Wednesday, 27 September 2023

Eis o Homem

Costuma-se dizer, embora não tanto como se deve, que um dos males dos nossos dias é a perda do sentido de pecado. O Papa Pio XII disse isto mesmo num famoso discurso radiofónico aos catequistas, em 1946, e o Papa Francisco já repetiu a mesma ideia mais que uma vez, comparando a hipocrisia de alguns cristãos à do Rei David, incapaz de ver o seu próprio pecado até que o profeta Natã o colocou diante dos olhos: “Esse homem és tu!”

De tempos a tempos todos nós precisamos de ser abanados e acordados da nossa própria cegueira e complacência. Nas palavras do Papa Francisco: “Que o Senhor nos dê a graça de enviar sempre um profeta – pode ser um vizinho, um filho ou filha, uma mãe ou um pai – para nos dar umas palmadinhas quando cairmos para um mundo em que tudo parece ser legítimo.”

É isto mesmo.

Talvez possamos ir mais longe e aplicar isto não só ao reconhecimento da nossa cegueira para com as nossas próprias falhas, mas também à sabedoria para rezar por correcção. Ser cego por causa dos nossos pecados, incapaz de os ver, como David, é uma coisa. Mas perder a noção de que as nossas acções podem ser julgadas por alguém, de acordo com um qualquer padrão que nos ultrapassa, é outra.

A correcção fraterna pressupõe a existência de fraternidade. Este tipo de correcção requer um sentido de responsabilidade e confiança mútua entre as partes (como se esperaria encontrar entre irmãos). Mas a um nível mais básico (quase pedante), a correcção fraternal pressupõe um sentido partilhado da própria natureza e fonte da fraternidade: os irmãos são-no porque partilham um mesmo pai.

Por isso, um cristão poderá ser convencido da necessidade de se arrepender quando lhe forem reveladas as formas como se desviou da lei de Deus ou da lei da Igreja. Mas isso depende do reconhecimento prévio por parte do pecador da existência dessas mesmas leis, e um desejo, por mais imperfeito que seja, de viver de acordo com elas.

E a pessoa que não reconhece tais leis, ou a autoridade que as sustenta? E a pessoa que acredita que o mal é na verdade o bem? E a pessoa que não conhece o Pai e nega os ensinamentos da nossa Mãe, a Igreja? Tal pessoa não está para além da esperança da misericórdia e do arrependimento, como é evidente, mas o apelo à lei (a lei de Deus, a lei da natureza, a lei da Igreja ou até a lei do homem), cuja autoridade ele não reconhece, dificilmente a levará ao arrependimento.

Em tais casos a perda do sentido do pecado não é apenas a incapacidade de ver o meu próprio pecado, mas a perda da possibilidade de reconhecer que o pecado é pecado sequer. Se perdemos Deus de vista, se perdemos de vista o bem do qual o pecado é um afastamento ou uma negação, então a própria categoria de pecado (para não falar de fraternidade) deixa de ter qualquer sentido.

É interessante notar como chegámos à beira daquilo que Nietzsche entendeu quando observou que “se nada é verdade, tudo é permitido”, razão pela qual descrevia o seu projecto filosófico – aliás, a si mesmo – como “Dionísio versus o Crucificado”.

E isto parece-me ser muito mais próximo daquilo que o Papa Pio XII tinha em mente quando falou da perda do sentido de pecado nos meses imediatamente a seguir aos horrores da Segunda Guerra Mundial. O remédio que o Papa Pio propôs não era, pelo menos numa primeira instância, recordar o mundo da lei moral de que se tinha esquecido, ou que tinha negado. Antes, o remédio encontrar-se-ia no Cristo Crucificado. Nele, a realidade do pecado é colocada em bruto contraste com aquele amor que todo o pecado ofende.

Vale a pena voltar a olhar para o discurso de Pio XII de 1946, onde regista o seu lamento pela perda do sentido de pecado exactamente neste contexto:

Conhecer Jesus crucificado é conhecer o horror de Deus ao pecado; a sua culpa apenas pôde ser purificada no precioso sangue do Filho unigénito de Deus, feito homem.


Talvez o maior pecado no mundo hoje seja o facto de os homens terem começado a perder o sentido do pecado. Se isso for abafado, entorpecido – porque não pode ser totalmente extirpado do coração do homem – se for impedido de ser despertado por qualquer vislumbre do Deus-homem a morrer na cruz do Calvário para pagar a pena do pecado, que restará para impedir as hordas dos inimigos de Deus de dominarem o egoísmo, orgulho, sensualidade e ambições desmedidas do homem pecaminoso? Bastará a mera legislação humana? Os acordos ou os tratados?

Não vivemos num mundo em que os corações e as consciências do homem podem ser facilmente tocados pelos apelos à autoridade, nem mesmo à autoridade de Deus. Mesmo dentro da Igreja, entre os baptizados, nem sempre é eficiente apelar à autoridade da doutrina ou à Divina Revelação. Poderíamos desejar que não fosse assim, mas é.

O que nos resta, portanto, é proclamar a Boa Nova de uma forma que o mundo ainda consiga entender. Se os apelos à autoridade não tiverem adesão, então resta um caminho que é tão convincente hoje como sempre foi. Ouçamos novamente Pio XII.

No Sermão da Montanha, o divino Redentor iluminou o caminho que conduz à vontade do Pai e à vida eterna; mas do cadafalso do Calvário flui a torrente sempre plena e constante de graças, de força e de coragem, a única que permite ao homem trilhar esse caminho com um andar firme e certo. 

Esse percurso é nos revelado por aquele que o trilhou antes de nós – embora ele não tenha precisado de um Natã para o corrigir – aquele sobre quem Pilatos falava quando clamou: “Eis o Homem”. Nada condena mais o pecador que o amor incomensurável de Deus. Nada penetra até ao cerne da consciência do homem mais do que a própria misericórdia de Deus. E a força e a coragem para percorrer esse caminho jorram até nós desde cima.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 21 de Setembro de 2023)

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