrito e realizado pelos Irmãos Wachowski (actualmente, graças ao “milagre” dos medicamentos hormonais e de cirurgia, as Irmãs Wachowski) o filme é uma mistela de génio imaginativo, messianismo bíblico e misticismo oriental, que captura de forma perfeita o custo de o homem brincar ao Aprendiz de Feiticeiro; o custo de sobrestimar a nossa sabedoria e subestimar as consequências das ferramentas que criamos.

Aquilo a que chamamos progresso vem sempre com um senão. Se a tecnologia nos dá, também nos tira. A escrita permite gravar os nossos pensamentos, mas como Platão argumentou, também enfraquece a memória. O automóvel transporta-nos mais depressa, mas também polui a atmosfera. É o mesmo com qualquer nova tecnologia. 

E no mundo do Matrix esta nova ferramenta tira tudo, a começar pela liberdade e dignidade humana. As máquinas alimentam-se, literalmente, da vida e da energia das suas vítimas iludidas, tal como os ídolos pagãos, naturalmente vazios, vampirizam a vida dos seus idólatras.

Claro que o Matrix é ficção científica. É apenas uma história, muito longe do mundo em que vivemos aqui e agora. Mas talvez não tão longe como gostaríamos de pensar. Consideremos o seguinte trecho, escrito à menos de dois anos:

Às vezes fico acordado à noite, ou deambulo pelo campo atrás da minha casa, ou passeio pela rua da vila em que vivo e penso que a consigo ver toda a volta: a rede. As veias e tendões da máquina que nos rodeia, que nos paralisa e que agora nos sustenta e nos define. Imagino uma espécie de rede de fios luminosos no ar, brilhando como uma teia de aranha coberta de orvalho ao nascer do sol. Imagino os cabos e as ligações de satélites, os filmes e as palavras e os discos e as opiniões, os nós e os centros de dados que rastreiam e registam os detalhes da minha vida. Imagino a malha criada pelas transacções bancárias e as compras, os pedidos de passaporte e as mensagens enviadas. Vejo esta coisa, seja o que for, a ser construída, a construir-se à minha volta, vejo-a a erguer-se e a apertar o punho, e vejo que nenhum de nós a pode impedir de evoluir para se tornar o que seja que se está a tornar.

Vejo a Máquina, a zumbir gentilmente para si mesmo enquanto nos prende com as suas ofertas, seduzindo-nos com as suas promessas enquanto nos puxa devagarinho para dentro. Penso sobre as partes com que interagimos diariamente, a interface brilhante e branca à qual revelamos voluntariamente cada detalhe das nossas vidas em troca de informação, ou prazeres, ou histórias contadas por corporações globais de entretenimento que mercantilizam a nossa cultura para no-la revender. Penso nas palavras que usamos para descrever esta interface, que carregamos nos nossos bolsos para todo o lado, que nos rastreia em cada rua, em cada floresta que ainda existe: a teia [web], a rede.

E penso: Isto são coisas concebidas para apanhar presas.

Trata-se de uma passagem da extraordinária série de ensaios The Tale of the Machine, escrito pelo autor britânico Paul Kingsnorth, que recentemente se tornou cristão (ortodoxo). Este ensaio em particular chama-se You Are Harvest, e foi publicado em Outubro de 2021. É leitura importante, como toda a série. O seu site no Substack, The Abbey of Misrule, está ao nível do The Upheaval de N.S. Lyon e de Archedelia de Matthew B. Crawford, alguns dos melhores comentários culturais disponíveis actualmente.

Devemos evitar a tentação de achar que Kingsnorth está meramente a ser alarmista ou excessivo. O grande filósofo e teólogo protestante francês Jacques Ellul disse o mesmo e ainda mais em A Sociedade Tecnológica, há quase 70 anos.

Ellul argumentava que a adição moderna à tecnologia enquanto panaceia leva inevitavelmente o “estado a tornar-se totalitário, a absorver completamente as vidas dos seus cidadãos. Mesmo quando o estado é liberal e democrático, não pode se não tornar-se totalitário. Pode fazê-lo directamente, ou como no caso dos Estados Unidos, através de interpostas pessoas. Mas independentemente das diferenças, todos os sistemas acabam por chegar ao mesmo resultado.” O adolescente médio americano passa agora até nove horas por dia a olhar para ecrãs. Isso tem consequências psicológicas, logo sociais, logo políticas.

No Matrix o despertar de Neo para a realidade implica desligar-se literalmente das máquinas e suportar uma recuperação dolorosa, embora salvífica. Paul Kingsnorth livrou a vida diária da sua família de grande parte do casulo narcótico de alta tecnologia. (Não deixou de escrever no computador, não é propriamente chanfrado).

E está mais feliz por isso – por uma boa razão. Não podemos ser as criaturas de dignidade que Deus quis; não podemos ser fermento neste mundo; não podemos servir Jesus Cristo e ver claramente aquilo que deve ser feito no mundo, se formos apenas montes de detrito adormecidos. Fomos feitos para mais do que isso. Como escreve São Paulo, fomos feitos para ser filhos e filhas da luz, por isso, “não durmamos, pois, como os demais, antes vigiemos e sejamos sóbrios” (Tess. 5,6).

Por outras palavras: Toma o comprimido.


Francis X. Maier é conselheiro e assistente especial do arcebispo Charles Chaput há 23 anos. Antes serviu como Chefe de Redação do National Catholic Register, entre 1978-93 e secretário para as comunidades da Arquidiocese de Denver entre 1993-96.

Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quinta-feira, 14 de Setembro de 2023)

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